domingo, 14 de setembro de 2014

A escola pública que funciona

Já sabemos quais práticas são eficazes no ensino, agora é preciso que sejam adotadas pela rede pública
É possível quebrar a armadilha intergeracional da pobreza


A fundação Lemann, entidade sem fins lucrativos cujo objetivo é contribuir para melhorar o aprendizado dos alunos brasileiros, acaba de divulgar o relatório "Excelência com Equidade," disponível no site fundacaolemann.org.br/novidades. O objetivo do estudo foi investigar as práticas das escolas públicas que conseguem elevado desempenho para todos os alunos, apesar de atenderem estudantes de baixo nível socioeconômico.

Como apontado na introdução do estudo, há grande correlação entre o desempenho dos estudantes e o nível socioeconômico dos pais. No entanto, correlação não é causalidade nem condenação. A escola pública de qualidade é a arma mais poderosa contra a armadilha intergeracional da pobreza.
Além de atender a alunos de baixo nível socioeconômico, a escola tinha que apresentar Índice de Desenvolvimento Educacional (Ideb) de no mínimo 6 em 2011, para uma média nacional das escolas públicas de 4,7, com 70% dos alunos no nível adequado de proficiência e com um máximo de 5% no nível insuficiente.
O estudo identificou 215 escolas que atenderam aos critérios, sendo 109 de Minas Gerais --pouco mais, portanto, da metade.
O estudo identificou quatro práticas comuns às escolas que funcionam: definir metas e ter claro o que se quer alcançar; acompanhar de perto, e continuamente, o aprendizado dos alunos; usar dados sobre o aprendizado para embasar ações pedagógicas; e fazer da escola um ambiente agradável e propício ao aprendizado.
Além dessas práticas, o estudo notou que a forma de implantá-las era importante para o sucesso. As escolas que funcionam conseguiram criar um fluxo aberto e transparente de informações, implantaram mudanças respeitando o conhecimento e a experiência dos professores, além de criarem estratégia para mobilizar outros atores da comunidade com o objetivo de aumentar o sucesso escolar dos alunos.
Recente estudo dos pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) Will Dubbie e Roland Fryer analisou as práticas das escolas que funcionam na cidade de Nova York. Foi um trabalho de pesquisa muito detalhado, que envolveu longas entrevistas com diretores, professores e alunos, além da filmagem de muitas horas de aulas.
Um elemento muito importante no estudo é que havia forte variabilidade de opções e estratégias pedagógicas entre as escolas.
Um primeiro resultado, padrão nessa literatura, foi que maior oferta de recursos --gasto por aluno, menor número de alunos em sala de aula, ou maior parcela de professores com pós-graduação-- não tem impacto sobre o desempenho dos alunos, ou, quando tem, é na direção inversa: mais recursos reduzem o desempenho dos alunos!
Diferentemente, cinco práticas, que há mais de 40 anos são identificadas como eficazes por estudos qualitativos, apresentaram fortíssimo impacto positivo sobre o desempenho dos alunos: feedback constante para professores; usar dados e resultados de avaliações para guiar ensino; tutoria extra-aula intensiva para alunos; aumento do número de horas-aula; expectativas altas quanto à disciplina e ao comportamento.
Apesar de algumas diferenças, há muitas similaridades entre a lista do estudo da Fundação Lemann e os resultados de Dubbie e Fryer.
Sabemos, portanto, que é possível quebrar a armadilha intergeracional da pobreza e sabemos o que fazer para que escolas funcionem. O próximo passo é saber o que precisamos fazer para que todas as escolas das redes públicas de ensino copiem essas práticas.

Celulares e tablets são uma péssima maneira que os pais acharam para ocupar as crianças

Criança deve evitar eletrônicos até 12 anos de idade


Tablets são uma péssima maneira que os pais acharam para ocupar as crianças

Elas são educadas em um vácuo preenchido pela tecnologia, diz ex-economista do Pnud

Para ele, famílias atualmente estão cansadas demais para se preocupar com a educação dos filhos

Tablets são uma péssima maneira que os pais acharam para ocupar as crianças, diz Flávio Comim, 48, ex-economista sênior do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Para ele, o ideal é que as crianças evitem os eletrônicos até os 12 anos. "O uso excessivo de aparelhos eletrônicos limita as conexões neurais. As crianças não pensam aberto, mas dentro da caixa."
Economista, ele é um dos coordenadores do Círculo da Matemática, projeto nascido em Harvard há 20 anos. Leia a seguir a entrevista.
Folha - Como pais podem ajudar os filhos na escola?
Flávio Comim - Os pais devem se importar com os estudos dos filhos. As crianças não aprendem com discurso, mas sim com a prática. Você briga com seu filho por causa de uma nota ruim e, quando ele vem mostrar algo que aprendeu, você diz "bonito, agora vamos ver televisão". Os pais têm de ser coerentes.
O efeito família é superior ao efeito escola na explicação do desempenho das crianças. Professores não conseguem mudar a realidade que o aluno vive em casa. Há muito que os pais podem fazer: ler um livro, brincar juntos, criar rotina. Isso dá segurança à criança ir bem na escola. Mas é preciso regras, punições consistentes.
Que tipo de punição?
As maneiras mais modernas de punir estimulam a reflexão das crianças, como na ideia de minutos. Você reconhece que aquilo que a criança fez não está certo e dá um tempo para ela pensar. Mas sempre com afeto. As famílias parecem estar cansadas demais para se preocupar com o mundo dos filhos --os pais terceirizam para a escola a educação dos filhos e esta devolve para os pais. As crianças são educadas em um vácuo que que tem sido preenchido pela tecnologia.
Isso é ruim?
É péssimo. iPad e tablets são a maneira que os pais de classe média encontraram para ver as crianças ocupadas. Um superestímulo virtual pode levar também a problemas de comportamento, como à busca por satisfação imediata em tudo. O uso excessivo de aparelhos eletrônicos limita as conexões neurais. As crianças não pensam aberto, mas dentro da caixa, naqueles parâmetros que são dados. As sociedades médicas na Inglaterra e nos EUA recomendam que, pelo menos até os 12 anos, crianças não usem muitos eletrônicos. Os pais, talvez no intuito de ajudar e maravilhados em ver os filhos operando esses aparelhos, se rendem, indefesos, a todo tipo de tecnologia. Os problemas vêm depois.
Livros e brinquedos nessa fase são mais recomendáveis?
Sim, se receber os estímulos certos, uma criança pode começar a ler aos quatro ou cinco anos. Do contrário, ela pode ter a mobilidade prejudicada ou enfrentar dificuldades para diferenciar cores.
E o aspecto lúdico?
Ninguém tem excelência se não faz algo com um pouco de prazer. O problema é que muitos pais têm um nível educacional limitado. Dizem às suas crianças "matemática é difícil mesmo", dando uma autorização tácita para o seu desinteresse e desengajamento. Esses mesmos pais precisam de apoio.
Talvez o maior desafio na nossa educação hoje seja a humanização das relações entre professores e alunos e entre professores e pais. As escolas precisam criar vivências que aproximem as pessoas, não apenas reuniões para reclamar das crianças.
Como fazer isso?
Cito o projeto Círculo da Matemática, em que se diz que "pequenas ações dão grandes resultados": chamar os alunos pelo nome ou registrar no quadro uma resposta errada ou elogiar não o aluno, mas suas respostas são ações de gestão de sala de aula que promovem a inclusão. O fundamental é ter respeito ao aluno como um ser inteligente. Vários professores perdem esse respeito em condições hostis de sala de aula, o que leva ao embrutecimento das relações.

'Educar não é só transmitir conhecimento'

A seguir, Flávio Comim defende o aumento de recursos em educação.
Folha - O Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica; o índice mais recente mostrou que o aluno perde rendimento com o tempo) reforça a necessidade de aumentar os recursos para educação?
Flávio Comim - Sim. Não sei por que nos espantamos com esses resultados, quando temos professores mal pagos, alunos com poucas horas de aula por dia, uma infraestrutura escolar inadequada, um alto nível de disfuncionalidade nas escolas. Precisamos financiar mais tempo e mudar uma cultura conteudista nas escolas. Mais importante: ainda não entramos na discussão central para nosso futuro que educar não é somente transmitir conhecimento aos alunos, mas estimular sua inteligência (cognitiva, emocional e cidadã).
O Brasil precisa aumentar os recursos para educação, ou basta melhorar a gestão?
O Brasil investe entre 5,6% e 5,8% do PIB em educação. A França gasta 5,68%, a Finlândia 6,76%, a Espanha quase 5%. Alguns cometem a falácia de dizer que, por isso, não precisamos aumentar os recursos, que o mais importante é gastar o que temos de forma eficiente. Esses países têm metade da população brasileira de 5 a 9 anos. Então, por uma conta simples, a gente precisaria investir o dobro.
Por que os gastos são tão menores no Brasil?
A gente não quer mudar o sistema educacional. Se quisesse, já teria mudado. Muitas crianças estão em escolas péssimas. Aceitamos com naturalidade a desigualdade no nosso sistema educacional. 

'Círculo' foi criado em harvard


Comim trouxe ao Brasil o Círculo da Matemática, abordagem criada há 20 anos na universidade Harvard, a melhor do mundo. "O círculo adota três pressupostos. A matemática tem que ser feita, não pode ser ensinada. O esforço é cooperativo e divertido. O objetivo é a construção do raciocínio, então errar é bom." No Brasil, atende 7.800 alunos. 

De 
THAIS BILENKY na Folha de São Paulo de 14/09/2014

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Cadu e o tratamento psiquiátrico

Reinserir os doentes mentais na sociedade é fundamental. A política adotada pelo Ministério da Saúde, no entanto, é equivocada
A recente prisão do jovem Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, mais conhecido como Cadu, assassino confesso do cartunista Glauco e de seu filho Raoni, em 2010, suscita um debate que vai muito além de atribuir ou não culpa ao jovem. Diagnosticado como esquizofrênico quando do assassinato do cartunista e de seu filho, Cadu agora é apontado como um assassino frio, que não padece de doenças mentais. Carlos Eduardo será indiciado sob suspeita de crimes cometidos em Goiânia, entre eles, latrocínio.
O tratamento psiquiátrico recebido por Carlos Eduardo nos últimos quatro anos foi posto em xeque. Afinal, o jovem teria ou não condições de responder por seu crime em liberdade, por ser inimputável? Sua periculosidade teria cessado? Quem deu o laudo foi um psiquiatra forense? A juíza responsável pelo caso afirma que se ateve tão somente em cumprir a lei.
O caso é oportuno para pontuarmos alguns aspectos acerca do atendimento psiquiátrico prestado atualmente no Brasil. Reinserir os doentes mentais na sociedade é fundamental. A forma adotada pelo Ministério da Saúde, no entanto, é bastante questionável.
Desde 2002, o governo federal optou por uma política equivocada: fechar hospitais psiquiátricos e reduzir vagas em hospitais de custódia em todo o Brasil. Essa estratégia é nociva, não somente aos pacientes, mas também às suas famílias e à sociedade brasileira, como ocorre agora com essa tragédia na capital do Estado de Goiás.
A aposta do governo é nos CAPs (Centros de Atenção Psicossociais), uma tentativa de integração do doente mental sem internação. A questão é que, muitas vezes, os CAPs não contam nem mesmo com o serviço de psiquiatras. A população carece de um projeto terapêutico eficiente e de acordo com as necessidades dos doentes, seja de forma ambulatorial, preferencialmente, ou com internação, em casos de transtorno mais graves.
Periculosidade não pode ser confundida com doença mental: a reincidência no crime de um doente psiquiátrico é de apenas 5% a 7%, enquanto entre os demais criminosos é de 70%. A maioria dos casos de pessoas que cometeram crimes (95%) não são doentes mentais.
É preciso considerar que o paciente psiquiátrico acusado de crime tem peculiaridades e especificidades na análise de risco além da doença mental em si, como uso de drogas e de álcool, transtornos de personalidade e psicopatia, dificuldade em aderir ao tratamento, falta de suporte social e antecedentes criminais. A realidade é que a avaliação desses outros fatores é feita de forma superficial hoje no Brasil. O intensivo acompanhamento do paciente após a alta da internação também está longe de ser praticado.
Doente mental tratado e bem assistido não é perigoso à sociedade. Reiteradas vezes, a Associação Brasileira de Psiquiatria se colocou à disposição do Ministério da Saúde para auxiliar na construção de uma estratégia mais efetiva de assistência e de tratamento aos doentes mentais. O governo federal, no entanto, insiste na política que já se mostrou ineficiente.
A melhoria da assistência passa, fundamentalmente, pela formação de uma rede assistencial integral, do atendimento básico ao hospitalar especializado. Também não podem ser ignoradas a reforma e ampliação dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTPs, os antigos "manicômios judiciários").
A realidade é que, sem isso, as autoridades perdem tempo enxugando gelo e a sociedade continua à mercê de tragédias como a que ocorreu em Goiânia.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O ajuste: desinflação competitiva



A economia brasileira encontra-se numa situação desagradável, mas longe de estar à beira do apocalipse. Se, entretanto, insistirmos em não enfrentar os seus desequilíbrios, os cavaleiros podem nos visitar...
Na inflação --a despeito de alguns controles-- continuamos a namorar com o limite superior da banda de tolerância, que fingimos ser a "meta". A "boa notícia" é que a distância entre a taxa de inflação registrada nos preços "administrados" e nos preços "livres", que era menor do que 10% no final de 2011 e chegou a mais de 150% em 2013, foi reduzida e se encontra ao redor de 40%.
Na área fiscal a situação em 2014 piorou visivelmente, em parte porque o crescimento do PIB murchou. O deficit fiscal/PIB aproxima-se de 4%. A promessa de superávit primário de 1,9% do PIB, arrancado a fórceps no sufoco da ameaça da perda de rating pela agência S&P, tornou-se irrelevante e a dívida bruta/PIB aparenta um viés de crescimento.
A situação é delicada, mas perfeitamente reversível --sem custos exorbitantes-- com um programa monetário e fiscal coerente e transparente, capaz de dar previsibilidade às políticas públicas e tranquilizar o "espírito animal" assustado por intervenções pontuais bem intencionadas, mas erráticas. Irreversível é o crescimento perdido que vai nos acompanhar pelo resto do tempo.
Onde o ajuste será mais complexo é na política cambial. Voltamos a cometer o erro que nos tem perseguido há décadas: o uso da taxa de câmbio como coadjuvante do controle da inflação como substituto das políticas monetária e fiscal, cada vez que somos premiados com uma melhoria nas "relações de troca", ou seja, cada vez que os preços de nossas exportações crescem mais rapidamente do que os das nossas importações.
Não pode haver dúvida sobre as causas de um fato: não foi apenas a valorização cambial, mas foi principalmente a valorização cambial sistemática, prolongada, previsível, sustentada pelas maiores taxas de juros reais do universo, que destruiu o sofisticado setor manufatureiro nacional. De 2011 a 2014, o deficit comercial do setor manufatureiro foi da ordem de US$ 199 bilhões. É por isso que a indústria, que encolheu cerca de 1,5% ao ano entre julho de 2011/2014, foi a principal causa da murcha do PIB para 1,76% ao ano.

Já devíamos ter aprendido que é tudo inútil. Os especuladores sabem que a desvalorização é uma questão de tempo. Não há outra saída para a recuperação do equilíbrio a não ser a lenta e mais custosa política da "desinflação competitiva", como provaram todos os países que a experimentaram.

Texto de Antonio Delfim Netto na Folha de São Paulo de 10/09/2014