domingo, 21 de abril de 2024

Salmão rosa é bom de verdade

Peixe é excelente fonte de proteínas e conta com gordura protetora do cérebro e do coração


O salmão é um peixe gordo, com uma concentração de gordura alto em relação aos demais. O grande diferencial é a qualidade dessa gordura, que faz bem para o organismo — explica a nutricionista Priscilla Primi, colunista do GLOBO.

Nutricionalmente falando, a carne do salmão é uma excelente fonte de proteínas de alta qualidade, com vitaminas, minerais e antioxidantes importantes para o bom funcionamento do corpo. Há algumas diferenças entre os peixes, a depender da origem. E cuidados para que o consumo desse alimento seja sempre seguro. Veja a seguir as principais dúvidas sobre o pescado:

De onde vem o salmão?

O salmão é um peixe que vive nas águas geladas do Atlântico Norte e Pacífico — principalmente, Alasca, Canadá e Noruega. Nasce na água doce, migra para o mar e volta aos rios em época de reprodução.

Desde que se popularizou no mundo, a demanda cresceu em um ritmo impossível de se acompanhar só com a pesca do peixe selvagem. Aí surgiram as versões de cativeiro, geralmente criados em extensos viveiros aquáticos, confinado em espaços com redes instaladas.

Nesses locais, a alimentação natural do peixe é substituída por ração, e os animais são monitorados para evitar doenças, e ocasionalmente antibióticos são administrados. Entre os exportadores do pescado de viveiro, estão Canadá, Estados Unidos e o Chile, fonte de grande parte do salmão encontrado no Brasil.

Por que o Brasil não tem sua própria produção?
O Brasil não tem condições adequadas para sobrevivência do salmão, que são águas abaixo de 15 °C. Alguns países de clima quente usam tanques com controle de temperatura para garantir o ambiente ideal para a criação, mas isso exige tecnologia refinada e investimentos altos em infraestrutura.

O salmão faz bem afinal?

O peixe de águas geladas é uma excelente fonte de nutrientes. Contém bastante proteína (22 a 25 gramas em uma porção de 100g), vitaminas como a B12 e a D, e diversos minerais, sendo o principal deles o selênio.

— Trata-se de um mineral importante, que participa de processos antioxidantes e anti-inflamatórios do corpo — afirma a nutricionista Adaliene Versiani, professora do departamento de Nutrição da UFMG.

Um dos mais festejados nutrientes do salmão, no entanto, é o ácido graxo ômega-3, um tipo de gordura poli-insaturada com uma extensa lista de benefícios para o organismo. Protege o cérebro e a memória, reduz o risco de câncer e a inflamação.

— O ômega-3 é um dos nutrientes mais estudados até hoje. Já foi apontada influência na saúde mental, como redução de transtornos como depressão. Cada vez mais a ciência descobre benefícios — diz Primi.

A inclusão dessa gordura boa na dieta é especialmente importante para balancear o alto consumo de ômega-6 na alimentação ocidental de hoje, com a ingestão excessiva de óleos vegetais como o de soja. O ômega-3 é considerado um “neutralizador” de efeitos pró-inflamatórios dessas gorduras. Quando os “dois ômegas” estão equilibrados, há menos riscos cardíacos.

Além disso, os tipos de ômega-3 do salmão são o EPA e o DHA, que o corpo consegue aproveitar melhor do que o da linhaça, por exemplo, o ALA, que precisa ser convertido.

De onde vem a cor rosada? É verdade que o peixe de cativeiro tem a carne colorida artificialmente?

A carne do salmão tem variações de cor entre o rosa claro e o laranja intenso, a depender de como se alimentou aquele animal. Os peixes selvagens costumam comer krill, um minúsculo camarão que é fonte de um pigmento carotenoide chamado astaxantina.

Em cativeiro, fontes de astaxantina são adicionadas à ração. Existem versões sintéticas e naturais, derivadas de microalgas e leveduras.

— A astaxantina é um antioxidante importante para o corpo. Por isso é importante comprar de um fornecedor confiável para saber que o pigmento vem de uma boa fonte — diz Primi.

Existem diferenças nutricionais do salmão selvagem e de cativeiro?
Sim, mas as diferenças variam muito, a depender da alimentação, seja ela natural ou ração, e da época e local da pesca do salmão.

— Geralmente, o salmão selvagem tem um pouco mais proteínas — diz Versiani.

Quanto ao teor de ômega-3, as análises têm conclusões variadas. Um estudo de 2017, do Instituto Nacional de Nutrição e Pesquisa Marinha da Noruega, encontrou quantidades equivalentes, mas o peixe de cativeiro tinha níveis maiores de ômega-6. Em termos gerais, nutricionistas consideram as duas versões boas fontes da gordura poli-insaturada.

Outra preocupação são os contaminantes. O mesmo estudo norueguês encontrou níveis três vezes mais altos de mercúrio e poluentes orgânicos persistentes (POPs) no salmão selvagem do Atlântico na comparação com animais de viveiros. Essas substâncias vêm da contaminação dos mares por pesticidas e produtos industriais e tendem a se bioacumular em seres vivos.

Em entrevista recente ao jornal New York Times, o diretor do instituto Food is Medicine da Universidade de Tufts, nos Estados Unidos, Dariush Mozaffarian, afirmou que essas toxinas foram encontradas em níveis seguros para consumo.

Reportagem de Gustavo Leitão n'O Globo 

https://oglobo.globo.com/saude/bem-estar/noticia/2024/04/21/cor-rosa-fake-contaminacao-por-metais-confira-os-principais-mitos-e-verdades-sobre-o-salmao.ghtml

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Cracolândia, uma solução não utópica

Em casos graves, internação compulsória é medida humanitária de saúde pública

A cracolândia paulistana existe há mais de 30 anos —uma chaga aberta no coração da cidade de São Paulo.

Por quê? Nunca foi feito o correto: tratar os seus frequentadores como doentes mentais gravíssimos. E doentes dessa natureza têm que ser internados compulsoriamente em hospitais psiquiátricos por período de tempo longo.

O problema é que a psiquiatria parece "terra de ninguém" e muitos querem dar pitaco. Em razão disso, várias pessoas posicionam-se contra a internação compulsória. Um dos argumentos mais evocados é o de que os pacientes têm o direito de escolher o próprio tratamento. Simplesmente impossível, pois estão dominados pelo vício, consequentemente sem livre-arbítrio; ou seja, sem possibilidade de decisão.

Aglomeração da cracolândia na rua dos Protestantes, no centro de São Paulo - Danilo Verpa - 15.ago.2023/Folhapress - Folhapress

Caso sofressem processos de interdição, todos, sem exceção, seriam interditados por moléstia psíquica grave e incapacitante. E, acima disso, é preciso lembrar que antes do direito vem o dever: "Cumpras o teu dever". Se todos cumprissem o dever, não precisaria do direito individual, que nasce do débito do que não foi realizado. A internação compulsória é medida humanitária de saúde pública. São doentes, desesperados que já nada mais têm a não ser a tentação do vício por todos os lados e a fatalidade trágica pela frente.

Para acabar, sem utopias, com a cracolândia e dar uma chance de vida digna aos seus frequentadores é preciso pulso firme e implantar os dez seguintes passos.

Primeiro: tirar os dependentes das ruas, compulsoriamente, encaminhando-os a lugar previamente preparado, com características hospitalares, com médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais etc. O antigo Hospital do Juquery já abrigou mais de 10 mil pacientes, mas hoje está ocioso e poderia ser adaptado para receber os cerca de mil viciados que habitam, atualmente, a cracolândia paulistana.

Segundo: triagem médica e jurídica; ou seja, quem de fato é doente, permanece, quem não é volta para a rua, enquanto os traficantes devem ser encaminhados à polícia.

Terceiro: promover a higiene física, com roupas limpas, alimentação adequada, hidratação, administrar vitamínicos, combater infecções e aplicar sedativos ditos menores (ansiolíticos e miorrelaxantes) para combater a fissura.

Quarto: inseri-los na laborterapia de cunho profissionalizante: ensinar a cozinhar, carpintaria, cerâmica etc., mesclando com lazer —jogos, pintura e música. Esse período precisa ser longo; caso contrário, recaem rapidamente.


Polícia Militar faz operação para dispersar usuários de drogas na Santa Ifigênia



Quinto: o serviço social se incumbirá de procurar parentes do dependente químico, formando grupos de terapia para ajudar no relacionamento paciente-família.

Sexto: à medida que os benefícios terapêuticos físicos e mentais se solidificam, inicia-se o processo de alta progressiva, passando do regime de internação fechado para o semiaberto, que é a residência terapêutica, com saídas programadas e monitoradas pelos chamados atendentes terapêuticos.

Sétimo: passagem do regime semiaberto ao aberto, por meio do hospital-dia; ou seja, durante o dia frequenta a residência terapêutica, participa de reuniões coletivas, laborterapia, recreação e, no fim da tarde, volta para casa.

Oitavo: alta médica com segmento ambulatorial para ex-viciados nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), já existentes. Em caso de recidiva, volta ao regime de internação.

Nono: as entidades religiosas e os movimentos caritativos ajudariam na reintegração social do paciente ao criar oportunidades de trabalho e circunstâncias positivas, as quais são fundamentais nesse momento em que se visa a reinserção de doentes estigmatizados em uma sociedade preconceituosa.

Décimo: ação positiva dos governos com a indústria que empregar ex-pacientes, desonerando-a de certos tributos fiscais, por exemplo.

E, finalmente, dizer que "paciente psiquiátrico tem o direito de escolher se quer ou não ser tratado" equivale a estar diante de um humano debruçado na janela do 10º andar de um edifício, pronto para se suicidar, e não tentar agarrá-lo pelas pernas, pela camisa, pelos cabelos —um ato obrigatório em virtude de ordem moral. Tu deves fazê-lo.

Texto de Guido Palomba, psiquiatra forense, membro emérito e ex-presidente da Academia de Medicina de São Paulo, na Folha de São Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/04/cracolandia-uma-solucao-nao-utopica.shtml

domingo, 10 de março de 2024

Como o machismo na Medicina e na Ciência afeta a saúde das mulheres - e de que forma superar isso

Durante séculos, queixas e doenças relatadas por pacientes do sexo feminino foram negligenciadas ou apontadas como histeria


A analista de dados Alissa Caresia Munerato tinha 19 anos quando acordou com uma falta de ar que apareceu de forma repentina. Foi até um hospital privado de São Paulo para receber atendimento e investigar a causa do problema, e ouviu do médico de plantão que o sintoma era, provavelmente, emocional. “Deve ser só nervoso porque você deve estar apaixonada”, disse o profissional à jovem.

Após horas de espera no pronto-socorro, ela só conseguiu passar por mais exames depois de reclamar com a equipe de enfermagem. Mais tarde, quando os resultados dos testes saíram, Alissa foi levada às pressas para a UTI. A falta de ar era, na verdade, o sinal de uma embolia pulmonar grave, que, se não tratada a tempo, pode matar rapidamente. Ela ficou internada por um mês para o tratamento e descobriu que tinha trombofilia, distúrbio no sangue que facilita a formação de coágulos.

“Eu podia ter entrado em parada cardiorrespiratória. Podia ter caído dura e morrido por terem subestimado meu problema, por eu não ter sido ouvida”, diz Alissa, hoje com 30 anos.

A empresária e criadora de conteúdo Dana Steinberg, de 40 anos, também ouviu muitas vezes que suas dores e cansaço incapacitantes eram coisas da sua cabeça ou invenções para justificar um “comportamento preguiçoso”. Desde criança, ela diz ter sido julgada pelos médicos. Somente aos 35 anos, recebeu o diagnóstico da síndrome de Ehlers Danlos, uma condição rara que afeta a produção e síntese de colágeno no corpo e provoca danos em estruturas como a pele e as articulações - daí as dores e falta de energia.

“Um dos médicos que procurei chegou a pegar a ressonância de outro paciente e falar: ‘olha, ele tem uma coluna muito pior do que a sua e nunca reclama de dor’”, conta Dana. “Depois do diagnóstico, minha vida mudou completamente porque comecei a fazer o tratamento correto. Mas foram muitos anos perdidos sem que minhas queixas recebessem o devido crédito dos médicos”, diz.

Ela conta que o marido tem esclerose múltipla e nota diferença no tratamento que ele recebe dos profissionais de saúde. “Ninguém nunca duvidou dos sintomas dele. Ninguém nunca perguntou se ele estava com muito estresse em casa ou como estava o casamento dele quando ele relata dores”, diz Dana.
A empresária e criadora de conteúdo Dana Steinberg Foto: Arquivo pessoal


Em relatos como esses, a primeira avaliação pode ser a de que Alissa e Dana foram “apenas” vítimas de maus profissionais ou que não tiveram sorte nas unidades de saúde pelas quais passaram. Estudos, no entanto, vêm demonstrando que o problema é muito mais complexo.

Eles revelam, por exemplo, que as mulheres têm menor probabilidade de receberem analgésicos para dor abdominal quando procuram um pronto-socorro, amargam piores resultados quando operadas por um cirurgião homem e têm maior dificuldade de ter diagnóstico e tratamento adequado para um infarto do que os homens quando procuram um hospital com dor no peito.

“Há um viés de gênero que, historicamente, considera o corpo feminino como inadequado, subestima os efeitos adversos de intervenções e negligencia os relatos e dores das mulheres, classificando-as como histeria ou outras reações psicogênicas. E isso se reflete na Ciência e na Medicina também”, diz Carmen Simone Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

O uso do termo histeria

A crença foi construída ao longo de séculos. Cerca de 400 anos antes de Cristo, Hipócrates, o grego considerado o pai da Medicina ocidental, cunhou o termo histeria para definir uma suposta condição médica de desequilíbrio emocional exclusiva das mulheres. O termo, inclusive, vem da palavra hystera, que, em grego, significa útero - não à toa que a cirurgia de retirada do útero é chamada de histerectomia.

Por muitos séculos, a chamada histeria feminina foi usada como diagnóstico para uma ampla gama de sintomas e doenças relatadas por pacientes do sexo feminino, levando algumas delas a serem internadas em instituições parecidas a manicômios. A crença só caiu por terra a partir do século 19, com pesquisas que buscavam entender melhor a mente humana.

Embora tenhamos avançado nas últimas décadas, ainda há resquícios desse pensamento em atendimentos de saúde como os citados no começo deste texto, que desacreditam os relatos das pacientes e encaixam muitas de suas queixas como problemas de fundo emocional. Tais crenças impediram ainda que condições tipicamente femininas recebessem a devida atenção da ciência, segundo especialistas.

Por muito tempo, alguns temas caros para as mulheres, como práticas obstétricas, disfunções sexuais e menopausa, foram alvos de poucos estudos. E, até hoje, ainda há uma participação mais baixa de mulheres em estudos clínicos de algumas patologias, como as cardíacas, o que dificulta a avaliação da eficácia e segurança de determinadas intervenções sob o prisma das diferenças de gênero.
A analista de dados Alissa Caresia Munerato reclama de negligência em atendimento médico 
Foto: Arquivo pessoal


O exemplo da episiotomia

Simone cita como exemplo dessas crenças preconceituosas a realização indiscriminada (e muitas vezes sem consentimento da mulher) da episiotomia, corte cirúrgico feito no períneo durante o trabalho de parto sob a justificativa de facilitar a passagem do bebê. Desde a década de 1920 até o início dos anos 2000, o procedimento era tido como padrão no atendimento obstétrico, mesmo que ele não fosse necessário na maioria dos casos e pudesse deixar a mulher com sequelas como dor e dificuldades de ter relações sexuais.

“Era tido como um procedimento cientificamente embasado, embora nunca tenha tido evidência de benefício. Os estudos bem desenhados que existiam era sobre qual instrumento usar para cortar o períneo, qual era o melhor fio de sutura, mas não se perguntava se devia ser feito ou não”, conta a professora da USP.

Em muitos casos, diz a especialista, a principal preocupação dos médicos era costurar a região íntima feminina de forma a não “atrapalhar” o prazer do homem na penetração, por isso a sutura pós-episiotomia era comumente chamada de “ponto do marido”.

A publicitária Bia Fioretti, de 61 anos, passou pelo procedimento nos partos de seus dois filhos. Na primeira gestação, o corte foi feito sem o conhecimento dela. Na segunda gravidez, o médico disse que, pela posição do bebê, teria que fazer uma episiotomia ainda maior, mas tratou de tranquilizar o marido da publicitária:

“O médico falou para que ele ficasse tranquilo, que ia costurar de um jeito que ia ficar melhor do que antes”, conta Bia, que, depois das experiências traumáticas, abandonou o emprego em uma grande agência de publicidade para fazer mestrado e doutorado em saúde pública. Tornou-se especialista em comunicação para promoção da saúde e realizou trabalhos para o Ministério da Saúde na área de humanização do parto.

Ela defende que as discussões não fiquem focadas nas condutas individuais de cada profissional, mas, sim, se debrucem sobre as questões estruturais que permitem esse tipo de violência contra as mulheres. “Não culpo o médico, ele foi ensinado a fazer daquela forma. É o sistema todo que tem que mudar, começando pela formação dos profissionais”, diz.

A história da episiotomia só começou a mudar a partir da década de 1980, quando a autora e ativista britânica Sheila Kitzinger fez uma pesquisa para entender a percepção das mulheres sobre o procedimento. Ela descobriu que as experiências eram as piores possíveis. A partir de então, a ciência começou a estudar de forma mais aprofundada a repercussão desse procedimento na saúde e qualidade de vida das mulheres e, nos últimos anos, a episiotomia foi formalmente classificada pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um procedimento a ser evitado.

Sintomas de infarto são classificados como ansiedade

Outros problemas, no entanto, permanecem. O impacto do sexismo na saúde cardiovascular feminina é um dos pontos que vêm ganhando atenção dos especialistas. Embora o infarto seja a principal causa de morte entre as mulheres no País, nem sempre essa hipótese diagnóstica é cogitada pelos profissionais, que, em alguns casos, associam os sintomas a quadros de ansiedade sem fazer uma investigação mais aprofundada.

“Os sintomas de um infarto na mulher podem ser diferentes. Nem sempre é aquela dor opressiva no tórax que irradia para o braço. Elas podem ter cansaço e falta de ar, um desconforto no peito e nas costas, mas, por ser uma dor mais frustra, esse diagnóstico é descartado e elas não são colocadas na rota de atendimento de dor torácica no pronto-socorro”, diz Glaucia de Oliveira, presidente do Departamento de Cardiologia da Mulher da Sociedade Brasileira de Cardiologia e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A médica diz que essa demora no diagnóstico retarda o acesso ao tratamento adequado e aumenta o risco de mortalidade. Para a especialista, a educação das pacientes e dos profissionais é fundamental para que fique claro que as doenças cardiovasculares são causa de morte importante também nas mulheres. “Cerca de 30% das mortes de mulheres são por essas causas e acabamos não falando tanto delas quanto falamos de câncer de mama, por exemplo”, destaca a médica.

Para além da cardiologia, as especialistas apontam outros sintomas ou condições femininas que são minimizados no atendimento médico, como desconfortos da menopausa ou período pré-menstrual ou queixas relacionadas à sexualidade.

“Em quadros de vaginismo, por exemplo, que é um problema em que a mulher tem dificuldade para ter penetração porque sente dores intensas, recebo várias pacientes que ouviram de profissionais que era algo emocional, que falavam para a mulher tomar um vinho e relaxar. Existe uma negligência em relação a esses sintomas”, conta a ginecologista Carolina Ambrogini, coordenadora do Ambulatório de Sexualidade Feminina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Ela explica que, por mais que a condição possa, sim, ter causas emocionais, é necessário um atendimento especializado porque esses quadros psicológicos podem ser graves e estar relacionados a traumas. Em alguns casos, são necessárias, além da psicoterapia, fisioterapia e medicações. “Quando me formei, há 23 anos, a média de tempo que essas mulheres esperavam para ter um diagnóstico correto era de cinco anos. Melhorou muito, mas ainda há um descrédito de algumas queixas femininas”, diz a médica.

Para as especialistas, além de melhorar a formação dos profissionais de saúde trazendo esses temas para o currículo, é necessário ainda maior investimento em pesquisas sobre questões femininas, e maior presença delas não só nas carreiras de saúde e ciência, mas em cargos de liderança. “A questão da representatividade é importante para combatermos essa crença”, diz Simone.

Reportagem de Fabiana Cambricoli n'O Estadão

https://www.estadao.com.br/saude/como-o-machismo-na-medicina-e-na-ciencia-afeta-a-saude-das-mulheres-e-de-que-forma-superar-isso/

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Ultraprocessados são ligados a 32 doenças

Ultraprocessados são ligados a 32 doenças em análise de quase 10 milhões de pessoas


Revisão de 45 estudos sobre o tema encontrou evidências consistentes de um risco aumentado para morte por doenças cardiovasculares, transtornos mentais e diabetes tipo 2

Alternativas altamente palatáveis e práticas, que se tornam atrativas dentro de rotinas com pouco tempo livre, os alimentos ultraprocessados, como refeições prontas, salgadinhos, biscoitos e refrigerantes, têm sido alvo crescente de estudos que buscam avaliar o impacto de seu baixo teor nutricional na saúde humana. Agora, uma nova revisão de 45 trabalhos feitos sobre o tema, publicada nesta quarta-feira na revista científica The BMJ, mostra que existe uma associação entre as comidas e um risco aumentado para 32 agravos de saúde diferentes.


A publicação é chamada de “guarda-chuva” por ser uma análise conjunta de outras revisões já feitas sobre o tema. Por isso, é considerada um dos níveis mais elevados de evidência científica observacional, agregando uma série de pesquisas e avaliando não apenas os resultados, mas a qualidade de cada uma. O trabalho foi conduzido por pesquisadores dos Estados Unidos, Austrália, França e Irlanda.

Ao todo, os estudos analisados acompanharam quase 10 milhões de indivíduos. As estimativas de exposição aos ultraprocessados foram obtidas por meio de uma combinação de registros alimentares e foram medidas como um consumo maior versus um menor, como porções adicionais por dia ou como um aumento de 10%, a depender do trabalho.

De forma mais sólida, os cientistas afirmam que há evidências convincentes de que a ingestão de alimentos ultraprocessados está associada a um risco aumentado de 50% de morte relacionada a doenças cardiovasculares; 53% de transtornos mentais comuns e 48% de ansiedade prevalente.

Dados sólidos também mostraram um risco 12% maior de diabetes tipo 2 a cada 10% de aumento dos ultraprocessados na dieta. Evidências mais fracas, porém consideradas altamente sugestivas, indicaram uma chance 20% maior de morte por qualquer causa, 55% de obesidade, 41% de problemas de sono, 40% de chiado no peito e 20% de depressão.

A revisão constatou ainda que há estudos apontando uma associação com asma, pior saúde gastrointestinal, alguns tipos de câncer e fatores de risco cardiometabólicos, como níveis elevados de gordura no sangue e baixos níveis de colesterol “bom”. No entanto, de forma menos consistente que demanda mais avaliação.

— A hipótese de que o consumo aumentado de alimentos ultraprocessados poderia ser um desencadeante da pandemia de obesidade e doenças crônicas associadas foi lançada em 2009. Desde então, a evidência de associação entre os alimentos e agravos à saúde humana a partir de estudos epidemiológicos vêm se acumulando na última década — afirma a epidemiologista Eurídice Martínez Steele, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), grupo que cunhou o termo “ultraprocessados” no Brasil e no mundo e é responsável pelo Guia Alimentar para a População Brasileira.

A nova revisão traz um alerta importante em meio ao avanço dos alimentos do tipo no cardápio da população mundial. Os pesquisadores citam no estudo que, em países de renda alta, eles chegam a representar até 42% e 58% do total de calorias consumidas por dia, caso da Austrália e dos Estados Unidos, respectivamente.

O percentual é bem acima de taxas associadas a problemas de saúde. Um trabalho da USP, por exemplo, publicado no periódico JAMA Neurology em 2022, mostrou que, após um acompanhamento médio de 8 anos, aqueles com um consumo superior a 19,9% das calorias diárias em ultraprocessados tiveram uma taxa 28% mais rápida de declínio cognitivo.

Um outro trabalho que ganhou destaque recentemente sobre o tema, publicado na The BMJ por pesquisadores espanhóis, encontrou uma ligação entre comer mais de quatro porções de produtos do tipo por dia e um risco 62% maior de mortalidade por todas as causas.

— Algo que muitos trabalham mostram é essa questão da dose. O problema maior está na quantidade, na frequência. Esse consumo de maneira exagerada, que tem sido apontado como mais de quatro porções por dia, está sem dúvidas atrelado à praticidade do dia a dia. Mas é evidente que devemos, dentro do possível, evitá-los. Só que o que observamos no mundo e no Brasil é uma tendência de aumento — avalia o médico nutrólogo e endocrinologista Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) e fellow da Obesity Society.

No Brasil, de acordo com a última edição da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), que avaliou o tema, os ultraprocessados representam 18,4% da alimentação. Em 2002/2003, esse percentual era de 12,6%. Por outro lado, a presença de alternativas in natura ou minimamente processados caiu de 53,3% para 49,5% no mesmo período.

— Estudos em vários países têm mostrado essa tendência de aumento. Os ultraprocessados são desenhados para serem altamente palatáveis e convenientes, assim como pouco perecíveis, e são fabricados com ingredientes de baixo custo com escasso valor nutritivo. No Brasil, já tendem a ser mais baratos que alimentos frescos, como carne, leite, ovos, frutas e hortaliças. A publicidade desregulada também contribui. E a ideia de comidas “práticas”, no cotidiano dos trabalhadores, é um apelo — avalia Steele.

Os 32 problemas de saúde associados a ultraprocessados:

Mortalidade por todas as causas
Mortalidade por câncer
Mortalidade por doenças cardiovasculares
Mortalidade por problemas cardíacos
Câncer de mama
Câncer (geral)
Tumores do sistema nervoso central
Leucemia linfocítica crônica
Câncer colorretal
Câncer pancreático
Câncer de próstata
Desfechos adversos relacionados ao sono
Ansiedade
Transtornos mentais comuns
Depressão
Asma
Chiado no peito
Desfechos de doenças cardiovasculares combinados
Morbidade de doenças cardiovasculares
Hipertensão
Hipertriacilgliceridemia
Colesterol HDL baixo
Doença de Crohn
Colite ulcerativa
Obesidade abdominal
Hiperglicemia
Síndrome metabólica
Doença hepática gordurosa não alcoólica
Obesidade
Excesso de peso
Sobrepeso
Diabetes tipo 2

Medidas para diminuir o consumo

Junto com o novo estudo, a The BMJ publicou um editorial de pesquisadores do Nupens/USP chamado “Razões para evitar alimentos ultraprocessados”. O núcleo é um dos que mais pesquisam o tema no mundo e defende a importância de políticas públicas para reduzir o consumo.

No texto, eles destacam que os produtos podem ser danosos para “a maioria, senão todos, os sistemas do corpo humano” e citam que a lucratividade desencoraja fabricantes a alterarem as suas formulações, por isso a necessidade de medidas do poder público.

— O Brasil e outros países da América Latina são os que mais têm avançado nesse sentido. No Brasil, por exemplo, desde 2014 que o Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda evitar o consumo de ultraprocessados. Mais recentemente, o município do Rio de Janeiro proibiu a venda dentro de escolas. A própria mudança na rotulagem de 2023 também vem levantando esse debate na população — diz Steele, uma das autoras do editorial.

Ainda assim, diz que “há muito a se fazer”. Os pesquisadores defendem restrições na publicidade dos produtos; a proibição nacional da venda dentro ou perto de escolas e hospitais e medidas fiscais, como incentivos para alimentos in natura e minimamente processados e maior tributação dos ultraprocessados.

Outro ponto apoiado pelo grupo e pelo presidente da Abran é uma nova alteração na rotulagem. Hoje, o sistema lupa diz apenas se o item possui alto teor de açúcar, gordura saturada ou sódio. Eles pedem que seja incluída uma clara identificação de que se trata de um alimento ultraprocessado.

O que são os ultraprocessados e por que eles fazem mal?

Os ultraprocessados são alimentos como refeições prontas, refrigerantes, salgadinhos, embutidos, barras de cereais, sorvetes, entre muitos outros presentes no dia a dia. Basicamente, todos que passam por múltiplos processos industriais e contêm corantes, emulsificantes, aromatizantes e outros aditivos para torná-los palatáveis.

— Esses alimentos têm uma alta disponibilidade, praticidade, são mais duráveis e têm a conveniência de serem fáceis de comer. Mas têm um alto teor de sódio, de gordura hidrogenada e saturada, grande quantidade de açúcares refinados e uma baixa quantidade de fibras, o que os torna pobres em termos nutricionais — explica Durval Ribas Filho.

Um recurso que pode ajudar a identificá-los é o aplicativo “Desrotulando”, que escaneia o código de barras dos produtos e dá uma nota de acordo com a quantidade de substâncias nocivas. Para os especialistas, essa carência nutricional nos produtos e o fato de que eles ocupam o lugar de alternativas saudáveis na dieta podem explicar os riscos para a saúde observados.

“A ingestão desses alimentos torna as dietas densas em energia, ricas em açúcar e gordura saturada e pobres em proteínas, fibras, micronutrientes e fitoquímicos protetores da saúde, como flavonoides e fitoestrogênios. Elas também contêm aditivos, incluindo corantes, emulsificantes e adoçantes, associados por evidências experimentais e epidemiológicas a desequilíbrios na microbiota intestinal e inflamação sistêmica”, diz o editorial do Nupens.

Além disso, o texto destaca que “os alimentos ultraprocessados são projetados para serem altamente desejáveis, combinando açúcar, gordura e sal para maximizar a recompensa e adicionando sabores que induzem a comer mesmo quando não se está com fome”, o que favorece o ganho de peso e o risco de obesidade.

Os pesquisadores afirmam ainda que os ultraprocessados são considerados viciantes pelos padrões estabelecidos para produtos de tabaco e por isso pedem que as agências das Nações Unidas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), e os países desenvolvam diretrizes sobre os alimentos análogas àquelas sobre o tabaco.

Reportagem de Bernardo Yoneshigue n'O Globo

https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2024/02/29/ultraprocessados-sao-ligados-a-32-doencas-em-analise-de-quase-10-milhoes-de-pessoas.ghtml