Guarda-civil acusado de se esfregar numa criança em um ônibus é inocentado pela Justiça 50 anos depois
Arquivo pessoal |
REPORTAGEM de ROGÉRIO PAGNAN
Meses antes de morrer, vítima de um câncer no intestino, o ex-policial Mauro Henrique Queiroz chorou copiosamente diante do filho. Não pela doença. "Estou lutando contra uma coisa que eu não devo. Me condenaram, mas sou inocente", disse ao filho Amauri, 53.
O ex-policial revelava, ali, um segredo que guardava havia quase 40 anos. Tinha sido condenado, em 10 de julho de 1959, porque, para os juízes, ele passou o pênis no braço de uma menina de 11 anos dentro de um ônibus lotado. Pena: seis meses de detenção, convertidos em liberdade vigiada.
Pela mesma acusação foi expulso da corporação.
Diante do choro do pai, famoso por ser durão, Amauri fez uma promessa. "Pai, enquanto eu viver, vou lutar para limpar seu nome", afirmou.
Ele conseguiu. Depois de 50 anos, a Justiça admitiu a verdade, mas quase 11 anos depois da morte de Mauro, em 1998, aos 69 anos. A família Queiroz cumpriu a promessa.
Ônibus 122
A vida do então policial começou a mudar no dia 22 de janeiro de 1957 quando ele tomou o ônibus 122, linha Vila Galvão, às 10h35, de uma terça-feira. Dirigia-se ao trabalho, no Palácio de Justiça (o mesmo onde seria julgado), na região central de São Paulo.
Mauro era um policial da extinta Guarda Civil, uma espécie de polícia comunitária da época, onde ele trabalhava havia quase nove anos e apresentava uma ficha cheia de elogios. O filho Amauri tinha nove meses, e o casamento completava pouco mais de um ano.
Na época havia, porém, uma outra polícia com funções semelhantes: a Força Pública. A rivalidade entre as duas polícias era tamanha que a capital chegou a ser dividida em duas partes. A Força Pública policiava as zonas leste e norte, e a Guarda Civil ficava responsável pelas sul, oeste e centro. Em 1970, as duas foram unificadas.
Quando entrou no ônibus, Mauro percebeu que pelo menos seis homens da Força Pública já estavam no veículo. Todos estavam fardados.
Minutos depois, um homem sentado ao seu lado, dirigiu-lhe ofensas. "Guarda safado, sem vergonha", teria dito Mário Marcelo, segundo documentos da época. "É você mesmo que está encostando na menina."
Mauro, segundo seu depoimento, disse a Sônia Brasil, com então 11 anos: "Mocinha, encostei na senhorita?"
Com a negativa da menina, o guarda Mauro deu voz de prisão ao homem, mas foram policiais da Força Pública -um deles vizinho de Marcelo- que prenderam o policial.
Irregularmente, Mauro foi levado para o quartel da Força Pública, à base de tapas e socos. Deveria ter ido para uma delegacia. No quartel, a versão oficial mudou: Mauro não tinha apenas encostado na menina, mas tirado o pênis para fora e o esfregado no braço dela.
Só Marcelo, porém, viu crime. O criminoso estava cercado por rivais. Todos eles disseram não ter visto nada. "Faltar com a verdade" é considerado um crime grave nas PMs.
Condenação
A história era tão absurda e os depoimentos tão contraditórios que o juiz de primeira instância João Estevam de Siqueira Júnior absolveu, no início de 1959, o guarda "sob pena de praticar grave erro judiciário".
A Promotoria recorreu. "Só quem não viu nada nos autos foi o juiz, absolvendo o apelado, esquecendo-se de que temos esposas e filhas", escreveu o promotor José Cândido de Oliveira Costa. A tese do promotor foi aceita em segunda instância. Mauro foi condenado por ato obsceno.
O que mais pesou contra o guarda no segundo julgamento foram os depoimentos de Marcelo e de Sônia, que teria confirmado o assédio.
Já em 2003, temendo não conseguir cumprir a promessa ao pai, Amauri decidiu procurar ajuda. Lembrou que o amigo Álvares Nunes Júnior, um ex-administrador de empresas, hoje com 53 anos, tinha se formado advogado em 1997. Foi atrás dele.
Mesmo sendo especialista na área cível -processos de danos morais e materiais-, Nunes aceitou a empreitada. "A história era tão absurda que eu pensei: será que o homem [Mauro] não fez mesmo?", disse. "Só tinha uma solução: tentar encontrar a vítima. Se ela dissesse que aconteceu mesmo, então, era esquecer, enterrar o assunto", disse o advogado.
O próprio Mauro havia gasto quase todo o dinheiro que juntou durante a vida com advogados. Tentou duas revisões na Justiça, mas não havia um "fato novo" que justificasse reabrir o caso. Também contratou outros defensores que o aconselharam a desistir.
O advogado e o vendedor começaram a investigar nos registros de cemitérios e cartórios de imóveis. Pelo processo antigo, tinham os endereços da época e, por eles, rastrearam parentes distantes da "vítima" Sônia. "Tive que usar de um subterfúgio: dizer que ela [Sônia] tinha, talvez, um dinheiro a receber", disse.
Com o endereço na mão, Amauri chegou na porta da casa de Sônia em fevereiro de 2005. Viu caminhar por um estreito corredor a senhora de 64 anos (hoje), apoiada em uma bengala. O coração disparou. "E se ela dissesse que não iria falar nada? Se chamasse a polícia dizendo que eu estava a ameaçando?", lembrou ele.
Ao contrário de todos os seus temores, Sônia confirmou o que o pai disse. Mauro era inocente. "Minha avó é que fez tudo", disse a aposentada. "Eu vou aonde vocês quiserem para contar o aconteceu. Querem que vá agora?", afirmou.
À Folha, na quinta-feira, dona Sônia confirmou a versão contada pela família e pelo advogado, e lembrou da frase que Amauri disse naquele dia. "Eu prometi para meu pai que iria encontrá-la e encontrei", repetiu a senhora.
Amauri voltou para casa nas nuvens. Estava perto, enfim, a redenção de seu pai.
Além de se comprometer a ir à Justiça contar a verdade, Sônia também pediu o endereço de uma pessoa para ela própria contar o que aconteceu. A casa da viúva Maria Aparecida. "Eu fiquei emocionada [quando escutou sobre a inocência] e comecei a chorar. Nessas coisas aí a gente sempre tem o pé atrás", disse a viúva de Mauro.
Dias depois, Sônia estava na frente do juiz para dizer: "Mauro é inocente de ter feito coisa que não se deve fazer com uma criança dentro do ônibus. [...] Minha avó disse que o ônibus estava cheio e a pessoa abriu a calça dele, mas isso é mentira", diz trecho do depoimento.
Tinha-se o fato novo, e o Tribunal de Justiça anulou o processo. Não por falta de provas, mas por falta de ato criminoso. Mauro voltou ficar com o nome limpo.
Agora, a família tenta recuperar com uma outra ação a farda de Mauro que foi tirada, em cerimônia em frente aos colegas, dois dias depois de pegar o mesmo ônibus que Sônia. "Ele morreu quando tiraram a farda. Antes de acontecer isso, ele tocava gaita, dançava. Depois, perdeu toda a graça. Morreu ali", disse a viúva.
Lembrança
Enquanto ouvia o pai narrar toda sua saga, Amauri viu um filme passar em sua cabeça e começou, enfim, a entender porque aquele núcleo da família Queiroz (Maria Aparecida, Amauri e Silvio) sempre foi preterido pelos outros parentes. "Aí, você começa a lembrar das coisas que não conseguia entender: Por que a gente, quando criança, não era chamado para os aniversários? Por que meus primos, na mesma idade, ganhavam presentes [dos parentes] e nós não? Por que os parentes vinham de Barretos [para São Paulo] e não passavam lá em casa? Sabe por quê? Porque, para eles, éramos os filhos do tarado."
Da Folha de São Paulo de 01/11/09
Tudo isso causado por uma rivalidade besta, que ainda existe hoje em dia, mas Deus é justo e a honra de um homem foi-lhe devolvida.
ResponderExcluirParabéns ao filho, pela tenacidade e amor .
Eduardo
justiça sem nexo, policia civil, piada
ResponderExcluirEu estou com um problema semelhante. Tenho um cliente que foi apontado como um policial desonesto, foi absolvido na justiça militar, porém, demitido na polícia militar, até os dias de hoje tenta demonstrar que foi injustiçado. Procuramos até os dias de hoje a mulher e única que poderá dizer que tudo não passou de uma armadilha de pessoas de má-índole. Justamente na época da unificação das polícias.
ResponderExcluirA MATÉRIA ACIMA SOBRE MAURO SAIU NO DIA 1 DE NOVEMBRO DE 2009. MAS, NO DIA 10 DE NOVEMBRO TEMOS A NOTÍCIA CHOCANTE QUE A ABSOLVIÇÃO DE MAURO, HÁ MAIS DE UM ANO,TERIA SIDO PUBLICADA NO DIÁRIO OFICIAL, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, EQUÍVOCADAMENTE. SEGUNDO ALGUNS JUÍZES QUE PARTICIPARAM DAQUELA APRECIAÇÃO DO CASO MAURO, ELES TERIAM VOTADO, NA ÉPOCA, CONTRA O MESMO.
ResponderExcluirNO MEU ENTENDER ISTO MOSTRA DOIS ABSURDOS. O PRIMEIRO É QUE UM BRASILEIRO, PAI DE FAMÍLIA, MAURO, MESMO DEPOIS DA SUA SUPOSTA VÍTIMA AFIRMAR EM JUÍZO QUE NÃO FOI VÍTIMA DE CRIME ALGUM (TUDO AQUILO FOI UMA FARSA), TERIA SUA CONDENAÇÃO SIDO MANTIDA. ABSURDO 1!
O SEGUNDO ABSURDO É QUE A DECISÃO PELA ABSOLVIÇÃO FOI PUBLICADA, HÁ MAIS DE UM ANO, E NENHUM DESSES JUÍZES A QUESTIONARAM. O MINISTÉRIO PÚBLICO NEM MESMO RECORREU! PORTANTO, SERÁ QUE NÃO ESTAMOS NUM CASO ONDE OS JUÍZES ESTÃO QUERENDO REVER UM CASO JÁ JULGADO? ISTO SERIA TOTALMENTE IRREGULAR E SEM MOTIVO! A QUEM ISTO INTERESSA, UMA VEZ QUE A POPULAÇÃO APOIOU TOTALMENTE A ABSOLVIÇÃO DE MAURO? ABSURDO 2!
CABE CUMPRIMENTAR A FAMÍLIA DO EX GUARDA CIVÍL MAURO POR SUA LUTA E QUESTIONAR O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO.
"A emocionante história da "honra de Mauro", contada por Rogério Pagnan, mostra que a Justiça falha quando tarda.
ResponderExcluirE hoje, onde estão os "colegas" e algozes de Mauro Henrique Queiroz, que viveram os 50 últimos anos escondendo essa vergonha? Que seus nomes venham à tona."
ADILSON ROBERTO GONÇALVES (Lorena, SP)
COMENTÁRIO DE LEITOR SOBRE ESTE TEXTO PUBLICADO NA "FOLHA DE SÃO PAULO"
O caso do falecido Guarda Mauro entra em 2010 sem uma solução. São 53 anos da ocorrência do fato (negado pela própria suposta vítima) e 51 da primeira decisão da Justiça. Após a publicação desta matéria, com a população elogiando o Tribunal de Justiça de São Paulo pela decisão citada acima, um dos juízes afirmou ter havido erro de publicação da Sentença. Isto foi motivo para uma nova apreciação do caso, que propiciou a mudança da Sentença. Portanto, de forma absurda, o TJSP manteve a condenação deste homem.
ResponderExcluirLendo o texto vemos o esforço da família para encontrar a suposta vítima, a qual denunciou toda a farsa. O Ministério Público, que teoricamente poderia acusar Mauro, em vez disso, o defende com vigor.
Tudo isto foi desconsiderado na última decisão do Tribunal e os juízes rasgaram uma decisão com trânsito em julgado a mais de 1 ano (isto é completamente ilegal!).
Após toda esta esculhambação, só me resta questionar a quem interessa a manutenção da condenação deste Guarda. Com tantos capítulos estranhos, talvez a resposta desta pergunta seja a chave da solução deste caso.
Lí o texto e todos comentários! A população depende destes "Juízes" e eles atuam como imperadores. Fazem qualquer arbitrariedade, punem inocentes, liberam os culpados. Sem dar nenhuma satisfação a sociedade!
ResponderExcluirEste guarda civil inocente continua pagando pelo culpados. Bandidos que saem as ruas atacando a sociedade.
Um texto sobre este caso observava que errar é humano, mas persistir no erro é ....Isto realmente é certo, mas como persistir no erro por 50 anos? E ainda com claras provas da inocência deste policial.
O TJSP deveria ser questionado pela decisão citada no comentário acima. Ou ainda estamos numa ditadura?
ABAIXO REPRODUZO A INDIGNAÇÃO DO ADVOGADO DA FAMÍLIA DO GUARDA MAURO COM A SESSÃO IRREGULAR DE NOVO JULGAMENTO OCORRIDA DIAS DEPOIS DA PUBLICAÇÃO DESTA MATÉRIA DA FOLHA DE SÃO PAULO.
ResponderExcluirMEUS QUERIDOS AMIGOS:
EU lamento informar que numa atitude totalmente arbitrária do TJ, houve uma audiencia de "novo" julgamento do falecido Mauro Henrique Queiroz,onde alguns desembargadores 'MODIFICARAM SEUS VOTOS" A FIM DE MANTER A CONDENAÇÃO DO INFELIZ SOLDADO, JOGANDO SUA FAMÍLIA NOVAMENTE NO OSTRACISMO, NA DESONRA, NA INDIGNAÇÃO. Pode parecer incrível mas é real, o Tribunal "mudou" o Acórdão que absolvia Mauro, ignorou o depoimento da suposta vítima SONIA BRASIL, que desde o início da batalha, foi categórica em afirmar a inocência de Mauro, vítima de um ardil elaborado pela "canalhada" da época (1957) e, pasmem, corroborado novamente pela atitude arbitrária que ocorreu na 3ª Camara de Direito Criminal na data de hoje.
Coloco-me à disposição de qualquer pessoa para esclarecer o que fizeram com a família, é só mandar um e-mail para alvnunes@terra.com.br,
Agradeço a enorme solidariedade e apoio que dispensaram ao caso, mas ainda não acabou, necessito do precioso apoio de todos para se fazer justiça a um inocente, apesar das\atitudes arbitrárias da nossa Justiça.
Cordialmente.
Dr. Álvaro Nunes Júnior .'.
Advogado da família.
Dentro da Democracia, a ordem é mantida com a Justiça. O Progresso vem com a Ordem, mas o Amor é fundamental. A partir dessa matéria de Jornal houve uma reviravolta neste caso e este guarda inocente foi mantido culpado.
ResponderExcluirA Ordem, e a Democracia, sendo atacadas pela falta de Amor. Não se condena um homem inocente e muito menos se mantem sua condenação!
Esta Justiça não é compatível com o nosso regime dito Democrático.
Não existe Lei no Brasil que preveja a manutenção da condenação de um inocente. A Justiça, neste caso, continua injustiçando este falecido guarda e sua família. Eu, como Cidadão Brasileiro, repudio a ação vergonhosa desta suposta Justiça.
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