domingo, 26 de agosto de 2018

Obesidade infantil: a culpa é de quem?

Hábitos alimentares dos pais e fácil acesso à alimentos ultraprocessados estão entre os responsáveis pelo problema

A obesidade é um tema cercado de polêmicas. O estigma do ‘gordinho preguiçoso’ infelizmente ainda faz parte do senso comum. Para uma parcela da população, o obeso deveria ser mais ‘disciplinado’, fazer exercícios físicos e ‘entrar na linha’. No universo infantil, tantas críticas podem atrapalhar o desenvolvimento físico e psíquico das crianças.

Obesidade infantil atinge 30% das crianças no Brasil.

No Brasil, 33% dos pequeninos estão acima do peso, segundo o Ministério da Saúde. “Uma criança que está obesa tem maior chance de se tornar um adulto obeso, então, é um problema de saúde pública”, enfatiza a endocrinologista Lívia Marcela, mestre em Endocrinologia pela Unifesp. Ela relata que, nos últimos anos, observou uma mudança no diagnóstico das crianças que chegam ao consultório com suspeita de diabetes. De acordo com a médica, atualmente os casos que aparecem são do tipo 2 da doença. A médica observa que parte significativa da culpa é do comportamento inadequado dos pais: “Já vi casos extremos de alguns pais darem refrigerante até na mamadeira para a criança”.
Crianças comem fast food com o aval de adultos.
Jean Piaget, psicólogo que revolucionou o modo de encarar a educação, revela que as crianças constroem o próprio aprendizado. Além disso, começam a interagir por meio de ações cognitivas concretas, ou seja, a construir estruturas lógicas sobre os objetos ao redor, inclusive com os alimentos. É aí que o comportamento dos pais ganha destaque já na introdução alimentar dos bebês: “Não dá para o pai comer uma coxinha e oferecer uma maçã para a criança”, destaca a nutricionista Luna Azevedo, da Clínica Nutrindo Ideais. A endocrinologista concorda e relata que é muito comum os pais tentarem compensar um dia inteiro de trabalho, longe dos filhos, com comidas prontas, como fast food ou pizza, por exemplo. A facilidade de acesso à produtos ultraprocessados, como bolachas e bolos prontos, também é um problema, segundo a especialista da Unifesp: “Quanto mais você desembalar, menos saudável você está sendo”.
Alimentos viram brincadeiras na hora da refeição das crianças.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de crianças e adolescentes de cinco a 19 anos com sobrepeso chega a 124 milhões em todo o mundo. Um estudo realizado pela Universidade do Colorado, em Denver, revela que pratos ilustrados com fotos das verduras e legumes ao fundo podem atrair as crianças. Os pesquisadores fizeram um teste em 235 creches e, na hora do almoço, ofereciam para metade das crianças um prato segmentado com fotos de frutas e legumes nos compartimentos. Os pequeninos deveriam colocar os alimentos conforme a indicação dos desenhos. A outra metade das crianças recebia pratos sem ilustração ao fundo. Aqueles que comeram em pratos com ilustração ingeriram 36% a mais de vegetais.
digihanger/Pixabay
“Comer é social e também visual. Quem não gosta de reconhecer o que come e interagir com o ato? Principalmente as crianças que estão com a imaginação a flor da pele e precisam de estímulos novos diariamente. O ato de comer também faz parte do aprendizado dos pequenos, por isso, nada mais humano, inteligente e efetivo do que juntar essas estratégias ao oferecermos comida à eles”, avalia a nutricionista. Ela reforça o importante trabalho da nutrição junto com conceitos da Psicologia.

Para ajudar os pais a adotar estratégias mais atrativas para os pequeninos comerem bem, fizemos uma lista de dicas valiosas dadas pela endocrinologista Lívia Marcela e a nutricionista Luna Azevedo.

- Faça uma programação para a semana inteira e separe um dia só para cozinhar;
- Separe pelo menos uma opção de fruta para a lancheira das crianças. Os lanches prontos têm excesso de sódio e açúcares;
- Desde a introdução alimentar dos bebês, a partir dos seis meses, ofereça a comida no formato Baby Led Weaning (BLW), que estimula as cores, textura, atenção plena do bebê e a comer de forma mais independente;
- Para as crianças maiores, corte os alimentos e os ofereça com carinhas ou desenhos nos pratos;

E essa dica final vale para todos: coma junto com a família. “Nada mais atrativo para os filhos do que ter as suas refeições divididas com os seus pais. É muito difícil para a criança entender a alimentação como algo natural, se a prática não for naturalizada em casa a prática. Não dá para os pais comerem mal e acharem que seus filhos vão comer os legumes se não tiverem referência para isso”, enfatiza a nutricionista Luna Azevedo. Por isso, grande parte das crianças deixa de comer alimentos saudáveis quando crescem e percebem que não é um hábito familiar.

Reportagem de Camila Tuchlinski n'O Estado de São Paulo

https://emais.estadao.com.br/noticias/bem-estar,obesidade-infantil-a-culpa-e-de-quem,70002471424

Ações por inadimplência em edifícios registram queda

Profissionais atribuem baixa ao Código de Processo Civil, que agiliza trâmite e permite penhora em 3 dias

O número de ações de cobrança por falta de pagamento da taxa condominial caiu. Neste ano, foram protocoladas 6.837 ações, 8,5% a menos do que no mesmo período de 2017 (7.470 casos). Os dados são do Departamento de Economia e Estatística do Sindicato da Habitação (Secovi).

Segundo profissionais do setor, a queda se deve à mudança no código de Processo Civil, que entrou em vigor em 2016. “O débito no condomínio passou a ser levado mais a sério”, diz o vice-presidente de Administração Imobiliária e Condomínios do Secovi-SP, Hubert Gebara.


A advogada Lidiane Genske, do escritório Rachkorsky, explica a nova regra: “Agora, podemos cobrar as dívidas do condomínio por meio de uma ação de execução. Anteriormente, era necessário uma ação de cobrança, que tem um trâmite muito mais lento”. Segundo ela, hoje, o advogado pode pedir pagamento em três dias, sob pena de penhora. “Em um ano, se consegue marcar o leilão para penhorar o apartamento.”


Para o presidente da Associação das Administradoras de Bens, Imóveis e Condomínios de São Paulo (AABIC), José Roberto Graiche Júnior, o indicado é tentar solucionar a questão da inadimplência com um acordo extrajudicial antes de entrar com o processo. “A esfera amigável, além de ser muito mais rápida e simpática, é menos custosa. Somente quando esgotamos todos os meios amigáveis para tentar o recebimento, passamos para a esfera judicial.”


Antes de fazer o acordo, no entanto, o síndico deve convocar uma assembleia para decidir os termos com os moradores. “O síndico não pode abrir mão de multas, juros e correção monetária. Ele pode parcelar o débito principal, mas não deve abonar nada que prejudique o caixa do condomínio, a não ser que tenha sido autorizado previamente”, diz Gebara.


Os descontos em acordos não são indicados, justamente, porque os moradores adimplentes podem se sentir injustiçados, afirma Graiche Júnior.

A falta de pagamento da taxa condominial pode, ainda, gerar reação. “Há certa intolerância nos condomínios. Já vi grupos de condôminos que chegaram a riscar e furar os pneus do carro novo do inadimplente”, conta Carlos Theodoro Martins, vice-presidente da Assosíndicos.

A inadimplência de um único morador interfere diretamente no orçamento do condomínio, que paga mensalmente água, luz, gás, salários de funcionários, contratos, seguros e despesas administrativas.


Manual Anti-Inadimplência:
Cobrança isonômica. Estipular, em assembleia, critérios de cobrança que sejam iguais para todos os condôminos, sem favorecimentos

Cobrança persistente. Criar plantões de cobrança, usando meios como ligações telefônicas, cartas e telegramas para contatar o devedor


Cobrança ágil. Quanto mais rápida a cobrança for feita, maior a chance de pagamento ou acordo


Empresa especializada. Por serem contratadas do condomínio, administradoras podem não ser tão incisivas ao fazer a cobrança. Opte por uma empresa terceirizada


Restrição de espaços. A restrição de espaços fornecidos mediante aluguel, como salão de festas e churrasqueira, pode ser eficaz, mas deve ser aprovada em assembleia

Texto de Jéssica Díez Corrêa no Estado de São Paulo 

https://economia.estadao.com.br/blogs/radar-imobiliario/acoes-por-inadimplencia-em-edificios-registram-queda/

terça-feira, 21 de agosto de 2018

O imenso rombo potencial do Fies

O potencial de perdas de receitas com o Fies, com os financiamentos concedidos entre 2010 e 2016, é de impressionantes R$ 116 bilhões. Crédito educativo é bom, mas o programa foi mal desenhado, sua expansão teve inúmeras distorções e ele foi usado eleitoralmente em 2014 quando teve o recorde de novos contratos. Em tempos de promessas de candidatos, e de verdades contadas pela metade, é importante olhar o caso de um bom projeto que ficou insustentável pelos erros no desenho e gerenciamento.
A forte elevação do programa no governo Dilma teve relação direta com a campanha da reeleição. Os novos contratos estavam entre 30 mil ou 70 mil ao ano. Na primeira administração Dilma entraram numa escalada que levou a dar um salto de 10 vezes. Foi de 76 mil novos contratos no último ano Lula para 733 mil em 2014, ano eleitoral. Em 2015, ainda no governo da ex-presidente, caiu para 287 mil. Em 2017, o governo Temer o reformulou depois de um amplo estudo feito pelo Ministério da Fazenda que mostrou os erros.
Em 2010, foi criado o fundo garantidor e com base nisso o programa cresceu. O problema é que o fundo foi criado com a premissa errada. De que haveria uma taxa de inadimplência de 10%. No mundo inteiro é de 30%. No Brasil, se estima que os atrasos nos pagamentos dos empréstimos, entre 2010 e 2016, estejam entre 40% e 50%. Outro erro é que o calote era todo bancado pelo governo.
E, de novo, em vez de ser um programa para os pobres, incluiu não pobres e virou uma fonte garantida de receita para as universidades privadas. Os grupos maiores passaram a incentivar os alunos a procurar financiamento, porque achavam que isso reduziria o risco de não pagamento de mensalidades. Muito mais garantido era tudo ser pago por um fundo bancado pelo governo. Fizeram mais: aumentaram as mensalidades, cobrando mais dos beneficiários do programa. Virou uma bola de neve.
O número de alunos era de 200 mil entre 2002 e 2010. Pulou para quase dois milhões. Desses, 733 mil a mais só em 2014, não por acaso um ano eleitoral, em que este assunto foi objeto da campanha da reeleição. Os dados mostram que houve uma substituição de alunos pagantes por alunos financiados.
São vários os custos do Fies. Ele é 100% financiado com emissão de dívida pública. Quando o financiamento não é pago, vira despesa primária do Tesouro. E tem o custo financeiro do diferencial de juros. O orçamento do programa saiu de R$ 1,3 bilhão em 2010 para R$ 19 bilhões. O rombo potencial, se as projeções do calote se confirmarem, dá aquele valor escrito acima: R$ 116 bilhões.
O estouro do Fies aconteceu no início do segundo mandato, por isso começou a cair o número de novos financiados a partir de 2015. Em 2016, já no governo Temer, o Ministério da Fazenda fez um amplo estudo do programa. O desafio era como manter e fazê-lo sustentável. Foi criado um grupo de trabalho e durante seis meses foram chamados representantes das universidades privadas. Em seguida, ele foi alterado.
O Fundo Garantidor do Crédito Estudantil agora é bancado pelos dois lados. O governo fará um aporte único de R$ 2 bilhões, e daí para diante as universidades privadas terão que pôr dinheiro, e as que tiverem mais taxa de inadimplência farão aportes maiores. Isso as obriga a melhorar a capacidade de empregabilidade dos estudantes. Na contratação do empréstimo, a universidade tem que dizer quanto ele vai custar e qual será o indexador. Isso proíbe o aumento desordenado das mensalidades. E não poderá cobrar mais do aluno financiado que dos demais alunos. Além disso, foi colocado um teto no valor que pode ser cobrado A concessão nova caiu para 170 mil em 2017. Ainda há um passivo a ser digerido, mas o programa entrou em nova rota. A lição que fica é que a demagogia e o uso político transformam um bom programa numa bomba fiscal.
fies
Texto de Míriam Leitão n'O Globo 
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-imenso-rombo-potencial-do-fies.html 

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Coalizão permitiu que Hitler subisse ao poder

Oitenta e cinco anos depois, alemães ainda buscam uma resposta sobre o que tornou possível ascensão do ditador, que nunca teve maioria dos votos 
Cena de dociumentário da cineasta alemã Leni Riefenstahl mostra multidão aclamando Hitler no Congresso de Nuremberg: políticos que negociaram a coalizão julgavam que poderiam manipulá-lo
Foto: Reprodução

Passados 85 anos, os alemães ainda buscam uma resposta sobre o que tornou possível a existência de uma ditadura como a que foi imposta por Adolf Hitler e o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla alemã). O pior capítulo da História do país começou em janeiro de 1933 com um governo de coalizão eleito democraticamente, embora sem maioria própria, por uma população cansada da falta de competência dos políticos para resolver os problemas graves do país, incluindo a crise econômica que havia transformado as ruas de Berlim em um campo de batalha diário.


— Sem o NSDAP, Hitler nunca teria conseguido se tornar o poderoso ditador capaz de iludir aliados e adversários em apenas poucos meses— diz o historiador Sven Felix Kellerhoff.

Kellerhoff, autor do livro “O NSDAP: Um partido e seus membros” (em tradução livre), foi o primeiro historiador a pesquisar o poder de sedução do partido. Com base em documentos do arquivo federal e depoimentos de membros do NSDAP, Kellerhoff traça uma imagem detalhada do partido que produziu o Führer.

Os depoimentos dos membros do partido nazista foram registrados pelo sociólogo polonês Theodore Fred Abel, que vivia nos Estados Unidos, em 1934. Durante muito tempo esquecidos, eles foram agora redescobertos, sendo que Kellerhoff foi o primeiro a analisar o material. Quase todos dizem que ingressaram no partido porque ele combatia os comunistas. Havia ainda o antissemitismo em comum e a esperança de que a situação econômica melhorasse.

Nas eleições do início de 1928, os nazistas conseguiram apenas 2,6%, um resultado que irritou o Hitler de tal forma que fez com que ele praticamente fugisse para a sua casa de férias na Baviera. Mas um ano depois, com a grave crise econômica, seis milhões de desempregados e o agravamento também da crise democrática, os alemães deixaram de acreditar na democracia da República de Weimar.

O povo ia às ruas para aplaudir as violentas SA, milícias paramilitares nazistas. O NSDAP crescia em adeptos de forma fulminante, tendo alcançado 37,4% dos votos no final de 1932.


Jovens, uniformizados e dispostos à violência sem compromisso, os membros do partido transmitiam à população a ideia do sentimento nacional do povo unido contra os judeus e os comunistas. Essa encenação da violência nas ruas alemãs fez aumentar rapidamente a popularidade do partido, que nunca conseguiu, no entanto, a maioria absoluta.

Quando o general Kurt von Hammerstein-Equord percebeu que Hitler estava a caminho do poder, em janeiro de 1933, tentou desesperadamente com o presidente Paul von Hindenburg e o então chanceler Kurt von Schleicher a convocação de uma “situação de emergência” para evitar o governo liderado pelos nazistas.

— Sete dias antes de Hitler ser indicado chanceler, Schleicher queria a dissolução do Parlamento pelo presidente e a convocação de novas eleições. A recusa do presidente acabou com as chances de execução do plano — afirma o historiador Heinrich August Winkler, autor do livro “Weimar 1918-1933”, a ser lançado em breve.

Hindenburg, por sua vez, foi influenciado pelo então ex-chanceler Franz von Papen, que preferia Hitler na posição do que o adversário Schleicher, que havia lhe sucedido no cargo. Ele planejava instrumentalizar o “soldado boêmio”, como Hitler era chamado, e voltar ao poder.

Segundo o historiador Andreas Sander, todos os políticos que tentaram combater ou manipular o ditador foram derrotados. Entre eles estavam Gregor e Otto Strasser, membros do partido nazista que defendiam uma linha mais anticapitalista, o que não era aceito por Hitler.

Os políticos que negociaram a coalizão do Führer julgavam que poderiam manipulá-lo para tornar possível a volta da monarquia, abolida em 1918. Só mais tarde, quando foi aprovada no Parlamento uma lei que dava a Hitler poderes absolutos, perceberam que tinha acontecido exatamente o contrário. O ditador tinha usado esses políticos para conseguir a sua meta.

Schleicher e Gregor Strasser foram executados na operação chamada de Noite das Longas Facas. Hoje, Kellerhof observa preocupado o crescimento do partido de extrema-direita AfD (Alternativa para a Alemanha):

— Por sorte ele não dispõe de um Hitler, nem de um Goebbels, mas há paralelos. O antissemitismo do NSDAP é hoje o ódio aos muçulmanos, por exemplo. 

Texto de Graça Magalhães - Ruether n'O Globo de 20/08/2018

https://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/coalizao-permitiu-que-hitler-subisse-ao-poder-22990578

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Vitória de brasileiro cria marco contra deportações nos EUA

Wescley Pereira ganhou direito de pedir cidadania com decisão do Supremo
O faz-tudo Wescley Pereira, 37, não está interessado em falar com a imprensa. Após cinco anos de uma batalha legal nos EUA para evitar a deportação, o mineiro que mora na ilha de Martha’s Vineyard (Massachusetts) prefere seguir a vida ao lado das duas filhas americanas e da esposa brasileira.
Mas a decisão da Suprema Corte americana envolvendo Pereira pode ter aberto o mais importante precedente em anos para que milhares de imigrantes busquem a cidadania americana, ao mesmo tempo em que ameaça mergulhar o sistema judicial americano no mais profundo caos.
Por 8 votos a 1, os juízes da máxima instância dos EUA decidiram, no final de junho, que o governo americano não pode enviar notificações para imigrantes comparecerem à audiência de deportação sem marcar dia e local para que esse encontro ocorra, como aconteceu com o brasileiro.
Entre outros efeitos, essa comunicação tinha o poder de congelar a contagem do tempo que um imigrante ilegal passava nos EUA.
Com dez anos contínuos no país, seria possível pedir o chamado cancelamento de remoção, mediante cumprimento de outras condições como pagamento de impostos, e requisitar a cidadania.
No caso de Pereira, ele estava havia seis anos nos EUA quando a notificação foi emitida sem data nem local fixados —as informações só foram enviadas quase 18 meses depois, e o caso só chegou a Justiça em março de 2013.
Por causa do procedimento falho do governo, a Suprema Corte também cancelou o congelamento do tempo corrido, o que significa que ele poderá pedir a cidadania (ele já está há 18 anos no país).
A decisão abre caminho para que milhares de imigrantes que receberam esses avisos incompletos entrem com o mesmo pedido na Justiça americana, diz o advogado David Zimmer, que representou o brasileiro.
“Você tem milhares de pessoas em situação semelhante à de Pereira e que não se qualificavam para pedir cancelamento de remoção por causa da notificação e agora poderão solicitá-la porque [com a nova decisão] o tempo não parou de correr”, afirma.
Kari Hong, professora assistente da Escola de Direito do Boston College, avalia que o caso é “um dos mais impactantes decididos em anos.”
“Ainda está sendo pouco valorizado, e pouca gente percebe o presente que foi para os imigrantes e as implicações para uma reforma do sistema de imigração. Vai afetar milhares ou dezenas de milhares de imigrantes”, estima.
O advogado Jesse Bless, do escritório especializado em imigração Jeff Goldman, diz que em torno de 200 casos dos que ele cuida podem se beneficiar da decisão. “A oportunidade é gigantesca”, afirma.
Segundo ele, mesmo deportados podem pedir revisão do processo, se a notificação tiver sido incompleta.
Hong diz que a notificação sem data e local para audiência viola “o que o Congresso e a Constituição estabelecem”. “Em vez de dizer que o imigrante tinha uma audiência, havia um intervalo que podia chegar a sete anos até que essa data fosse marcada. O governo não pode fazer isso, é o que a Suprema Corte diz agora”, afirma.
Essa prática é comum e originada numa falha de comunicação básica: os sistemas do Departamento de Segurança Doméstica, que emite as notificações, e os tribunais de imigração, que julgam os casos, não conversam.
Com isso, o departamento não tem acesso ao calendário das cortes para poder marcar dia e local das audiências.
Em sua decisão, a juíza Sonia Sotomayor afirmou que, dado o avanço tecnológico dos softwares hoje em dia, “é difícil imaginar por que o Departamento de Segurança Doméstica e os tribunais não possam trabalhar juntos para agendar audiências antes de mandar as notificações de comparecimento.”
A decisão já começa a influenciar o sistema jurídico americano. Em um caso recente no estado de Washington, um fazendeiro mexicano ameaçado de deportação por ter entrado novamente nos EUA teve o processo derrubado por causa da jurisprudência do caso envolvendo Pereira.
A possibilidade de que milhares de imigrantes recorram com base na decisão envolvendo o brasileiro também deve colocar mais pressão sobre os tribunais de imigração, que já estão no limite para julgar os muitos casos que continuam a chegar todos os dias.
“Não temos juízes suficientes para julgar os casos. Os que têm já estão sobrecarregados por processos que duram, em algumas situações, 20 anos. Não há apoio administrativo”, avalia Hong.
A decisão do Supremo é definitiva, afirma Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue, centros de estudo sobre América Latina nos Estados Unidos.
“A única questão é como o caso será interpretado pelos juízes: de forma ampla, beneficiando imigrantes nas mais diversas situações, ou limitada.”
Se depender do presidente americano, Donald Trump, o cenário deve continuar conturbado. Em junho, em discurso a empresários, o republicano rejeitou contratar mais juízes e defendeu fechar a fronteira com o México para deter a imigração ilegal.
“Eles querem contratar milhares e milhares de juízes. Quem são essas pessoas?”, criticou. “Nós não queremos juízes, queremos segurança na fronteira.”
Há, segundo a maior parte das estimativas atuais, cerca de 11 milhões de imigrantes irregulares nos EUA. “Uma pessoa poderia levar 50 anos para conseguir uma audiência com a atual estrutura”, diz Hong.

VISTO DE TURISTA

Wescley Pereira entrou nos Estados Unidos em junho de 2000, aos 19 anos, com visto de turista que expirava em dezembro do mesmo ano. Desde então, estava irregular no país.
Em 2006, ele foi preso em Massachusetts por dirigir embriagado, o que desencadeou o processo de deportação. Em maio de 2006, ele recebeu uma notificação para comparecer em audiência, mas sem data nem local para acontecer.
Mais de um ano depois, em 2007, o tribunal de imigração mandou pelos Correios para Pereira uma notificação com data e local para a audiência inicial, mas a comunicação foi enviada para o endereço errado e voltou ao remetente.
Pereira não compareceu na data estabelecida e a corte ordenou a deportação à revelia. Em 2013, o brasileiro violou outra regra de trânsito e foi detido pelo Departamento de Segurança Doméstica. O tribunal de imigração decidiu, então, reabrir o processo de deportação após Pereira provar que nunca recebeu a notificação de 2007.
Com 13 anos de estada nos EUA, ele decidiu pedir o cancelamento de remoção. Alegou que a notificação de 2006 não congelava o tempo passado nos EUA por carecer de data e local de audiência. A Suprema Corte concordou.

Reportagem de Danielle Brant e Júlia Zaremba na Folha de São Paulo de 17/08/2018

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/08/vitoria-de-brasileiro-cria-marco-contra-deportacoes-nos-eua.shtml

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Ela é ‘sua’, pode matar

Assassinatos, estupros e pancadaria contra mulheres são doenças da sociedade
Uma das cenas mais chocantes, e revoltantes, dos últimos tempos foi aquele assassino do Paraná espancando a própria mulher dentro do elevador do prédio onde moravam. Ele agredia a moça, uma advogada jovem e linda, sem ao menos franzir a testa. A expressão dele não era de ódio, era de poder. Como se esmurrasse uma coisa, um saco de batatas.
Trata-se de um casal de classe média alta, bonito, com curso superior, e o crime foi com requintes de crueldade, terminando com a queda da moça pela janela.
Assim, a história ganhou enorme repercussão. Mas foi só mais uma, numa rotina de violência que atinge as mulheres de todas as classes sociais, em todas as regiões.
Segundo o anuário da violência, divulgado ontem, 2017 registrou um recorde de assassinatos no País, com impressionantes sete mortes de homens e mulheres por hora. Por hora! Mas os dados sobre as vítimas mulheres têm um lado particularmente assustador.
Foram 221 mil casos de violência doméstica no ano, 60 mil estupros e 4,5 mil assassinatos. O que que é isso, minha gente? Estão tratando as mulheres como coisa para usufruir e jogar fora a qualquer hora! E justamente quando a Lei Maria da Penha – um marco no combate à violência contra a mulher – completa 12 anos. Como “comemoração”, vimos, além do crime bárbaro e nojento do Paraná, uma onda de feminicídios e o cotidiano de mortandade de mulheres no Rio, nas demais capitais e no interior do País afora. Eles espancam, estupram, esfaqueiam e atiram em mulheres por serem mulheres. Em Brasília, um policial matou a mulher com um tiro na cara na casa da mãe dela, deixando órfãs duas filhas, de 11 e 8 anos. Outro assassino atirou a companheira pela janela. É como se esses homens se sentissem no direito de decidir sobre a vida e a morte da “sua” mulher. Logo, é uma doença não de um indivíduo, mas de uma sociedade inteira, com o Estado impassível – ou simplesmente impotente. Não se sabe o que é pior.
Mas, duro mesmo, é a complacência da própria sociedade. Não sai da minha cabeça como nenhum vizinho, vizinha, porteiro, ninguém ouviu os gritos de desespero da Tatiane Spitzner? Ela apanhou no carro, entrando no prédio, dentro do elevador, tentou escapar num andar, foi empurrada no seu próprio andar. E ninguém percebeu ou ouviu em nenhum minuto?
Há poucos anos, eu estava no salão quando a cabeleireira chamou a secretária: “Olha! Ele está dando nela de novo!”. A sequência de sopapos e chutes, num quarto do outro lado da rua, era acompanhada com uma espécie de torcida: “Ih! Agora foi na cara”, “Caiu, ela caiu!”. Ficaram as duas se distraindo com a cena, enquanto as clientes olhavam placidamente, lavavam as mãos.
Diante da minha perplexidade, reagiram com duas máximas que rondam a sociedade: 1) “Eu não vou me meter em briga da marido e mulher”; 2) “Se ela vive apanhando e continua com ele é porque gosta”.
E o Disque Mulher do DF e nacional? Não serviram para nada. Um simplesmente não atendeu, apesar de mais de uma hora de tentativas. No outro, a atendente queria saber o nome do agressor, o nome da vítima... que ninguém tinha. A má vontade era evidente, gritante.
Lá pelas tantas, apareceram dois policiais com ar de enfado, como se aquilo não fosse nada demais. Subiram, ninguém atendeu e eles foram embora. Simples assim. No dia seguinte, o casal sumiu. E aquela moça certamente vai engrossar as estatísticas de assassinatos. Se é que já não engrossa, como indigente.
Bem, em época de eleições, é urgente discutir economia, governabilidade, princípios. Mas não discutir a guerra urbana, a violência, a saúde, a educação e a mortandade das mulheres é jogar fora uma grande oportunidade. E manter tudo como está.

Texto de Eliane Cantanhêde no Estadão 
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ela-e-sua-pode-matar,70002441095

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Carta aberta ao leitor do Jair Bolsonaro

Copio abaixo um texto do Gustavo Nogy, com o qual concordo
Eu sei que você não gosta de mim. Já me chamou de comunista, de petista, de nojento, de tendencioso, de corintiano. Mal cheguei, pediu minha caixa craniana desprovida de massa encefálica aqui na Gazeta do Povo (prática corriqueira entre petistas, a propósito. Você aprendeu rápido). Compreendo suas aflições, compadeço-me de seu sofrimento, faço bilu-bilu no seu beiço, mas precisamos conversar. Senta aí.
Jair Bolsonaro não tinha grande relevância há três, quatro anos. Nem para mim, nem para você. Ele é um efeito colateral (bom ou ruim?) da bancarrota petista. Hoje se apresenta como liberal em economia e conservador em costumes, mas há não muito tempo elogiava Hugo Chávez, criticava as privatizações, defendia a esterilização de pobres, fazia pouco caso de tortura, brincava sobre fuzilamento. De lá para cá, por convicção ou oportunismo, por maturidade ou pragmatismo – mudou. Só que, na vida eleitoral, o ônus da prova é – ou deveria ser – de quem se candidata, e não de quem vota. Eu não quero ser eleito ou mandar em ninguém. Ele quer. Ele, portanto, prove que mudou.
Pois a verdade é que ele é deputado há trinta anos, não exatamente um herói de guerra. Que eu saiba, nada fez de notável na política nacional. Fala sempre muito grosso, mas de grosso mesmo fez pouca coisa. Vestiu farda, mas não foi e voltou de guerras. Um militar comum, com seus méritos e deméritos, que há muito vive à paisana com os votos e o dinheiro público. Sim, é preciso lembrar esse detalhe: Bolsonaro e família são políticos que vivem de votos e dinheiro público. São servidores. São empregados do povo. Em tese, num país normal, deveriam ser tratados assim: como servidores, empregados. Cobrados por isso.
Mas o Brasil não é um país normal. Aqui, mais do que em muitos outros lugares, o funcionário público trata o pagador de impostos como se este fosse seu subordinado, e não o contrário. E se o funcionário público cotidiano e banal, no sopé da hierarquia, já se comporta assim, o político eleito, então, costuma se acreditar um Churchill. Qualquer vereador trata o popular, depois das eleições, como vassalo dos mais reles. Qualquer deputado se apresenta como Napoleão Bonaparte em desvio de função.
E este é o nó, o x, o enrosco, o caroço do angu. Acredito (com dificuldade, mas acredito) que seja possível admirar determinados políticos. Mais do que isso, determinados políticos podem ser necessários, como antídoto, contra determinados outros políticos. Você, eleitor de Bolsonaro, tem convicção de que ele é capaz de se contrapor a um estado de coisas – e a uma classe política – que devastou o país como praga egípcia.
Pode ser? Pode ser. Não sou dado a profecias. Minhas opiniões são isso: opiniões. Fundamentadas no que leio, no que vejo, no que intuo, no que ouço. Tanto quanto você. Não há certezas em jogo, e quem disser que há estará mentindo. Seu candidato predileto não foi presidente de nada, não foi prefeito de Itapecerica da Serra. Você sabe dele o que ele fala de si mesmo e dos outros. Isso é pouco.
É pouco porque o país é grande, os problemas são muitos, os bandidos são legião. Bravatas, frases de efeito e polêmicas servem para campanhas eleitorais, não para conduzir um país. Também não faz sentido nenhum o seguinte argumento: “Tivemos de conviver com dois presidentes ignorantes nos últimos anos, por que agora o Bolsonaro tem de ser especialista em economia?!”
Primeiro: é claro que não tem de ser especialista em nada; porém, uma visão um pouco mais clara da conjuntura, da conexão entre os problemas, do alcance das soluções, seria bom. Segundo: então, se tivemos de conviver com dois ignorantes de esquerda, agora teremos de conviver com um ignorante de direita? Reclamamos durante anos da ignorância alheia, desprezamos a grosseria de Lula, rimos dos apagões de Dilma, para agora aplaudirmos a nossa ignorância, a nossa grosseria, os nossos apagões?
Se a cada pergunta que lhe é feita o candidato apela aos universitários – também conhecidos como “minha equipe econômica” –, fico sem saber o que ele de fato sabe, pensa, espera, planeja. Não votamos em equipe econômica, que pode ser trocada a qualquer momento. Votamos no presidente. Portanto, se Jair Bolsonaro quer mesmo salvar o país da ruína, deve oferecer mais do que “alguém da minha equipe vai resolver”, “o Paulo Guedes sabe”. O líder é ele, o eleito será ele. Espero dele, e não de seus parceiros, uma visão complexa para um país complexo. Ou então que Paulo Guedes se candidate para que eu vote nele.
Gostemos ou não de jogar o jogo democrático, na democracia é assim. Bolsonaro terá de se haver com o Centrão, com políticos mais à esquerda, com a onipresença do STF, com as estatais sucateadas, com uma política tributária kafkiana, com a pirâmide financeira conhecida como “previdência social”, com um cenário mundial não muito auspicioso, com relações internacionais delicadas etc. Nada disso se compreende e se resolve com jargões e apelos à moral e aos bons costumes. Melhor já ir se acostumando…
Ele é honesto? Até segunda ordem, sim. Não sabemos se sua honestidade, no entanto, resistirá às muitas tentações e urgências do cargo. E não falo das tentações de enriquecimento ilícito, mas daquelas políticas. Das tentações do poder, de comprar e vender votos e apoios, de trocar favores para que pautas entrem ou saiam de votação, de negociar ministérios ou secretarias para garantir governabilidade, e assim por diante. Os males da vida política vão muito além do “roubo” popularmente entendido.
Portanto, prezado leitor de Gazeta do Povo e furibundo eleitor de Jair Bolsonaro: tente conviver com as discordâncias, ainda que as discordâncias porventura lhe pareçam exageradas. Se não quer que Bolsonaro seja taxado como guru, não faça dele um guru. Se não quer ser tratado como membro de seita, não se comporte como membro de seita. Se não quer ser tido como trainee fascista, não tenha atitude fascistoide.
Um político é um político é um político. Receberá salários e benefícios diretamente dos nossos bolsos. Do seu bolso, que vota nele. Do meu bolso, que não voto nele. Que ele seja o presidente do país é antes uma grande, uma imensa, uma temerária responsabilidade, que propriamente um privilégio. Como deputado, deve ao povo muito mais do que o povo deve a ele. Como presidente, deverá ainda mais.
Compreenda, portanto, todas as críticas; não só as minhas. Acostume-se com elas. Aprenda a dormir abraçadinho com as críticas. Quem opina tem de opinar. Quem governa tem de governar. Aceite que o candidato, antes das eleições, e o presidente, depois delas, seja questionado incessantemente. Exija dele o melhor. Não o proteja, ele não precisa disso, ele é mais poderoso do que nós. Sobretudo: ele não merece isso. Nem ele, nem ninguém. Porque do candidato popular ao presidente populista, do deputado polêmico ao chefe autoritário, a história nos cansou de ensinar: é um pulo, é uma justificativa, é um voto.

Da Gazeta do Povo de 04/06/2018 

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