domingo, 10 de março de 2024

Como o machismo na Medicina e na Ciência afeta a saúde das mulheres - e de que forma superar isso

Durante séculos, queixas e doenças relatadas por pacientes do sexo feminino foram negligenciadas ou apontadas como histeria


A analista de dados Alissa Caresia Munerato tinha 19 anos quando acordou com uma falta de ar que apareceu de forma repentina. Foi até um hospital privado de São Paulo para receber atendimento e investigar a causa do problema, e ouviu do médico de plantão que o sintoma era, provavelmente, emocional. “Deve ser só nervoso porque você deve estar apaixonada”, disse o profissional à jovem.

Após horas de espera no pronto-socorro, ela só conseguiu passar por mais exames depois de reclamar com a equipe de enfermagem. Mais tarde, quando os resultados dos testes saíram, Alissa foi levada às pressas para a UTI. A falta de ar era, na verdade, o sinal de uma embolia pulmonar grave, que, se não tratada a tempo, pode matar rapidamente. Ela ficou internada por um mês para o tratamento e descobriu que tinha trombofilia, distúrbio no sangue que facilita a formação de coágulos.

“Eu podia ter entrado em parada cardiorrespiratória. Podia ter caído dura e morrido por terem subestimado meu problema, por eu não ter sido ouvida”, diz Alissa, hoje com 30 anos.

A empresária e criadora de conteúdo Dana Steinberg, de 40 anos, também ouviu muitas vezes que suas dores e cansaço incapacitantes eram coisas da sua cabeça ou invenções para justificar um “comportamento preguiçoso”. Desde criança, ela diz ter sido julgada pelos médicos. Somente aos 35 anos, recebeu o diagnóstico da síndrome de Ehlers Danlos, uma condição rara que afeta a produção e síntese de colágeno no corpo e provoca danos em estruturas como a pele e as articulações - daí as dores e falta de energia.

“Um dos médicos que procurei chegou a pegar a ressonância de outro paciente e falar: ‘olha, ele tem uma coluna muito pior do que a sua e nunca reclama de dor’”, conta Dana. “Depois do diagnóstico, minha vida mudou completamente porque comecei a fazer o tratamento correto. Mas foram muitos anos perdidos sem que minhas queixas recebessem o devido crédito dos médicos”, diz.

Ela conta que o marido tem esclerose múltipla e nota diferença no tratamento que ele recebe dos profissionais de saúde. “Ninguém nunca duvidou dos sintomas dele. Ninguém nunca perguntou se ele estava com muito estresse em casa ou como estava o casamento dele quando ele relata dores”, diz Dana.
A empresária e criadora de conteúdo Dana Steinberg Foto: Arquivo pessoal


Em relatos como esses, a primeira avaliação pode ser a de que Alissa e Dana foram “apenas” vítimas de maus profissionais ou que não tiveram sorte nas unidades de saúde pelas quais passaram. Estudos, no entanto, vêm demonstrando que o problema é muito mais complexo.

Eles revelam, por exemplo, que as mulheres têm menor probabilidade de receberem analgésicos para dor abdominal quando procuram um pronto-socorro, amargam piores resultados quando operadas por um cirurgião homem e têm maior dificuldade de ter diagnóstico e tratamento adequado para um infarto do que os homens quando procuram um hospital com dor no peito.

“Há um viés de gênero que, historicamente, considera o corpo feminino como inadequado, subestima os efeitos adversos de intervenções e negligencia os relatos e dores das mulheres, classificando-as como histeria ou outras reações psicogênicas. E isso se reflete na Ciência e na Medicina também”, diz Carmen Simone Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

O uso do termo histeria

A crença foi construída ao longo de séculos. Cerca de 400 anos antes de Cristo, Hipócrates, o grego considerado o pai da Medicina ocidental, cunhou o termo histeria para definir uma suposta condição médica de desequilíbrio emocional exclusiva das mulheres. O termo, inclusive, vem da palavra hystera, que, em grego, significa útero - não à toa que a cirurgia de retirada do útero é chamada de histerectomia.

Por muitos séculos, a chamada histeria feminina foi usada como diagnóstico para uma ampla gama de sintomas e doenças relatadas por pacientes do sexo feminino, levando algumas delas a serem internadas em instituições parecidas a manicômios. A crença só caiu por terra a partir do século 19, com pesquisas que buscavam entender melhor a mente humana.

Embora tenhamos avançado nas últimas décadas, ainda há resquícios desse pensamento em atendimentos de saúde como os citados no começo deste texto, que desacreditam os relatos das pacientes e encaixam muitas de suas queixas como problemas de fundo emocional. Tais crenças impediram ainda que condições tipicamente femininas recebessem a devida atenção da ciência, segundo especialistas.

Por muito tempo, alguns temas caros para as mulheres, como práticas obstétricas, disfunções sexuais e menopausa, foram alvos de poucos estudos. E, até hoje, ainda há uma participação mais baixa de mulheres em estudos clínicos de algumas patologias, como as cardíacas, o que dificulta a avaliação da eficácia e segurança de determinadas intervenções sob o prisma das diferenças de gênero.
A analista de dados Alissa Caresia Munerato reclama de negligência em atendimento médico 
Foto: Arquivo pessoal


O exemplo da episiotomia

Simone cita como exemplo dessas crenças preconceituosas a realização indiscriminada (e muitas vezes sem consentimento da mulher) da episiotomia, corte cirúrgico feito no períneo durante o trabalho de parto sob a justificativa de facilitar a passagem do bebê. Desde a década de 1920 até o início dos anos 2000, o procedimento era tido como padrão no atendimento obstétrico, mesmo que ele não fosse necessário na maioria dos casos e pudesse deixar a mulher com sequelas como dor e dificuldades de ter relações sexuais.

“Era tido como um procedimento cientificamente embasado, embora nunca tenha tido evidência de benefício. Os estudos bem desenhados que existiam era sobre qual instrumento usar para cortar o períneo, qual era o melhor fio de sutura, mas não se perguntava se devia ser feito ou não”, conta a professora da USP.

Em muitos casos, diz a especialista, a principal preocupação dos médicos era costurar a região íntima feminina de forma a não “atrapalhar” o prazer do homem na penetração, por isso a sutura pós-episiotomia era comumente chamada de “ponto do marido”.

A publicitária Bia Fioretti, de 61 anos, passou pelo procedimento nos partos de seus dois filhos. Na primeira gestação, o corte foi feito sem o conhecimento dela. Na segunda gravidez, o médico disse que, pela posição do bebê, teria que fazer uma episiotomia ainda maior, mas tratou de tranquilizar o marido da publicitária:

“O médico falou para que ele ficasse tranquilo, que ia costurar de um jeito que ia ficar melhor do que antes”, conta Bia, que, depois das experiências traumáticas, abandonou o emprego em uma grande agência de publicidade para fazer mestrado e doutorado em saúde pública. Tornou-se especialista em comunicação para promoção da saúde e realizou trabalhos para o Ministério da Saúde na área de humanização do parto.

Ela defende que as discussões não fiquem focadas nas condutas individuais de cada profissional, mas, sim, se debrucem sobre as questões estruturais que permitem esse tipo de violência contra as mulheres. “Não culpo o médico, ele foi ensinado a fazer daquela forma. É o sistema todo que tem que mudar, começando pela formação dos profissionais”, diz.

A história da episiotomia só começou a mudar a partir da década de 1980, quando a autora e ativista britânica Sheila Kitzinger fez uma pesquisa para entender a percepção das mulheres sobre o procedimento. Ela descobriu que as experiências eram as piores possíveis. A partir de então, a ciência começou a estudar de forma mais aprofundada a repercussão desse procedimento na saúde e qualidade de vida das mulheres e, nos últimos anos, a episiotomia foi formalmente classificada pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um procedimento a ser evitado.

Sintomas de infarto são classificados como ansiedade

Outros problemas, no entanto, permanecem. O impacto do sexismo na saúde cardiovascular feminina é um dos pontos que vêm ganhando atenção dos especialistas. Embora o infarto seja a principal causa de morte entre as mulheres no País, nem sempre essa hipótese diagnóstica é cogitada pelos profissionais, que, em alguns casos, associam os sintomas a quadros de ansiedade sem fazer uma investigação mais aprofundada.

“Os sintomas de um infarto na mulher podem ser diferentes. Nem sempre é aquela dor opressiva no tórax que irradia para o braço. Elas podem ter cansaço e falta de ar, um desconforto no peito e nas costas, mas, por ser uma dor mais frustra, esse diagnóstico é descartado e elas não são colocadas na rota de atendimento de dor torácica no pronto-socorro”, diz Glaucia de Oliveira, presidente do Departamento de Cardiologia da Mulher da Sociedade Brasileira de Cardiologia e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A médica diz que essa demora no diagnóstico retarda o acesso ao tratamento adequado e aumenta o risco de mortalidade. Para a especialista, a educação das pacientes e dos profissionais é fundamental para que fique claro que as doenças cardiovasculares são causa de morte importante também nas mulheres. “Cerca de 30% das mortes de mulheres são por essas causas e acabamos não falando tanto delas quanto falamos de câncer de mama, por exemplo”, destaca a médica.

Para além da cardiologia, as especialistas apontam outros sintomas ou condições femininas que são minimizados no atendimento médico, como desconfortos da menopausa ou período pré-menstrual ou queixas relacionadas à sexualidade.

“Em quadros de vaginismo, por exemplo, que é um problema em que a mulher tem dificuldade para ter penetração porque sente dores intensas, recebo várias pacientes que ouviram de profissionais que era algo emocional, que falavam para a mulher tomar um vinho e relaxar. Existe uma negligência em relação a esses sintomas”, conta a ginecologista Carolina Ambrogini, coordenadora do Ambulatório de Sexualidade Feminina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Ela explica que, por mais que a condição possa, sim, ter causas emocionais, é necessário um atendimento especializado porque esses quadros psicológicos podem ser graves e estar relacionados a traumas. Em alguns casos, são necessárias, além da psicoterapia, fisioterapia e medicações. “Quando me formei, há 23 anos, a média de tempo que essas mulheres esperavam para ter um diagnóstico correto era de cinco anos. Melhorou muito, mas ainda há um descrédito de algumas queixas femininas”, diz a médica.

Para as especialistas, além de melhorar a formação dos profissionais de saúde trazendo esses temas para o currículo, é necessário ainda maior investimento em pesquisas sobre questões femininas, e maior presença delas não só nas carreiras de saúde e ciência, mas em cargos de liderança. “A questão da representatividade é importante para combatermos essa crença”, diz Simone.

Reportagem de Fabiana Cambricoli n'O Estadão

https://www.estadao.com.br/saude/como-o-machismo-na-medicina-e-na-ciencia-afeta-a-saude-das-mulheres-e-de-que-forma-superar-isso/

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Ultraprocessados são ligados a 32 doenças

Ultraprocessados são ligados a 32 doenças em análise de quase 10 milhões de pessoas


Revisão de 45 estudos sobre o tema encontrou evidências consistentes de um risco aumentado para morte por doenças cardiovasculares, transtornos mentais e diabetes tipo 2

Alternativas altamente palatáveis e práticas, que se tornam atrativas dentro de rotinas com pouco tempo livre, os alimentos ultraprocessados, como refeições prontas, salgadinhos, biscoitos e refrigerantes, têm sido alvo crescente de estudos que buscam avaliar o impacto de seu baixo teor nutricional na saúde humana. Agora, uma nova revisão de 45 trabalhos feitos sobre o tema, publicada nesta quarta-feira na revista científica The BMJ, mostra que existe uma associação entre as comidas e um risco aumentado para 32 agravos de saúde diferentes.


A publicação é chamada de “guarda-chuva” por ser uma análise conjunta de outras revisões já feitas sobre o tema. Por isso, é considerada um dos níveis mais elevados de evidência científica observacional, agregando uma série de pesquisas e avaliando não apenas os resultados, mas a qualidade de cada uma. O trabalho foi conduzido por pesquisadores dos Estados Unidos, Austrália, França e Irlanda.

Ao todo, os estudos analisados acompanharam quase 10 milhões de indivíduos. As estimativas de exposição aos ultraprocessados foram obtidas por meio de uma combinação de registros alimentares e foram medidas como um consumo maior versus um menor, como porções adicionais por dia ou como um aumento de 10%, a depender do trabalho.

De forma mais sólida, os cientistas afirmam que há evidências convincentes de que a ingestão de alimentos ultraprocessados está associada a um risco aumentado de 50% de morte relacionada a doenças cardiovasculares; 53% de transtornos mentais comuns e 48% de ansiedade prevalente.

Dados sólidos também mostraram um risco 12% maior de diabetes tipo 2 a cada 10% de aumento dos ultraprocessados na dieta. Evidências mais fracas, porém consideradas altamente sugestivas, indicaram uma chance 20% maior de morte por qualquer causa, 55% de obesidade, 41% de problemas de sono, 40% de chiado no peito e 20% de depressão.

A revisão constatou ainda que há estudos apontando uma associação com asma, pior saúde gastrointestinal, alguns tipos de câncer e fatores de risco cardiometabólicos, como níveis elevados de gordura no sangue e baixos níveis de colesterol “bom”. No entanto, de forma menos consistente que demanda mais avaliação.

— A hipótese de que o consumo aumentado de alimentos ultraprocessados poderia ser um desencadeante da pandemia de obesidade e doenças crônicas associadas foi lançada em 2009. Desde então, a evidência de associação entre os alimentos e agravos à saúde humana a partir de estudos epidemiológicos vêm se acumulando na última década — afirma a epidemiologista Eurídice Martínez Steele, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), grupo que cunhou o termo “ultraprocessados” no Brasil e no mundo e é responsável pelo Guia Alimentar para a População Brasileira.

A nova revisão traz um alerta importante em meio ao avanço dos alimentos do tipo no cardápio da população mundial. Os pesquisadores citam no estudo que, em países de renda alta, eles chegam a representar até 42% e 58% do total de calorias consumidas por dia, caso da Austrália e dos Estados Unidos, respectivamente.

O percentual é bem acima de taxas associadas a problemas de saúde. Um trabalho da USP, por exemplo, publicado no periódico JAMA Neurology em 2022, mostrou que, após um acompanhamento médio de 8 anos, aqueles com um consumo superior a 19,9% das calorias diárias em ultraprocessados tiveram uma taxa 28% mais rápida de declínio cognitivo.

Um outro trabalho que ganhou destaque recentemente sobre o tema, publicado na The BMJ por pesquisadores espanhóis, encontrou uma ligação entre comer mais de quatro porções de produtos do tipo por dia e um risco 62% maior de mortalidade por todas as causas.

— Algo que muitos trabalham mostram é essa questão da dose. O problema maior está na quantidade, na frequência. Esse consumo de maneira exagerada, que tem sido apontado como mais de quatro porções por dia, está sem dúvidas atrelado à praticidade do dia a dia. Mas é evidente que devemos, dentro do possível, evitá-los. Só que o que observamos no mundo e no Brasil é uma tendência de aumento — avalia o médico nutrólogo e endocrinologista Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) e fellow da Obesity Society.

No Brasil, de acordo com a última edição da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), que avaliou o tema, os ultraprocessados representam 18,4% da alimentação. Em 2002/2003, esse percentual era de 12,6%. Por outro lado, a presença de alternativas in natura ou minimamente processados caiu de 53,3% para 49,5% no mesmo período.

— Estudos em vários países têm mostrado essa tendência de aumento. Os ultraprocessados são desenhados para serem altamente palatáveis e convenientes, assim como pouco perecíveis, e são fabricados com ingredientes de baixo custo com escasso valor nutritivo. No Brasil, já tendem a ser mais baratos que alimentos frescos, como carne, leite, ovos, frutas e hortaliças. A publicidade desregulada também contribui. E a ideia de comidas “práticas”, no cotidiano dos trabalhadores, é um apelo — avalia Steele.

Os 32 problemas de saúde associados a ultraprocessados:

Mortalidade por todas as causas
Mortalidade por câncer
Mortalidade por doenças cardiovasculares
Mortalidade por problemas cardíacos
Câncer de mama
Câncer (geral)
Tumores do sistema nervoso central
Leucemia linfocítica crônica
Câncer colorretal
Câncer pancreático
Câncer de próstata
Desfechos adversos relacionados ao sono
Ansiedade
Transtornos mentais comuns
Depressão
Asma
Chiado no peito
Desfechos de doenças cardiovasculares combinados
Morbidade de doenças cardiovasculares
Hipertensão
Hipertriacilgliceridemia
Colesterol HDL baixo
Doença de Crohn
Colite ulcerativa
Obesidade abdominal
Hiperglicemia
Síndrome metabólica
Doença hepática gordurosa não alcoólica
Obesidade
Excesso de peso
Sobrepeso
Diabetes tipo 2

Medidas para diminuir o consumo

Junto com o novo estudo, a The BMJ publicou um editorial de pesquisadores do Nupens/USP chamado “Razões para evitar alimentos ultraprocessados”. O núcleo é um dos que mais pesquisam o tema no mundo e defende a importância de políticas públicas para reduzir o consumo.

No texto, eles destacam que os produtos podem ser danosos para “a maioria, senão todos, os sistemas do corpo humano” e citam que a lucratividade desencoraja fabricantes a alterarem as suas formulações, por isso a necessidade de medidas do poder público.

— O Brasil e outros países da América Latina são os que mais têm avançado nesse sentido. No Brasil, por exemplo, desde 2014 que o Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda evitar o consumo de ultraprocessados. Mais recentemente, o município do Rio de Janeiro proibiu a venda dentro de escolas. A própria mudança na rotulagem de 2023 também vem levantando esse debate na população — diz Steele, uma das autoras do editorial.

Ainda assim, diz que “há muito a se fazer”. Os pesquisadores defendem restrições na publicidade dos produtos; a proibição nacional da venda dentro ou perto de escolas e hospitais e medidas fiscais, como incentivos para alimentos in natura e minimamente processados e maior tributação dos ultraprocessados.

Outro ponto apoiado pelo grupo e pelo presidente da Abran é uma nova alteração na rotulagem. Hoje, o sistema lupa diz apenas se o item possui alto teor de açúcar, gordura saturada ou sódio. Eles pedem que seja incluída uma clara identificação de que se trata de um alimento ultraprocessado.

O que são os ultraprocessados e por que eles fazem mal?

Os ultraprocessados são alimentos como refeições prontas, refrigerantes, salgadinhos, embutidos, barras de cereais, sorvetes, entre muitos outros presentes no dia a dia. Basicamente, todos que passam por múltiplos processos industriais e contêm corantes, emulsificantes, aromatizantes e outros aditivos para torná-los palatáveis.

— Esses alimentos têm uma alta disponibilidade, praticidade, são mais duráveis e têm a conveniência de serem fáceis de comer. Mas têm um alto teor de sódio, de gordura hidrogenada e saturada, grande quantidade de açúcares refinados e uma baixa quantidade de fibras, o que os torna pobres em termos nutricionais — explica Durval Ribas Filho.

Um recurso que pode ajudar a identificá-los é o aplicativo “Desrotulando”, que escaneia o código de barras dos produtos e dá uma nota de acordo com a quantidade de substâncias nocivas. Para os especialistas, essa carência nutricional nos produtos e o fato de que eles ocupam o lugar de alternativas saudáveis na dieta podem explicar os riscos para a saúde observados.

“A ingestão desses alimentos torna as dietas densas em energia, ricas em açúcar e gordura saturada e pobres em proteínas, fibras, micronutrientes e fitoquímicos protetores da saúde, como flavonoides e fitoestrogênios. Elas também contêm aditivos, incluindo corantes, emulsificantes e adoçantes, associados por evidências experimentais e epidemiológicas a desequilíbrios na microbiota intestinal e inflamação sistêmica”, diz o editorial do Nupens.

Além disso, o texto destaca que “os alimentos ultraprocessados são projetados para serem altamente desejáveis, combinando açúcar, gordura e sal para maximizar a recompensa e adicionando sabores que induzem a comer mesmo quando não se está com fome”, o que favorece o ganho de peso e o risco de obesidade.

Os pesquisadores afirmam ainda que os ultraprocessados são considerados viciantes pelos padrões estabelecidos para produtos de tabaco e por isso pedem que as agências das Nações Unidas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), e os países desenvolvam diretrizes sobre os alimentos análogas àquelas sobre o tabaco.

Reportagem de Bernardo Yoneshigue n'O Globo

https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2024/02/29/ultraprocessados-sao-ligados-a-32-doencas-em-analise-de-quase-10-milhoes-de-pessoas.ghtml

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Entenda o caso de Maria da Penha, que originou lei de proteção a mulheres vítimas de violência no Brasil

 José Geraldo da SilvaLEI MARIA DA PENHA Nº 11.340, CONTRA A VIOLÊNCIA À MULHER

Entenda o caso de Maria da Penha, que originou lei de proteção a mulheres vítimas de violência no Brasil

Posts virais mentem ao afirmar que ela ficou paraplégica após ser baleada durante assalto em sua casa

Em 2022, 18,6 milhões de mulheres brasileiras sofreram algum tipo de agressão, segundo dados divulgados este ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública —destas, 50.962 foram agredidas diariamente. Na maioria dos casos, os agressores foram ex-companheiros (31,3%) ou o parceiro atual (26,7%). Desde 7 de agosto de 2006, as mulheres no Brasil contam com uma lei de proteção contra a violência doméstica, a Lei Maria da Penha. Este ano, a lei completou 17 anos, e dúvidas sobre o caso que deu origem ao dispositivo legal voltaram a movimentar a internet.
Nas redes sociais, vídeos que somam mais de 700 mil visualizações afirmam que a Lei Maria da Penha foi fruto de uma farsa, já que a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após ser baleada pelo marido nas costas enquanto dormia em 1983, teria sido, segundo as versões falsas, alvo de assaltantes. O marido, o colombiano naturalizado brasileiro Marco Antonio Heredia Viveros, teria sido incriminado por ela por ciúmes, após descobrir uma traição.

Essa é, na verdade, a versão de Viveros. Os vídeos recentes não trazem nenhum elemento novo ao caso – apenas reciclam o que ele disse à polícia e à Justiça e que não foi aceito pelos tribunais do júri aos quais ele foi submetido nos dois julgamentos que o condenaram por tentativa de homicídio qualificado, em 1991 e em 1996. E não é a primeira vez que ela viraliza na web. Em junho de 2022, a partir de um trecho do programa +1Podcast, da Jovem Pan News, começaram a ganhar força nas redes sociais conteúdos com a falsa alegação de que Maria da Penha tinha sido baleada por assaltantes, e não pelo marido.
Diversas agências de checagem e veículos de comunicação já produziram materiais desmentindo essa tese: UOLAos FatosFato ou Fake e Estadão. Na época, o IMP (Instituto Maria da Penha) divulgou uma nota repudiando a divulgação de informações falsas a respeito do caso de violência doméstica.
Superintendente e cofundadora do IMP, Conceição de Maria disse à reportagem que, mais do que responsabilizar agressores, a Lei Maria da Penha "viabilizou um verdadeiro programa para o Estado brasileiro enfrentar e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres". Segundo ela, as redes sociais são aliadas, mas infelizmente podem ser usadas "na contramão de boas causas, levando desinformação e deslegitimando o que de melhor conseguimos".

Conceição declarou que "a violência doméstica e familiar tende a aumentar com a disseminação de discursos de ódio na internet" e acrescentou que "relativizar a violência é uma conduta frequentemente identificada em grupos que atuam tentando fragilizar e deslegitimar a luta das mulheres, o que deve ser combatido tanto pelas instituições quanto pela imprensa e toda a sociedade".
Em nota, o MPCE (Ministério Público do Ceará) disse que a tese de que Maria da Penha ficou paraplégica após ser atingida por um tiro durante um assalto, e não como decorrência de agressão por tentativa de homicídio perpetrada pelo marido, foi uma estratégia da defesa de Viveros e foi rechaçada. "O processo ocorreu com toda a possibilidade de contraditório e ampla defesa, de ambas as partes. Mediante análise das provas, a Justiça determinou que o ex-marido de Maria da Penha cometeu dupla tentativa de homicídio contra a vítima", diz a nota.
A defesa de Viveros foi procurada, mas não respondeu até a publicação deste texto.
Diante de tanta desinformação, a seção Comprova Explica decidiu trazer detalhes sobre o caso.

COMO VERIFICAMOS

Para explicar o caso, a equipe solicitou à 1ª Vara do Júri de Fortaleza a íntegra dos autos do processo. São mais de 1,7 mil páginas, que incluem o inquérito policial, os laudos periciais, depoimentos de testemunhas, denúncia do Ministério Público, toda a fase de instrução do processo, as audiências e dois julgamentos pelo Tribunal do Júri (júri popular), além dos recursos da defesa e mandado de prisão.
Também foi acionado o MPCE, para saber se havia novidades em relação a versões sobre o caso, o Instituto Maria da Penha e o atual advogado de Viveros.

O QUE FOI O CASO DE MARIA DA PENHA?

Maria da Penha Maia Fernandes nasceu em Fortaleza, em 1º de fevereiro de 1945. Ela é farmacêutica bioquímica, autora do livro "Sobrevivi… posso contar" (1994) e fundadora do Instituto Maria da Penha.
Em 1974, quando cursava o mestrado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), Maria da Penha conheceu o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. À época, Viveros fazia pós-graduação em Economia na mesma instituição.
Eles começaram a namorar e, dois anos depois, em 1976, casaram-se. Após o nascimento da primeira filha e da conclusão do mestrado de Maria da Penha, os dois se mudaram para Fortaleza, onde nasceram as outras duas filhas do casal.
As agressões de Viveros contra a esposa, segundo o site do IMP, começaram quando o colombiano obteve a cidadania brasileira e se estabilizou profissional e economicamente no Brasil. "Agia sempre com intolerância, exaltava-se com facilidade e tinha comportamentos explosivos não só com a esposa, mas também com as próprias filhas", diz a publicação.
Em maio de 1983, aos 38 anos, Maria da Penha foi vítima de uma tentativa de homicídio (à época, o feminicídio ainda não tinha sido tipificado) por parte de Viveros. Enquanto dormia, foi baleada com um tiro nas costas, que a deixou paraplégica devido a lesões irreversíveis na terceira e quarta vértebras torácicas, laceração na dura-máter e destruição de um terço da medula esquerda.
A denúncia do MPCE, que resultou na condenação de Viveros pelo crime, também aponta que ele tentou eletrocutá-la durante o banho meses depois do tiro, quando ela havia retornado para casa após quatro meses internada, em tratamento médico.
O homem declarou à polícia que o que aconteceu no primeiro caso foi uma tentativa de assalto, versão que não se sustenta a partir de depoimentos de vizinhos e das empregadas domésticas que trabalhavam na casa da família. Mesmo assim, a tese voltou a ser difundida recentemente.
A pedidos de jornalistas do Projeto Comprova, a 1ª Vara do Júri de Fortaleza, onde o crime foi julgado, concedeu acesso à íntegra dos autos do processo criminal a respeito da tentativa de homicídio que deixou Maria da Penha paraplégica. Com base no processo, o Comprova explica o que aconteceu desde o início da manhã de 29 de maio de 1983 até o fim de julho de 2023, quando a defesa de Viveros pediu que o caso fosse desarquivado.


O QUE ACONTECEU NO INÍCIO DA MANHÃ DE 29 DE MAIO DE 1983?

Maria da Penha, então com 38 anos, foi baleada com um tiro de espingarda enquanto dormia em sua casa, na Rua Fausto Cabral, nº 116, no bairro Papicu, em Fortaleza. Na casa, além dela, viviam Viveros, então com 36 anos, as três filhas do casal – Viviane, 6 anos; Claudia Fernanda, 4; e Fabíola, 2. Também dormiam no imóvel duas empregadas domésticas, Francisca Olindina Salvador de Abreu e Rita Teles Sousa, em um quarto separado da casa por um portão de ferro, próximo à área de serviço. Além de Maria da Penha, Viveros foi baleado no ombro direito, o que foi atestado pelo exame de corpo de delito feito no dia 6 de junho de 1983, uma semana após o caso, e assinado pelos peritos médicos Marco Fábio Mota Soares e Manoel Paulo da Ponte Neto, do Instituto Médico Legal do Ceará (leia mais abaixo sobre a perícia).


QUAL ERA A TESE INICIAL DA POLÍCIA?

A primeira tese investigada pela Polícia Civil do Ceará foi a mesma apresentada por Viveros, de que a casa da família tinha sido alvo de um arrombamento. Inicialmente, o delegado à época responsável pela Delegacia de Furtos e Roubos de Fortaleza, José Nival Freire da Silva, tratou tanto ele quanto Maria da Penha como vítimas de um assalto.
O delegado chegou a determinar, no dia seguinte ao crime, que, a partir daquela data, todos os suspeitos ou presos em flagrante por roubo encaminhados àquela delegacia fossem investigados acerca do "assalto à mão armada" na casa de número 116 na Rua Fausto Cabral, onde vivia o casal.


O QUE VIVEROS DISSE EM DEPOIMENTO?

Viveros manteve versões bem parecidas da história em depoimentos à Polícia Civil e à Justiça, embora, no segundo depoimento à polícia, tenha ficado em dúvida sobre o número de tiros disparados. No primeiro, prestado ao delegado José Nival em 7 de junho de 1983, ele disse que, naquela madrugada, por volta das 5h15, estava dormindo em seu quarto junto com sua esposa quando "despertou por ouvir seu cachorro latir, tendo se levantado, ocasião em que ouviu também alguns ruídos no teto da casa".
Ele acrescentou que esses barulhos eram normais, provocados por gatos, mas que "neste dia, após ouvir estes ruídos, parou um pouco e ficou prestando atenção o que seria aquele barulho". Viveros então disse que resolveu levantar e pegar um revólver e uma lanterna que estavam perto de sua cama. De lá, foi aos quartos das filhas, onde ligou a lanterna e constatou que tudo estava normal. O próximo passo foi ir até a cozinha e a lavanderia para verificar se havia alguém na casa. Foi quando, segundo ele, a cachorra latiu novamente e ele percebeu uma sombra em uma abertura no teto que dava acesso ao forro da casa.
Viveros afirmou que apontou o revólver para a abertura do teto usando as duas mãos e que, neste momento, ouviu um disparo vindo do interior da casa —seria, em sua versão, o tiro que atingiu a esposa. Também afirmou que, "no momento preciso em que ia disparar a arma em direção ao citado buraco foi agredido de surpresa, pelas costas, sentindo que alguém colocara uma corda em seu pescoço". À proporção em que essa pessoa apertava seu pescoço, ela tentava lhe tomar a arma com a outra mão e lhe dava porradas com o braço e com o joelho, jogando-o contra a parede.
Ainda conforme o relato de Marco Antonio, neste momento, um segundo assaltante tentou lhe tomar a arma, enquanto ele chutava e continuava tentando se livrar do outro oponente, sem conseguir atirar contra o homem caído por conta da posição em que estava durante a luta.
A ata do depoimento descreve o momento em que ele foi atingido: "A luta continuou, tendo o depoente, de repente, sentido que o segundo agressor tomava a arma de sua mão e apontava para sí (depoente), ocasião em que o depoente, de imediato, pegou na mão do segundo agressor, desviando a arma, momento em que ele disparou e atingiu depoente na altura do ombro direito".
Ele contou à polícia que, após o tiro, ouviu a voz de uma mulher dentro da casa gritar: "Negão, vamos embora". Os assaltantes, segundo Viveros, fugiram após ele ser baleado e perder os sentidos, levando 375 mil cruzeiros em espécie (aproximadamente R$ 136, em valores atuais) e seu revólver. Ele afirmou que só foi se recordar de alguma coisa no dia seguinte, no Hospital Geral de Fortaleza – embora tenha sido levado para outra unidade, o Instituto José Frota.
Viveros acrescentou que soube por intermédio das empregadas da casa e dos vizinhos que os assaltantes fugiram pela porta principal e pelo portão da garagem, já que os dois acessos foram encontrados abertos pelas trabalhadoras quando elas foram gritar por socorro. Por fim, contou que só soube que Maria da Penha tinha sido baleada no dia 1º de junho, pela equipe médica, e que a polícia contou apenas no quinto dia após o crime que ela tinha sido atingida por um tiro de escopeta (espingarda). Disse ainda que não sabia se ela tinha sido atingida na cama ou andando pela casa, já que ficou inconsciente após levar um tiro no ombro.


O QUE DISSE A PERÍCIA?

Uma equipe de perícia esteve no local do crime no dia 30 de maio de 1983, ocasião em que ainda se trabalhava com a tese de assalto. No entendimento dos peritos, os assaltantes teriam entrado na garagem da casa escalando um muro; usado, possivelmente, uma chave de fenda para arrombar o porta-malas do carro estacionado; retirado de dentro do veículo um macaco mecânico, do tipo sanfona; e, finalmente, posicionado a ferramenta entre as pérgolas do jardim de inverno, forçando-as na abertura, para conseguir acessar o interior da casa.
Os peritos atestaram que a porta principal da casa tinha características de arrombamento, bem como sinais de luta corporal na sala e no escritório. "No quarto do casal verificou-se sobre o colchão da cama mancha avermelhada que ficou evidenciado ser sangue, além de se constatar sinais de luta na referida dependência", dizem os autos.
No terreno baldio ao lado da casa, os peritos encontraram um cartucho intacto, calibre 20, de fabricação nacional da C.B.C Cruzeiro e uma luva de tecido de algodão com manchas de óleo diesel, na cor bege clara.
O exame da arma de fogo usada no crime, uma espingarda, foi realizado em 9 de fevereiro de 1991 pelo diretor Francisco Antonio Mendonça Barbosa e pelos peritos Francisco de Assis Oliveira Filho e Ranvier Feitosa Aragão, no Instituto de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública, em Fortaleza (CE). Até a conclusão do inquérito, em julho de 1984, a espingarda não havia sido apreendida pela polícia, e os autos do processo não deixam claro quando ou como a arma foi localizada.
Aos peritos, foi apresentada uma arma de fogo classificada como espingarda de pressão de calibre 4,5mm, modelo LL 300, número de série 90740, acabamento oxidado, com empunhadura e coronha de madeira, massa de mira fixa, capacidade para um só tiro, cano raiado com orientação dextrogira (que se volta para a direita). O estado de funcionamento da arma era bom e ela estava apta para realização de disparo.

Entre as observações feitas pelos peritos estava a de que seria impossível ao ser humano "distinguir os calibres nominais das armas (revólver calibre 38 e espingarda calibre 20) pelas intensidades dos sons característicos de suas cargas de propulsão, em qualquer circunstância". Ou seja, os sons poderiam ser ouvidos, mas não distinguidos em seus calibres. Eles também não conseguiram precisar de que distância o tiro foi disparado.
Por fim, há os exames de corpo de delito feitos em Viveros e Maria da Penha. O dele foi feito no dia 6 de junho, e os peritos médicos Marco Fábio Mota Soares e Manoel Paulo da Ponte Neto confirmaram ferimento por arma de fogo na região do ombro direito. Eles apontaram que o tiro provocou "ofensa à integridade corporal ou à saúde do paciente", mas negaram que o ferimento tivesse resultado em incapacidade para as ocupações habituais, em perigo de vida ou em debilidade, incapacidade ou deformidade permanente.
Não foi o mesmo para Maria da Penha. O primeiro exame de corpo de delito nela foi feito também em 6 de junho de 1983 pelas peritas médicas Alzira Guerra Saldanha e Maria Solange Nobre Sampaio, ainda no Hospital Geral de Fortaleza. Elas apontaram que a paciente tinha sido atingida com um tiro na região dorsal, que se encontrava paraplégica e se queixava de dores na região torácica. Confirmaram que o tiro provocou "ofensa à integridade corporal ou à saúde da paciente", que havia resultado em incapacidade para as atividades habituais por mais de 30 dias, em perigo de vida e em debilidade permanente.
Sobre o tiro ter causado "incapacidade permanente para o trabalho, ou enfermidade incurável ou deformidade permanente", disseram que era necessário aguardar um novo exame após a conclusão do tratamento, o que acabou confirmado pelo exame de sanidade feito em 10 de fevereiro de 1984 pelos peritos médicos Almir Gomes de Castro e Múcio Roberto Alves Pereira: eles constataram que Maria da Penha teria "paralisia irreversível de membros inferiores".


O QUE MARIA DA PENHA DISSE EM SEUS DEPOIMENTOS?

Após ser baleada nas costas enquanto dormia, Maria da Penha ficou internada por cerca de dois meses no Hospital Geral de Fortaleza e, depois, viajou a Brasília (DF), onde se submeteu a um tratamento até meados de outubro de 1983, de acordo com os autos do processo. Só em janeiro de 1984 é que ela foi ouvida pelo delegado responsável pelo inquérito, José Nival, da Furtos e Roubos.
No depoimento prestado no dia 10, ela disse que acordou por volta das 6h do dia 29 de maio de 1983 com um barulho de um tiro e que, primeiro, não percebeu que tinha sido atingida, mas que "passou a perder as forças e notou que alguma coisa parecida com sangue borbulhava em suas costas". Em seguida, ela ouviu barulhos na casa, como se fosse uma luta corporal, e ouviu uma das filhas chorar. O barulho de um segundo disparo de arma de fogo foi percebido na sequência.
Ela, então, chamou por Rita, uma das empregadas, e pediu a ela que ligasse para duas amigas, já que não queria assustar a mãe, mas soube, em seguida, que a linha telefônica estava cortada. Pediu, então, que a moça telefonasse da casa de um vizinho. Quem chegou primeiro para prestar socorro foi um casal de médicos que morava na rua, que a examinou e disse que o caso era muito grave.
Maria da Penha relatou à polícia que ficou sabendo no hospital que tinha sido atingida por um tiro de espingarda. Acrescentou que soube por uma das empregadas da casa que o marido tinha uma arma como aquela e que, 30 dias após o crime, a funcionária havia conferido se a arma estava no guarda-roupa em que ficava guardada, mas não estava.
No depoimento, ela afirmou que era casada com Viveros há cinco anos e que os dois tiveram três filhas, mas que "seu esposo toda vida foi uma pessoa muito grosseira e agressiva com todos de casa; que devido aos maus-tratos sofridos por parte de seu esposo a declarante diz que já estava resolvida a se separar dele" e que "no dia em que saiu de casa para morar com a mãe (após o crime), descobriu que o seu marido tinha uma amante chamada Auxiliadora, moradora de Natal (RN), com quem trocava cartas".

Por fim, ela disse ter estranhado que os assaltantes não tivessem roubado suas joias, que estavam expostas, nem usado o carro do marido na fuga, e disse não entender por que tinha sido baleada dormindo, já que não oferecia qualquer obstáculo à ação dos supostos criminosos.


EM QUE MOMENTO VIVEROS PASSOU DE VÍTIMA A SUSPEITO DO CRIME?

Entre janeiro e fevereiro de 1984, o delegado José Nival Freire da Silva ouviu as duas empregadas da casa: primeiro, Francisca, e depois Rita. As duas dormiam em um quarto isolado, separado da casa por um portão de ferro, perto da área de serviço. Ambas acordaram com os gritos de socorro vindos de Viveros, mas nenhuma das duas ouviu os tiros.
Os depoimentos das trabalhadoras foram fundamentais para o avanço da investigação porque elas contaram à polícia sobre a rotina da casa e o comportamento grosseiro de Viveros, tanto com a esposa quanto com as empregadas e as próprias filhas. Disseram que ele costumava aplicar castigos físicos às meninas, que, frequentemente, precisavam ser tratadas com pomadas, dada a força dos golpes.
Também afirmaram categoricamente que Viveros possuía uma espingarda —arma que ele não havia mencionado à polícia e que, depois, negou ter, tanto em um segundo depoimento quanto em duas acareações. Ainda assim, elas mantiveram seus depoimentos. Francisca disse ter visto a espingarda dentro de um guarda-roupa cerca de 30 dias antes do crime.
No depoimento prestado ao delegado em fevereiro, Rita confirmou a existência da espingarda e disse ter observado a arma sendo limpa por Viveros.
Rita confirmou que o patrão "tratava mal" a esposa, as filhas e as empregadas e, assim como Francisca, confirmou que, após o suposto arrombamento, as joias de Maria da Penha e de Viveros, assim como as chaves do carro dele, estavam em locais de fácil acesso. Algumas, inclusive, estavam sobre o mesmo móvel em que o dinheiro levado pelos supostos assaltantes se localizava.
Três dias após o depoimento de Rita, em 9 de fevereiro de 1984, o delegado José Nival Freire da Silva deu sinais de que desconfiava de Viveros: enviou um ofício ao Departamento de Polícia Federal pedindo informações sobre os antecedentes dele, inclusive em seu país de origem, a Colômbia.
O delegado justificou o pedido dizendo que "a pessoa supra qualificada foi vítima de suposto assalto à mão armada juntamente com sua esposa Maria da Penha Maia Fernandes Heredia, resultando ferimentos leves no mesmo, enquanto que sua mulher encontra-se atualmente paraplégica, existindo indícios de que a ação delituosa (assalto) tenha sido simples simulação".
A Polícia Federal respondeu ao titular da Delegacia de Furtos e Roubos que nada constava em desfavor de Viveros. Já a Polícia Civil investigava o paradeiro de um carro dele, um Passat (veja mais detalhes abaixo).
Em junho de 1984 foi quando as coisas mudaram de vez. Uma operação de busca e apreensão na casa de Viveros levou policiais a um revólver da marca Taurus, em nome do novo suspeito. Mais tarde, a Justiça apontaria esta arma como a mesma que Viveros disse ter sido levada no dia do crime pelos supostos assaltantes. Em 28 de junho, ele foi interrogado novamente; desta vez, não mais como vítima, mas como suspeito do crime.


ALGUÉM TESTEMUNHOU O TIRO CONTRA MARIA DA PENHA?

Não. Ela estava dormindo no momento do disparo e não viu o atirador, assim como as filhas crianças e as duas empregadas domésticas, que acordaram com os gritos de socorro do então marido. No entanto, os depoimentos de vizinhos ajudaram a apontar incongruências na história relatada por Viveros. Ele disse que acreditava que os supostos assaltantes tinham fugido pela porta da frente da casa e pela garagem, e que não achava que a fuga teria ocorrido pelos fundos por causa da presença da cachorra da família.
No entanto, nenhum dos vizinhos que saiu à rua após ouvir os tiros testemunhou alguém fugindo, tampouco as empregadas da casa. O primeiro vizinho a aparecer foi o engenheiro agrônomo José Osvaldo Araújo, que ouviu um dos disparos e chamou a polícia. Apesar de Marco Antonio ter dito que ficou insconsciente, o vizinho disse tê-lo visto sair de casa e ir andando até a viatura da polícia que o levou ao hospital.
Outro que não aparece entre as testemunhas, mas é citado em muitos depoimentos e no relatório final do inquérito policial, é o vigia José Nilson da Silva. Ele trabalhava em uma casa em construção em frente à residência do casal e afirmou que não viu ninguém sair da casa de Maria da Penha após os tiros.
Francisco Brasileiro Marques de Sousa é outra testemunha de acusação. Os fundos da casa dele dão para os fundos da casa do casal, e ele contou à polícia que estava acordado quando ouviu os dois tiros, com um intervalo de dois a três minutos entre eles. Ele também ouviu os gritos de socorro e colocou um banco ao lado do muro de sua casa para olhar para o outro lado, mas não viu ninguém fugindo. Também disse que, no terreno baldio ao lado do imóvel, não tinha onde se esconder.
No relatório final do inquérito, o delegado destaca que esse intervalo entre um tiro e outro mencionado por Francisco era "tempo suficiente para o indiciado fingir uma suposta luta e se autolesionar".
Também vizinho, Helio Teixeira Maia não estava no local no momento dos tiros, mas ouviu do vigia José Nilson que ninguém tinha saído do imovel. Contou que, dias depois, os vizinhos decidiram fazer uma reunião para contratar vigilantes noturnos e que Viveros foi à reunião sem demonstrar trauma, o que causou estranheza.
A última testemunha de acusação, Angelita Barreto Fernandes, também não presenciou o fato, mas era vizinha da mãe de Maria da Penha e, a pedido de uma irmã, foi até o hospital. Sem saber que Maria havia sido atingida, encontrou com Viveros aguardando para fazer um raio-x, usando uma pulseira dourada que havia permanecido em seu braço mesmo após a luta corporal narrada por ele. Marco Antonio lhe perguntou pela esposa e, em seguida, disse que estava "banido", sem explicar o que significava. Angelita disse ter ouvido de uma irmã de Maria da Penha que Viveros tinha coberto o rosto com um lençol já no hospital e dito que havia sido "muito burro".
Nenhuma das testemunhas de defesa do então marido presenciou o crime. Todas ouviram falar do caso pelos jornais ou por ele mesmo. Falaram sobre uma campanha para arrecadar dinheiro para que ele fosse a Brasília, onde Maria da Penha estava sendo tratada, e comentaram sobre a relação normal dele com a família.


O QUE DISSE MARIA DA PENHA NO SEGUNDO DEPOIMENTO?

No segundo depoimento, de 3 de julho de 1984, após a polícia informar sobre novas linhas de investigação, Maria da Penha disse que, ao perceber que foi atingida, "logo teve o pressentimento de que seu esposo seria o autor o disparo", e que ouviu barulhos pela casa seguidos de outro disparo, mas que, de onde ela estava, não era possível dizer se a luta acontecia mesmo ou não.
Ela relatou que, um mês após voltar do tratamento médico em Brasília, ela entrou na Justiça com um pedido de separação de corpos – uma medida que antecede o divórcio – motivada pelos maus-tratos dele, que não permitia que ela se relacionasse com os familiares ou que recebesse visitas de vizinhos. Na partilha, Viveros ficou com um carro modelo Chevette, já que havia dito que seu veículo, um Passat, tinha sido perdido em uma batida – mais tarde, a polícia descobriu que o carro tinha sido vendido. Ela também relatou que ele maltratava as filhas, que tentou pressioná-la a fazer um seguro de vida em que ele seria o beneficiário e citou um caso envolvendo um chuveiro.
Segundo Maria da Penha, o marido instalou um chuveiro elétrico para que ela tomasse banho em casa, já de volta a Fortaleza após tratamento na capital federal, mas o chuveiro dava choques e ela o questionou sobre isso. Ele teria dito que era porque faltava um fio-terra, mas que colocaria depois. Ela contou que não usou mais o chuveiro temendo ser eletrocutada e que este temor vinha dos maus-tratos que sofria, o que fez com que ela acreditasse que os choques eram propositais.
No depoimento durante a fase de instrução do processo, ela repetiu a versão. Afirmou que acordou com o barulho de um estampido e uma sensação de queimadura nas costas e que, imediatamente, pensou que o tiro tivesse partido do marido. Acrescentou que ficou imóvel, temendo um segundo disparo. Depois, pensou se não seria mesmo um assalto e se ela não estaria fazendo mau juízo dele. Mais uma vez, confirmou que ele se queixava dos familiares que a visitavam.


VIVEROS TINHA UMA AMANTE? ISSO INFLUENCIOU NO CASO?

Tinha. Em alguns vídeos publicados nas últimas semanas, youtubers e influenciadores apontam que Maria da Penha teria sido mesmo baleada por um assaltante e que, somente após descobrir que o marido tinha uma amante, é que decidiu acusá-lo de tentativa de assassinato. Mas não foi bem assim. Pelos autos do processo, fica claro que o delegado do caso disse à Polícia Federal que suspeitava de Viveros após os depoimentos de Maria da Penha, das duas empregadas da casa e do laudo de sanidade da vítima, que apontava paralisia irreversível.
A existência da amante é mencionada pelo delegado, mas não recebe o mesmo destaque que as contradições sobre a presença de assaltantes —que ninguém viu fugir—, sobre Viveros ter uma espingarda e sobre a gravidade das lesões de Maria da Penha, sobretudo em comparação com as dele.
Além disso, a farmacêutica disse mais de uma vez que, à época do crime, já não mantinha relações sexuais com o marido há cerca de seis meses e que, quando descobriu sobre a amante, depois do tratamento em Brasilia, já havia se decidido a deixar a casa onde morava com o marido.
O caso foi evidenciado após Maria da Penha encontrar cartas de uma mulher chamada Auxiliadora, endereçadas ao então marido, em uma pasta no escritório dele, junto com comprovantes de AR (aviso de recebimento) de correspondências dele para Auxiliadora. À polícia, ele confirmou que se correspondia com a mulher e que, inicialmente, ela não sabia que ele era casado, e que só passaram a se envolver mais intimamente após a separação.


O QUE DISSE A JUSTIÇA? RESTOU ALGUMA DÚVIDA?

No dia 6 de julho de 1984, o delegado José Nival Freire da Silva concluiu o inquérito policial, indiciando Viveros pelo crime de tentativa de homicídio qualificado contra Maria da Penha. O inquérito foi enviado ao Ministério Público do Ceará, que, por sua vez, denunciou ele à Justiça em 28 de setembro de 1984.
Antes da primeira decisão da Justiça, a defesa de Viveros alegou que a denúncia e o próprio inquérito tinham "cunho meramente indiciário, com presunções, ilações, conjecturas", sem qualquer testemunha que atestasse que o crime tivesse sido cometido por ele. Também alegou que o relatório da polícia não levava em conta a perícia feita no local do crime e, por isso, pedia que a denúncia fosse julgada improcedente.
Não foi o que entendeu a então juíza titular da 1ª Vara do Júri de Fortaleza, Maria Odele de Paula Pessoa. No dia 31 de outubro de 1986, ela decidiu aceitar a denúncia do Ministério Público e expedir uma sentença de pronúncia, o que significa que vira elementos suficientes para que o réu fosse julgado pelo Tribunal do Júri.
Sobre a argumentação de que a denúncia era baseada em indícios, a juíza disse que, nesses casos, é preciso provar se os indícios estão em harmonia ou desacordo com as demais provas do processo. Em seguida, listou fatos apontados na denúncia e no inquérito, como o réu ser dono de uma espingarda, mesmo que não tenha admitido; nenhuma testemunha ter visto pessoas estranhas fugindo da casa; o réu não viver em harmonia com a esposa, ter um comportamento grosseiro e ter uma amante; e um revólver ter sido encontrado na casa do réu, mesmo ele tendo dito que sua arma tinha sido levada pelos assaltantes.
Para Maria Odele, Viveros não esclareceu completamente os fatos relacionados ao crime e que o apontavam como responsável pela tentativa de homicídio, de modo que ele não podia, apenas negando a autoria, convencer que era inocente.

A defesa recorreu da sentença de pronúncia apenas em 1987. O desembargador que julgou o recurso, Carlos Facundo, considerou que a defesa demorou a fazer o pedido e o negou, apontando que, naquele caso, havia "uma verdadeira demora e descaso em se dar prosseguimento ao andamento regular do processo".
O julgamento finalmente ocorreu, em 4 de maio de 1991, quando os sete jurados que formaram o Conselho de Sentença precisaram responder às seguintes perguntas:
  1. O réu Marco Antonio Heredia Viveros, no dia 29 de maio de 1983, por volta das 5h, no interior do imóvel de nº 116 da Rua Fausto Cabral, bairro Papicu, Fortaleza, munido de instrumento perfuro-contundente, produziu em Maria da Penha Maia Fernandes a lesão descrita no auto de exame de corpo de delito?
  2. O réu, assim agindo, deu início à execução de crime de homicídio que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade?
  3. O réu cometeu o crime por motivo torpe?
  4. O réu usou de recurso que tornou impossível a defesa da vítima, isto é, efetuando o disparo contra a mesma enquanto ela dormia?
  5. Há atenuantes em favor do réu?
O que os jurados decidiram:
Ao primeiro quesito: Sim, por seis votos.
Ao segundo quesito: Sim, por seis votos.
Ao terceiro quesito: Sim, por cinco votos.
Ao quarto quesito: Sim, por sete votos. (O quesito foi repetido por contradição com a resposta ao primeiro quesito, já que um dos jurados negou a autoria do fato imputado ao réu).
Ao quarto quesito: Sim, por seis votos.
Ao quinto quesito: Não, por quatro votos.
Ou seja, o Tribunal do Júri reconheceu que Viveros foi o autor do disparo efetuado contra a vítima; que o réu, assim agindo, deu início à execução de crime de homicídio contra a vítima, o qual não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade; e que o crime de tentativa de homicídio fora praticado por motivo torpe e com uso de recurso que tornou impossível a defesa da vítima (incisos I, IV do Art.121, § 28, do Código Penal).
Com base na decisão do júri, a juíza Maria Odele de Paula Pessoa estipulou uma pena de 15 anos de reclusão, que foi reduzida para 10 anos porque, de acordo com o parágrafo único do artigo 14 do Código Penal Brasileiro, a pena é diminuída de um a dois terços quando o crime é tentado, mas não consumado.


POR QUE ELE DEMOROU A SER PRESO?

No dia do julgamento de 1991, a defesa de Viveros pediu que ele aguardasse em liberdade pelo julgamento da apelação da sentença, o que foi concedido pela juíza. Por isso, apesar de condenado a 10 anos de prisão, ele saiu do Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza, em liberdade.
Entre o recurso da defesa e um parecer do Tribunal de Justiça do Ceará foram mais quatro anos, incluindo a anulação do primeiro julgamento por falha na formulação das perguntas ao júri, até que a 2ª Câmara Criminal do TJCE decidiu por unanimidade, em abril de 1995, mandar que Marco Antonio fosse novamente julgado. Eles entenderam que não se podia negar que havia indícios de que o réu era o autor do crime e que esses indícios se aliavam às contradições dele próprio, ao fato de ter negado ter uma espingarda, aos depoimentos de vizinhos, que não viram ninguém fugindo, e ao fato de ele ter um péssimo relacionamento conjugal com a esposa, além de ter um caso extraconjugal.
O segundo Tribunal do Júri foi realizado em 14 de março de 1996. Desta vez, os sete jurados foram unânimes em apontar que Viveros tinha sido o autor do tiro contra Maria da Penha. A pena no segundo julgamento foi de 10 anos e seis meses de prisão, mas, novamente, ele saiu livre do tribunal após mais um recurso de apelação, desta vez, a uma instância superior.
A defesa de Viveros alegou que o julgamento tinha ido de encontro às provas dos autos e também questionou a pena estabelecida. Foi a vez do desembargador Francisco Gilson Viana Martins decidir que não haveria um novo julgamento, mas que a pena seria reduzida para oito anos e seis meses de reclusão, já que, ao calcular a punição, a Justiça contou duas vezes a qualificadora de homicídio qualificado, que soma dois anos à pena. Já era 22 de maio de 1998 e, dali a uma semana, o crime completaria 15 anos.

Naquele ano de 1998, Maria da Penha, o Cejil (Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e o (Cladem) (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) denunciaram o caso à CIDH/OEA (Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos). Após receber quatro ofícios da CIDH/OEA, o Brasil foi responsabilizado, em 2001, por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras. Além disso, recebeu quatro recomendações:
  • dar uma resposta rápida e efetiva ao caso de Maria da Penha Fernandes, fazendo cumprir a condenação de seu agressor;
  • fazer "investigação séria, imparcial e exaustiva" a respeito das irregularidades e atrasos no caso;
  • assegurar à Maria da Penha uma reparação simbólica e material por não oferecer recurso rápido e efetivo, por manter o caso na impunidade por mais de 15 anos e por impedir com esse atraso a possibilidade indenização civil;
  • reformar as leis do país de forma a evitar a tolerância e o tratamento discriminatório à violência doméstica contra mulheres no Brasil.
relatório 12.051 elaborado pela CIDH/OEA sobre o caso Maria da Penha está disponível para qualquer pessoa que quiser lê-lo.
A despeito da denúncia feita à CIDH/OEA, os advogados de Viveros recorreram novamente, desta vez ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 1999. Enquanto a apelação corria no STJ e o Brasil era responsabilizado internacionalmente pelo caso, o Ministério Público do Ceará pediu, em 2002, ao juiz da 1ª Vara do Júri de Fortaleza, que expedisse o mandado de prisão de Viveros, o que ocorreu em 2 de outubro daquele ano, 19 anos após o crime.

Viveros foi preso em 29 de outubro de 2002 em Natal. Em março de 2004, ele conseguiu ir para o regime semiaberto e, em fevereiro de 2007, conseguiu a liberdade condicional. Em março de 2016, o TJCE disponibilizou ao público uma cópia do processo no memorial do Tribunal. O espaço, contudo, passou por um incêndio em setembro de 2021. A cópia que se encontrava lá não foi atingida, mas, segundo o Tribunal, os autos foram digitalizados depois disso e o processo foi arquivado definitivamente.
Recentemente, Viveros concedeu entrevista a um canal no YouTube, em que repetiu sua versão para a história e, em junho de 2023, um de seus advogados pediu o desarquivamento dos autos "para instruir futura revisão criminal", o que foi negado no dia 20 de julho pelo juiz Antônio Edilberto Oliveira Lima.


COMO SURGIU A LEI MARIA DA PENHA E QUAIS OS EFEITOS DELA?

Diante da falta de medidas legais e ações efetivas, como acesso à Justiça, à proteção e à garantia de direitos humanos a vítimas de violência doméstica, foi formado, em 2002, um Consórcio de ONGs Feministas para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher.
O Projeto de Lei nº 4.559/2004 da Câmara dos Deputados chegou ao Senado Federal (Projeto de Lei da Câmara nº 37/2006) e foi aprovado por unanimidade em ambas as Casas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), então em seu primeiro mandato, sancionou a lei nº 11.340, em 7 de agosto de 2006.
A lei, conforme o STJ, cumpre determinações estabelecidas pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da OEA, aprovada em Belém em 1994 e promulgada pelo Brasil em 1996, por meio do decreto 1.973.
Como uma das recomendações da CIDH foi reparar Maria da Penha tanto material quanto simbolicamente, o estado do Ceará pagou a ela uma indenização, e o governo federal batizou a lei com o seu nome como reconhecimento de sua luta contra as violações dos direitos humanos das mulheres.
Em abril de 2023, Lula sancionou mudanças na Lei Maria da Penha com o objetivo de garantir que medidas protetivas de urgência sejam concedidas mais rapidamente e sem muita burocracia.
A lei prevê ainda que essas medidas protetivas de urgência sejam concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial e do registro de boletim de ocorrência. De acordo com o Painel de Monitoramento das Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria da Penha, atualizado pelo Conselho Nacional de Justiça, só em 2023 foram concedidas 216.985 medidas protetivas de urgência no Brasil.


POR QUE EXPLICAMOS

O Comprova Explica esclarece temas importantes para que a população compreenda assuntos em discussão nas redes sociais que podem gerar desinformação. No caso Maria da Penha, a versão do homem condenado por tentativa de homicídio circula de forma isolada e está sendo tomada como verdade, sem que seja considerada a palavra da vítima, a investigação policial, do Ministério Público e dois julgamentos. O discurso compartilhado fora de contexto levanta suspeitas infundadas sobre a vítima e, como consequência, sobre a necessidade de políticas públicas de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no país.


OUTRAS CHECAGENS SOBRE O TEMA

A alegação de que Maria da Penha teria sido baleada por assaltantes, e não pelo marido, já foi desmentida por diversas agências de checagem e veículos de comunicação, como UOLAos FatosFato ou FakeEstadão.
Anteriormente, na seção Comprova Explica, o projeto mostrou, por exemplo, o que é a teoria da conspiração da Nova Ordem Mundial.

A investigação desse conteúdo foi feita por Estadão, Plural e Grupo Sinos e publicada em 9 de julho pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 41 veículos na checagem de conteúdos virais. Foi verificada por Folha, Nexo, O Popular, O Povo e Diário do Nordeste

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/entenda-o-caso-de-maria-da-penha-que-originou-lei-de-protecao-a-mulheres-vitimas-de-violencia-no-brasil.shtml



Nota: esta cópia da reportagem do Comprova estava no grupo Lei Maria da Penha Contra a Violência à Mulher e o robô do facebook removeu por contrariar as regras do robô do facebook, que lê as palavras, mas NÃO sabe interpretar, ou juntar todo o conteúdo para entender e formar uma opinião a respeito.