quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Por que a vida tem perdido o sentido para tantos adolescentes?

Falta de perspectivas, pressão por desempenho e a violência cotidiana alimentam o esvaziamento da vida entre adolescentes. A consequência? Aumento de autolesões e suicídios

Falta de perspectivas, pressão por desempenho e a violência cotidiana alimentam o esvaziamento da vida entre adolescentes. A consequência? Aumento de autolesões e suicídios

Alerta de conteúdo sensível: este texto contém informações relacionadas a problemas de saúde mental e suicídio. Se estiver precisando de ajuda ou conhecer alguém que esteja, ligue CVV 188

Conectados, pressionados e expostos a um mundo de crises múltiplas, adolescentes têm demonstrado sinais alarmantes de esvaziamento do valor da vida. O resultado aparece no aumento de casos de autolesão e tentativas de suicídio -- um grito silencioso que adultos, famílias e escolas muitas vezes não conseguem escutar. Eles estão online o tempo todo, mas se sentem sozinhos. Precisam performar na escola e nas redes, enquanto enxergam um horizonte fraturado por desigualdade, violência e um planeta em risco.

Por trás dos números, há uma geração que questiona o sentido de viver em idade cada vez mais precoce. "Qual é o sentido de estudar se nem sei se vou ter trabalho?" "Se o mundo está acabando, por que planejar o futuro?" "Não quero morrer, só queria que a dor parasse." Esses enunciados se repetem em consultórios, corredores de escola e rodas de conversa -- e não é exagero. No mundo, a Organização Mundial da Saúde estima mais de 720 mil mortes por suicídio a cada ano; em 2021, foi a terceira principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. Em países de baixa e média renda concentram-se quase três quartos desses óbitos. No Brasil, a fotografia acompanha a tendência: foram 15.507 mortes por suicídio em 2021, 77,8% entre homens. Entre adolescentes, o impacto é particularmente duro: o suicídio já figura como a terceira causa de morte entre 15 e 19 anos e a quarta entre 20 e 29.

E antes das mortes há o que raramente vira manchete: as autolesões e as tentativas. Só em 2021, o Sinan registrou 114.159 notificações de violências autoprovocadas, 70,3% em mulheres; entre adolescentes, 21,5% tinham de 15 a 19 anos e 9,3% estavam entre 5 e 14. No período de 2011 a 2022, estudo da Fiocruz mostra que a taxa de suicídio entre jovens de 10 a 24 anos cresceu em média 6% ao ano, enquanto as notificações de automutilação dispararam 29% ao ano -- um avanço muito acima da média da população geral.

Esse esvaziamento do sentido de viver tem muitas faces. Para parte dos jovens, o futuro simplesmente não lhes pertence: medo crônico de não encontrar trabalho, violência no território em que vivem, a percepção de que o mundo caminha para um colapso climático, político e social. A combinação produz desesperança e fragiliza o valor atribuído à própria vida. Em meio à pressão estética e de produtividade, à comparação permanente nas redes e à precariedade econômica, a autolesão aparece como tentativa de dar forma física a uma dor sem linguagem.

Embora a intoxicação por medicamentos seja o meio mais frequente de tentativa, seguida por objetos cortantes, a letalidade é maior entre meninos, que tendem a recorrer a métodos mais violentos. Dizer que "é só para chamar atenção" é não compreender a dimensão do sofrimento.

"Do ponto de vista cognitivo, a incerteza constante é um fator de risco para ansiedade e para a percepção de que não há sentido", explica dr. Guilherme Polanczyk, psiquiatra da infância e adolescência e professor da USP. Ele lembra que megatendências como mudanças climáticas, tensões políticas e tecnologias disruptivas reforçam a instabilidade para todas as gerações, mas atingem os adolescentes de forma mais aguda.

Estilos parentais mais ansiosos e a parentalidade intensiva -- a tentativa constante de evitar frustrações -- também interferem na formação emocional. Crises familiares, rupturas, falências e a exposição à violência funcionam como gatilhos adicionais. A tecnologia, aqui, é parte do problema e da solução. A exposição contínua a narrativas de violência e autoagressão nas redes pode banalizar comportamentos de risco e criar efeitos de identificação em grupo. Há ainda novos perigos relacionados ao uso indiscriminado de ferramentas de inteligência artificial, já envolvidas em episódios de incentivo a suicídio.

O consumo excessivo de telas -- muitas vezes acima de sete horas diárias -- amplia a exposição a conteúdos como pornografia, jogos de aposta e dietas extremas, com impactos documentados sobre um cérebro ainda em desenvolvimento. Esses riscos se somam a velhos conhecidos, como álcool e cigarro, agora acompanhados de novas drogas e dispositivos, num cenário em que as ações preventivas em curso não conseguem conter os efeitos.

A literatura científica aponta que cerca de 90% das pessoas que morrem por suicídio apresentam algum transtorno mental, como depressão, bipolaridade ou esquizofrenia, ou uso problemático de álcool e outras drogas. Entre adolescentes, somam-se fatores sociais e relacionais: abuso físico, psicológico ou sexual; isolamento; discriminação; perdas familiares; violência doméstica; bullying; impulsividade; baixa autoestima; desesperança.

"Os jovens percebem que valores como solidariedade e gratidão foram corroídos. Sentem-se invisíveis em uma sociedade movida pelo poder econômico e pela indiferença", observa a Ana Cecília Petta Roselli Marques, médica psiquiatra, especialista em Saúde Coletiva e Saúde Mental pela UNESP e doutora em Neurociências pela UNIFESP. Para ela, a prevenção começa em casa e se sustenta em rede: família, escola, atenção básica e serviços especializados; só uma política robusta, integral e baseada em evidências altera o quadro.

O que fazer diante dos sinais? Adolescência saudável não significa ausência de turbulência, mas quando a dor persiste e desmonta a vida cotidiana é preciso acender o alerta. Mudanças bruscas de humor, tristeza profunda, perda de interesse por atividades antes prazerosas, isolamento, irritabilidade, alterações de sono e apetite, queda acentuada no rendimento escolar, conflitos recorrentes com colegas e familiares e doenças frequentes compõem um quadro de atenção.

Perguntar diretamente sobre sofrimento, pensamentos de morte ou de se ferir não aumenta o risco; ao contrário, abre portas para acolher e encaminhar. Na escola, protocolos claros de identificação e acolhimento, formação continuada de educadores e educação socioemocional baseada em evidências são indispensáveis, com foco em pertencimento, regulação emocional, projetos de vida e comunicação responsável (sem romantização).

Em casa e na comunidade, escuta ativa antes de aconselhar, validação da dor, discussão franca sobre masculinidades (vulnerabilidade não é fraqueza), elaboração de planos de segurança que incluam pessoas de referência e a redução do acesso a meios letais são medidas práticas. Persistindo sinais, é fundamental buscar ajuda profissional -- CAPSij, rede SUS, psicoterapia e, quando indicado, acompanhamento psiquiátrico.

No campo das políticas públicas, o caminho passa por fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial e os CAPS (com equipes completas e orçamento estável), integrar vigilância epidemiológica e atenção básica para que dados em tempo oportuno orientem ações locais, fiscalizar ambientes digitais e reduzir a disponibilidade de meios letais.

Cultura, esporte e projetos comunitários funcionam como fatores de proteção: onde há vínculo, há saída. Cada adolescente que corta a própria pele ou tenta se matar é uma denúncia viva de que a sociedade falhou em oferecer cuidado e pertencimento. Não é "problema deles": é o espelho de um país que cobra demais, oferece pouco e se ausenta nos momentos mais críticos.

Prevenir o suicídio na adolescência não é tarefa de especialistas isolados; é responsabilidade coletiva. E começa por algo simples, mas radical: escutar de verdade os jovens e reconhecer que a dor deles também nos atravessa.

Onde buscar ajuda: CVV - 188 (24h, gratuito; telefone, chat, e-mail). Em risco imediato, acione o SAMU - 192

Reportagem de Carolina Delboni no Estadão


https://www.estadao.com.br/emais/carolina-delboni/por-que-a-vida-tem-perdido-o-sentido-para-tantos-adolescentes/

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