sexta-feira, 27 de maio de 2022

PEC 206: um duro golpe na juventude

Mensalidade nas universidades públicas afetará jovens de classes populares





A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 206/2019, de autoria do deputado federal General Peternelli (União/SP), visa alterar dois artigos da Constituição Federal com o objetivo de viabilizar a cobrança de mensalidades nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Uma proposta requentada, que já circula há tempos no país, de inspiração norte-americana e de parte das universidades europeias, que mesmo sendo públicas passaram a cobrar mensalidades como parte do ajuste neoliberal, desde os anos 1980 – e que resultaram em gigantesco endividamento estudantil.

Se aprovada, a PEC, que já recebeu relatório favorável do deputado federal Kim Kataguiri, do mesmo partido, deve ferir de morte o recente processo de democratização da educação superior no país.

E qual a justificativa para a tamanho retrocesso? O relator afirma - ao que tudo indica, sem profundo conhecimento sobre o assunto -, que a "maioria dos estudantes dessas universidades acaba sendo oriunda de escolas particulares e poderiam pagar a mensalidade.... e que não é correto que toda a sociedade financie o estudo de jovens de classes mais altas".

Apesar de ter como base um relatório de autoria do Banco Mundial, chamado Um Ajuste Justo, de 2017, o argumento é equivocado na medida em que faz uso de dados ultrapassados do perfil de estudantes das instituições públicas, anteriores ao estabelecimento da política de cotas e da expansão de vagas, a partir de 2005.

Para combater esse tipo de equívoco, que costuma se espalhar pelas redes sociais como um rastilho de pólvora, é fundamental recobrarmos fatos históricos e evidências empíricas. Dez anos depois de promulgada a Constituição Federal, tomou corpo na sociedade brasileira um movimento que reivindicava a adoção de cotas raciais e sociais para o ingresso nas universidades públicas, historicamente elitistas. O destaque especial ficou por conta do protagonismo do movimento negro, que logrou a adesão de várias instituições públicas na adoção de ações afirmativas ao longo dos anos 2000.

Na década seguinte, foi finalmente promulgada 
Lei de Cotas para as IFES (2012), que consolidou uma mudança significativa no histórico perfil elitista da comunidade universitária, com a reserva de 50% das vagas de ingresso para estudantes que tivessem feito todo o Ensino Médio em escolas públicas, combinando a este perfil a situação de renda familiar – possuir até 1,5 salários mínimos per capita (R$ 1.818,00 nos valores de hoje) - e/ou a autodeclaração de raça e etnia.

No final de 2016, a lei passou a incluir um percentual de reserva também para pessoas com deficiência. O montante de vagas reservado é definido de acordo com a proporção da população-alvo nas unidades da federação onde as instituições estão localizadas. Com isso, as universidades públicas brasileiras têm ficado cada vez mais diversas e inclusivas.





Os dados evidenciam que entre 2012 e 2022, com 10 anos de vigência da política de cotas, o perfil estudantil se alterou profundamente. Além disso, há evidências recentes de que filhos das elites estão migrando para universidades privadas de ponta, com altas mensalidades e portanto super seletivas, ou para cursos no exterior, de valores ainda mais elevados.

Além de penalizar jovens de classes médias e baixas que ainda estão nas Universidades Públicas, a cobrança de mensalidades deve produzir um impacto devastador, como ocorreu com o endividamento estudantil nos EUA e em outros países, como o Chile. Nos EUA, a cobrança de mensalidades foi a porta de entrada para a privatização de serviços universitários e o avanço de práticas mercantis de ensino e pesquisa. Sempre é bom ressaltar que o princípio constitucional do direito à educação é universal, no Brasil. Isso significa que a educação pública de qualidade deve estar disponível a todos indistintamente e não deve ser convertida em mercadoria.

Outro mito que precisa ser desfeito diz respeito ao suposto alto custo dos estudantes das públicas em comparação com as IES privadas ou estrangeiras. Como já mostrou o prof. Nelson Cardoso Amaral, da UFG e do SoU_Ciência, o Brasil tem um gasto por estudante na educação superior abaixo da média dos países da OCDE, apesar de não ser muito distante. Entretanto, essa comparação deve ser vista com muito cuidado, pois no orçamento das universidades federais brasileiras estão incorporados recursos de manutenção de seus hospitais e laboratórios de pesquisa, museus, orquestras, rádios, televisões, fazendas, centros de eventos, aposentados e pensionistas nas folhas de pagamento etc.

Não é possível admitir, em termos de comparação, uma conta que apenas divide o valor orçamentário pelo número de estudantes de graduação matriculados nos cursos ofertados pelas IFES – desconsiderando estudantes de especialização e pós-graduação, residentes em hospitais universitários etc.

Ao invés de ter que defender o óbvio, a gratuidade e o acesso à educação como um direito fundamental, nós deveríamos estar cobrando a responsabilidade de nossos governantes de projetar e debater a continuidade da expansão das universidades públicas, a ampliação de vagas de graduação e de pós-graduação, o aperfeiçoamento da política de cotas e a retomada dos investimentos, visto que ainda há um número enorme de candidatos sem vagas nas IES públicas, mesmo em vista da expansão das universidades privadas desde 1990.

É necessário clareza para compreender os verdadeiros desafios da educação brasileira e enfrentá-los com competência: uma alocação justa dos fundos públicos e a revogação do teto de gastos para a educação superior, assegurar o futuro dos jovens e o desenvolvimento do nosso país, com soberania e equidade.

Texto de: 
Maria Angélica Minhoto
Pedagoga e economista, doutora em Educação pela PUC-SP. Professora associada da Educação da Unifesp. Coordenadora do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência, o Sou_Ciência

Pedro Arantes
Arquiteto e urbanista, professor de História da Arte na Unifesp e doutor pela USP. Coordenador do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência, o Sou_Ciência

Soraya Smaili

Farmacêutica e professora titular da Escola Paulista de Medicina da Unifesp. Coordenadora-geral do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência, o Sou_Ciência

Na Folha de São Paulo 
https://www1.folha.uol.com.br/blogs/sou-ciencia/2022/05/pec-206-um-duro-golpe-na-juventude.shtml 

segunda-feira, 23 de maio de 2022

A Revolução de 1924

Historiadora traz à tona a ignorada "Revolução de 1924"

Em "Bombas sobre São Paulo", Ilka Stern Cohen descreve bem o clima daquela época

Bombardeio de artilharia ou por aviões, tanques rondando as ruas, tiroteios por soldados bem armados e escombros em toda parte.

São Paulo já teve seu momento Bagdá, e este pequeno livro ilustrado relembra bem o que aconteceu. "Bombas sobre São Paulo - A Revolução de 1924" é pequetito, mas cumpridor.

Existem períodos ou acontecimentos históricos que costumam ser negligenciados por algum motivo. História também tem moda.




A rebelião constitucionalista de 1932 foi bem mais estudada do que o conflito político de 1924; mesmo a saga dos 18 do Forte de Copacabana ganhou mais destaque. Quem olha a profusão de fotos de destruição deste livro da historiadora Ilka Stern Cohen fica se perguntando como é que se pôde ignorar a Revolução de 1924.

"Para além das explicações atreladas à história política, entretanto, penso que o principal motivo desse "esquecimento" seja o fato de que fundamentalmente não há o que comemorar: a Revolução de 1924 foi um desastre que afetou seus promotores, seus oponentes e, em especial, os habitantes da cidade de São Paulo, que invariavelmente relembram, quando inquiridos ou relidos, a dimensão da tragédia: vidas interrompidas, milhares de feridos, privações, mortes, fome e frio", afirma a autora.

Resumidamente, na madrugada do dia 5 de julho do ano de 1924, unidades rebeldes do Exército e da Força Pública (hoje Polícia Militar) ocuparam as ruas de São Paulo. O objetivo era organizar uma "marcha revolucionária" em direção ao Rio de Janeiro para depor o presidente da República, Arthur Bernardes.
Mas houve confronto com tropas legalistas e a luta se estendeu a vários pontos da cidade, envolvendo milhares de combatentes durante 20 dias.
O que espanta nesse conflito é o pouco caso que os dois lados tinham com a cidade e seus moradores. Fábricas, prédios públicos, áreas residenciais eram bombardeados sem nenhuma precisão -ou intenção- cirúrgica.




Legendas imprecisas

A autora reuniu um bom conjunto de fotos que, por sorte, já vieram com legendas impressas. Sem dúvida isso facilitou a identificação, mas trouxe certa preguiça. As legendas poderiam ter sido mais bem trabalhadas em vez de meramente repetir o que está escrito na foto. Uma foto também é um documento histórico e tem de ser tratada como tal.

Por exemplo, a foto com a legenda simples "Trincheira na rua Sete Abril" mostra um grupo de soldados posando. Há vários tipos de uniforme e mesmo homens com roupa civil. Quem são eles? Revoltosos ou legalistas? Que fazem ali? Que armas portam? Faltam respostas a estas e outras perguntas.

O livro não se limita a relatar os confrontos. Há também uma bem feita descrição da cidade daquela época, algo difícil de reconhecer pelo paulistano de 2007. "De fato, percorrer as memórias e procurar os vestígios de 1924 na cidade de hoje é um desafio: são quase irreconhecíveis as paisagens fotografadas naquele ano", diz Cohen.




Em compensação, soa incrivelmente atual a mentalidade da época, especialmente da elite, de valorizar o que é importado em detrimento do nacional, revelada em anúncios de jornal ou nomes de lojas em francês.

O escritor Monteiro Lobato era um dos que ironizava essa mania caipira pelo estrangeirismo. Mas a velha mania continua, bastando ver qualquer anúncio de jornal com o nome de prédios novos; e a fixação em grifes só mudou de endereço, da velha rua "chic" 15 de Novembro para os atuais "shoppings".


BOMBAS SOBRE SÃO PAULO - A REVOLUÇÃO DE 1924
Autor: Ilka Stern Cohen
Editora: Unesp
114 págs
Avaliação: bom


Texto de RICARDO BONALUME NETO

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0206200721.htm


VINTE E TRÊS DE MAIO DE 1932

Centro de SP estremeceu há 90 anos, e morte de jovens deu origem à célebre MMDC

Combates entre getulistas e opositores em 23 de maio de 1932 deixaram 14 mortos, entre eles Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo

MMDC é uma placa um edifício histórico do centro de São Paulo, o Barão de Itapetininga, situado na rua de mesmo nome, na esquina com a praça da República.

Do prédio de número 298, com a placa "MMDC partiram os disparos que alvejaram em 23 de maio de 1932 os jovens Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo durante manifestação. Suas iniciais designaram a sociedade interessada na derrubada de Vargas.





Há exatamente 90 anos, o conflito entre aqueles que estavam dentro do prédio —os militantes favoráveis a Getúlio Vargas— e os que o cercavam —a crescente oposição ao líder gaúcho— foi além dos tiroteios. O chão da praça tremeu algumas vezes com o impacto das granadas lançadas pelos getulistas.
"A guerra começou na praça da República", escreveu o historiador Hernâni Donato em referência à Revolução de 32, também conhecida como Revolução Constitucionalista.



Para falar das motivações do 23 de maio, é preciso regressar a outubro de 1930, quando o gaúcho encabeçou um golpe e assumiu o comando do país.

A maior parte da classe política paulista, satisfeita com as benesses da chamada República Velha, tinha resistido aos avanços getulistas naquele ano. Mas parcela significativa da elite do estado apoiou a deposição do presidente Washington Luís.
"Esses paulistas imaginavam que Getúlio daria o golpe e depois iria repor a ordem constitucional", diz Ilka Stern Cohen, doutora em história social pela USP e autora de "Bombas sobre São Paulo - A Revolução de 1924". Eles também imaginavam que teriam seu quinhão de poder no estado no novo cenário.

Nem uma coisa nem outra. Ao assumir o poder, Getúlio dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, e passou a indicar interventores para os estados. No caso de São Paulo, escolheu o militar pernambucano João Alberto, iniciativa vista como uma afronta pelas lideranças do estado.

O incômodo aumentou com algumas medidas de João Alberto, como a nomeação de oficiais do Exército para delegacias regionais, e a demora para convocar uma Constituinte ampliou a indignação.

A questão política é preponderante para o fortalecimento da oposição no estado, segundo Boris Fausto, autor de "A Revolução de 1930". Para o historiador, "Getúlio tratou São Paulo como terra arrasada".


As elites econômicas (empresários, fazendeiros, industriais) e a classe média eram mais veementes nas críticas, mas a maior parte das camadas populares paulistas também desaprovava o governo federal.

Havia ainda uma alteração de rota na condução da economia. Na República Velha, São Paulo tinha voz determinante em decisões sobre a cafeicultura, o que mudou substancialmente com a ascensão do político gaúcho.

As greves se tornaram frequentes na capital paulista e no interior e "são vistas como o elemento mais perturbador da ordem pública", como aponta a historiadora Vavy Pacheco Borges no livro "Tenentismo e Revolução Brasileira".
São paralisações defendidas por Miguel Costa, ex-comandante da coluna batizada com o nome dele e de Luís Carlos Prestes. Àquela altura, Costa era líder da Legião Revolucionária, movimento de apoio aos ideais da Revolução de 30.

Não bastassem esses e outros entraves políticos e econômicos, prevalecia, segundo os historiadores ouvidos pela Folha, uma construção idealizada, que pressupunha a superioridade paulista diante do resto do país.

Boris se recorda de uma imagem recorrente na época, a locomotiva puxando 20 vagões vazios, ou seja, São Paulo e os outros 20 estados, conforme a divisão em vigor no período.

"A elite paulista expressava arrogância em relação aos demais estados", diz. Em suma, a "locomotiva" apartada do poder central era algo inadmissível para grande parte dos paulistas.

João Alberto não resistiu à pressão e deixou o poder. Passados alguns meses, Getúlio escolheu Pedro de Toledo, um nome civil e paulista, como queria a oposição. Nesse momento, no entanto, a animosidade já tinha atingido um nível alarmante e restavam poucos grupos em São Paulo, como os socialistas, ao lado do governo federal.

"Já havia uma grande efervescência desde o final de 1931. Em 23 de maio, aconteceu a explosão", conta Ilka Stern Cohen. Naquela noite, cerca de 200 estudantes, muitos deles com porretes e barras de ferro, como descreve o jornalista Lira Neto na biografia de Getúlio, partiram em direção à sede da Legião Revolucionária, na rua Barão de Itapetininga. Assim que se aproximaram do prédio, foram recebidos com tiros.

Os estudantes, agora com apoio de populares, não recuaram. Arrombaram lojas de armas nas ruas próximas e levaram fuzis e revólveres para o contra-ataque.

Não foi suficiente.

Embora em menor número, os getulistas ocupavam uma posição estratégica, a sobreloja do edifício, e tinham mais poder de fogo, lançando granadas nos manifestantes. O combate só acabou no final da madrugada do dia 24, quando o Exército chegou e prendeu os membros da Legião Revolucionária.

O tumulto terminou com 13 mortos e muitos feridos, segundo Ilka, mas só quatro ganharam, de fato, notoriedade.

O auxiliar de escritório Euclides Miragaia, o comerciário Antônio Américo Camargo Andrade e o fazendeiro Mário Martins de Almeida caíram em meio aos tiroteios. Atingido por uma bala, o ajudante de farmácia Dráusio Marcondes de Sousa, de 14 anos, morreu alguns dias depois.



Em poucos dias, uma organização paramilitar antigetulista adotou o nome MMDC, uma decisão que tornou a sigla célebre.

Nas décadas seguintes, homenagens pela cidade mantiveram vivas as marcas daquele dia. Nos anos 1950, por exemplo, a grande avenida que corta bairros como Bela Vista e Vila Mariana ganhou o nome de 23 de Maio.

A guerra de 1932 havia se tornado uma questão de tempo. Eclodiu um mês e meio depois –não por acaso 9 de Julho é o nome de outra importante avenida paulistana. Mas essa outra história.

CRONOLOGIA DA REVOLUÇÃO DE 32

Comício pró-Constituinte (25.jan.32)
Ato leva 100 mil pessoas à praça da Sé

Frente Única Paulista (16.fev.32)
É formado pacto entre o Partido Democrático e o Republicano Paulista contra Vargas

Morte dos estudantes (23.mai.32)
Em ato contra Vargas, 14 constitucionalistas são mortos; Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo ganharam notoriedade

Começa a Revolução (9.jul.32)
Comando militar é formado pelos generais Isidoro Lopes, Bertoldo Klinger e coronel Euclides Figueiredo

Texto de Naief Haddad,
repórter em São Paulo, na Folha desde 1997, já foi editor de Esporte, Projetos Especiais, Turismo, Comida e Guia, além de editor-adjunto da Ilustrada. Hoje é repórter especial
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/05/centro-de-sp-estremeceu-ha-90-anos-e-morte-de-jovens-deu-origem-a-celebre-mmdc.shtml

sábado, 21 de maio de 2022

Congresso reforça desigualdade há 30 anos e IR aperta classe média

Parlamentares preferem tributação regressiva, enquanto imposto cai para os mais ricos 

Quase todas as medidas tributárias propostas ou analisadas por parlamentares desde a Constituição de 1988 foram no sentido de aumentar a regressividade dos impostos ou criar isenções e regimes especiais para grupos específicos, agravando a desigualdade de renda no Brasil.

Nesse contexto, é a classe média que vem sendo espremida há mais de três décadas com o aumento da carga do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF).

A partir do fim da ditadura militar (1964-1985), o peso do IRPF diminuiu para quem está no topo da pirâmide, mas praticamente dobrou para os que ganham entre três e cinco vezes acima da renda média.

Dois estudos recentes jogam luz sobre esses dois movimentos a partir da Constituição de 1988, explicitando com dados como a injustiça tributária e a sobrecarga para a classe média caminharam juntas no Brasil.


Entre 1989 e 2020, os parlamentares propuseram ou analisaram 4.841 projetos, medidas provisórias ou propostas de emenda à Constituição na área tributária. Só 5% (247) dessas proposições foram progressivas, no sentido de tributar as camadas mais ricas ou aliviar as mais pobres (como na isenção a produtos da cesta básica).

Do total, 67,2% das propostas criavam deduções ou isenções do Imposto de Renda, do IPI ou regimes especiais para beneficiar grupos, setores produtivos específicos e municípios.

"De cada 100 proposições com mudanças tributárias, 67 buscaram beneficiar algum grupo, contribuindo para ampliar a desigualdade em vez de reduzi-la", concluem Eduardo Lazzari, Marta Arretche e Rodrigo Mahlmeister em pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole, da USP, com apoio da Samambaia Filantropias.

No período pós-ditadura, o Congresso brasileiro desenhou um modelo de ampla inclusão social baseado no aumento do gasto público. Mas não adotou a progressividade na tributação, e buscou cada vez mais recursos entre os mais pobres, com impostos sobre o consumo. Ao mesmo tempo, foi adotando, ano após ano, isenções para grupos específicos.


Os pesquisadores elencam algumas razões para o aumento da desigualdade via tributos:

1) Alta dependência de impostos sobre produtos e serviços, levando os pobres a pagar proporcionalmente mais, como percentual da renda, que os ricos (na última década, da carga tributária total, 30% vieram desses tributos, ante 10% na média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que representam 60% do PIB global);

2) Pequena incidência de tributos sobre a propriedade, com só 5% da arrecadação gerada com impostos sobre veículos, transferências de patrimônio, doações e propriedades urbanas e rurais;

3) Baixa tributação, proporcionalmente, sobre a renda dos mais ricos via IRPF e brechas para converter altos salários em rendimentos de capital, com menor cobrança sobre pessoas jurídicas (levando à pejotização de profissionais com rendimentos mais altos).

Nos últimos anos, o Brasil também ampliou os incentivos fiscais a dezenas de grupos e setores, como à Zona Franca de Manaus e a entidades sem fins lucrativos. A partir de 2003, essas isenções praticamente dobraram, para cerca de 4% do PIB, chegando a mais de R$ 300 bilhões ao ano.

"Ao longo de todos esses anos, em todas as correntes políticas, deu-se um aumento de benefícios a determinados setores ou grupos que se comunicam com os parlamentares, dando-lhes vantagens eleitorais", afirma Marta Arretche, do Departamento de Ciência Política da USP.

"Quem se beneficiou sabe quanto deixou de pagar [em impostos] e quem o favoreceu. Mas a conta é difusa para a sociedade, traduzindo-se em menos recursos para políticas sociais ou investimentos."

No ano passado, o Ministério da Economia enviou ao Congresso projeto de lei (PL 2.337/2021) que elevava o limite de isenção para o IRPF (dos atuais R$ 1.903,98 para R$ 2.500) e instituía alíquota de 20% sobre lucros e dividendos, com piso de isenção de R$ 20 mil.

Considerada progressiva em termos tributários, mas bombardeada por mais de uma centena de associações empresariais, a proposta foi desidratada na Câmara e não prosperou no Senado.

Outro trabalho, do Made (centro de pesquisas sobre desigualdade da USP), mostra que, de 118 leis aprovadas que modificaram o IRPF entre 1947 e 2020, apenas 15% tinham como objetivo alegado alterar a distribuição de renda.

O levantamento revela também que, após a Constituição de 1988, diminuiu a diferença entre o quanto os mais ricos e a classe média pagam efetivamente em IRPF.

Em 1988, quem ganhava cerca de 15 vezes mais que a renda média no país pagava, efetivamente, 27,5% de IR. Hoje, recolhe menos: 25,3%.

Na contramão, quem recebia três vezes acima da renda média viu seu IR efetivo saltar de 8% para 16,6% —e de 13,2% para 21% entre os que ganham cinco vezes mais que a média.

A perda de progressividade tributária explicitada nesses percentuais não considera isenções, abatimentos e deduções, e pode ser ainda maior.

"Nas últimas décadas, a classe média acabou achatada em um ambiente tributário regressivo. Em relação à ditadura, ela paga hoje muito mais IR, o que explica um certo saudosismo de alguns em relação ao regime militar", diz Nikolas Schiozer, autor do trabalho do Made-USP, realizado com João Marcolin, Isabella Bouza e João Pedro Leme.

Entre 1975 e 1976 (na ditadura), houve esforços para elevar a progressividade no IR como resposta às críticas de que o "milagre econômico" (1967 a 1973) fez o país crescer, mas aumentou a desigualdade.

"Na redemocratização, o assunto [redução da desigualdade via IRPF] desaparece da pauta e da lista de medidas aprovadas, mesmo nos governos do PT", diz Schiozer.

Para Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre, apesar do diagnóstico de que o sistema tributário está se tornando mais injusto e regressivo, a economia política tem ido no sentido de piorá-lo.

"Do ponto de vista do mérito, é difícil encontrar quem não defenda a progressividade tributária. Mas é sempre um debate antipático, porque ninguém gosta de pagar impostos", afirma.

"A saída para aumentar a arrecadação tem sido tributar o consumo, alternativa mais ‘escondida' do que onerar diretamente renda ou patrimônio."

O resultado é que, proporcionalmente, quem ganha menos paga mais impostos —aumentando a regressividade tributária e a desigualdade.

Reportagem de Fernando Canzian na Folha de São Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/05/congresso-reforca-desigualdade-ha-30-anos-e-ir-aperta-classe-media.shtml

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Vendilhões da democracia

É estarrecedor que membros de MDB e PSDB, partidos ligados às lutas democráticas, sejam coniventes com Bolsonaro. Por benefícios de curto prazo, transigem com princípios inegociáveis



É triste constatar que a maioria do MDB, partido cuja história está diretamente vinculada à restauração da democracia no País e à Constituição de 1988, não veja problemas em aderir ao bolsonarismo. Segundo revelou o Estadão, se o MDB declinar da decisão de ter candidatura própria ao Palácio do Planalto, a maioria do partido inclina-se por apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro. Os dados são de uma sondagem feita pelo MDB entre seus prefeitos, bancadas e delegados eleitos pelos diretórios estaduais.

Ainda que não diminua sua responsabilidade, é preciso reconhecer que o MDB não está sozinho nessa proximidade com o presidente da República que afronta as instituições, põe em dúvida o processo eleitoral e tenta envolver as Forças Armadas em devaneios golpistas. Também parte significativa do PSDB, especialmente na Câmara dos Deputados, não vê empecilhos em alinhar-se ao bolsonarismo. Citam-se os dois partidos por seu histórico de defesa do regime democrático, mas há também outras legendas que tratam Jair Bolsonaro como um útil parceiro.

Observa-se, assim, um nítido decaimento da consciência cívica não apenas em parte da população – há, por exemplo, quem saia à rua para pedir o fechamento da Corte constitucional –, mas da própria classe política. É um nível de retrocesso ainda mais preocupante, pois se dá em pessoas que, pela própria trajetória profissional, deveriam ser especialmente cuidadosas com o regime democrático e as suas instituições. Como um deputado, por exemplo, pode apoiar um presidente da República que questiona, sem nenhuma prova, a lisura das eleições? Como um parlamentar pode apoiar um movimento político que, entre suas causas, defende o AI-5, pede o fechamento do Congresso e postula o retorno da ditadura militar?

É constrangedor, deve-se admitir, que parte da população defenda essas barbaridades, numa imitação irrefletida do que Jair Bolsonaro defendeu ao longo de sua carreira política. Nenhuma das bandeiras antidemocráticas do bolsonarismo ajuda a resolver, por mínimo que seja, algum dos problemas e desafios nacionais. Além disso, não faz sentido que alguém que se considere defensor das liberdades de expressão e de opinião manifeste apoio à reedição do AI-5. Agir assim expressa profunda ignorância histórica, constitui evidente manipulação política.

Mas ainda mais chocante e constrangedor é constatar que partidos políticos que, de uma forma ou de outra, participaram da luta pela redemocratização – o PSDB, por exemplo, nasceu do MDB, que era oposição ao governo militar – sejam coniventes com a agenda bolsonarista. Nessa indignação aqui não há nenhuma ingenuidade. É notório que esses partidos, especialmente os seus grupos mais próximos ao bolsonarismo, estão sendo fartamente alimentados pelo governo federal por meio das mais variadas emendas e de outras verbas públicas. Ninguém esconde isso, nem mesmo Jair Bolsonaro. Com sua falta de modos, o bolsonarismo instaurou em Brasília um ambiente de escárnio em relação à compra de apoio político. Tudo é respondido com um “e daí?”.

O grande problema, para o qual os partidos perigosamente fazem vista grossa, é que o bolsonarismo não é apenas um governo fraco e omisso, com o qual políticos hábeis podem lucrar muito no curto prazo. Jair Bolsonaro ameaça o livre funcionamento das instituições, a começar pela Justiça Eleitoral. Ou seja, ele coloca em risco a própria continuidade dos partidos. Na contagem paralela de votos do bolsonarismo, quem garante que os votos dados para o MDB e o PSDB irão mesmo para os dois partidos? No sonho bolsonarista de ter um Judiciário refém do Executivo, não há espaço para demandas contrárias aos interesses de Jair Bolsonaro.

A conivência dos partidos, especialmente MDB e PSDB, com o golpismo de Jair Bolsonaro é muito perigosa. Tolera-se o intolerável. Normaliza-se um antirrepublicano e inconstitucional exercício do poder. E tudo isso vindo de legendas que, como se viu nas eleições de 2020, não precisam de Jair Bolsonaro para ser competitivas nas urnas.

Editorial d'O Estado de São Paulo


https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,vendilhoes-da-democracia,70004056339

terça-feira, 3 de maio de 2022

Como afastar o adolescente do celular

O que fazer? O segredo é o comedimento, dirão os mais sábios. O problema é que nos obriga a negociar com os adolescentes, que é algo que exige muita paciência, além de várias caixas de Rivotril 




Um pé de cabra, grande, de preferência com um tamanho assustador. Encaixe entre o aparelho e a mão e empurre sem dó nem piedade. Quando o adolescente ainda estiver atônito, aproveite a ferramenta e acerte em cheio o celular. Várias vezes, até torná-lo um monte de vidro. Por via das dúvidas— é um aparelho que tem parte com o demônio — mergulhe os caquinhos em um balde cheio de água salgada, deixando de molho por meia hora. Pronto, o problema está resolvido.

O quê? O adolescente ficou revoltado? Exige um celular novo? Jogue os classificados no colo dele. De preferência aberto na parte dos anúncios de empregos. Recado dado.

Não se preocupe leitor, muito menos acione a polícia, a cena é apenas um delírio de pai. Desconfio que na vida real a atitude me traria muitos cancelamentos e algumas tretas jurídicas, dessas que fazem o oficial de Justiça bater na porta. Melhor não, ainda que tenha certeza de que seria o que meus próprios pais fariam caso o viciado adolescente fosse eu.

Não sei se outros pais têm esse mesmo problema, mas por aqui as telas se tornaram drogas pesadas. Se deixo o Martín solto, ele instala no sofá a sua cracolândia particular, ou seja, um celular na mão, um laptop no colo e a TV ligada ao fundo.

É o combo de Satanás.

Se você somar o conteúdo de tudo o que ele quer assistir não dá o QI de uma ameba sequelada: é youtuber descerebrado, é TikTok alienante, é joguinho sem pé nem cabeça. Complicado. Quem foi o irresponsável que deu o celular, o laptop, a TV para o menino, perguntará o leitor, já indignado. Sim, fui eu, sou culpado, admito. Gostaria de ser como esses pais-prodígios do Instagram, que postam toda hora os filhos adolescentes assistindo a concertos no Municipal, procurando uma edição rara de “Os Lusíadas” na Biblioteca Nacional ou então debatendo a potência artística de uma exposição no Museu de Arte Moderna.

Não sei se os outros pais, os normais, também ficam divididos na hora de tentar resolver o vício digital dos filhos. É uma decisão difícil. Obrigá-los a viver uma vida mais analógica, fora do submundo on-line, pode formar um ser independente, com uma formação sólida. Sim, mas também pode criar um pária, um eremita mirim, isolado dos colegas conectados.

Disso eu entendo.

Os meus pais eram daqueles que achavam que a TV era a moradia do Tinhoso. Uma fábrica de alienados, diziam. Desenhos, só meia hora por dia, e séries e novelas, nem pensar. Telejogo e Atari? Hahahaha. Cresci sem saber quem eram Silvio Santos, Chacrinha ou Space Invaders, muito menos quem matou Salomão Hayalla. Porém, chamava o Cidadão Kane de tio e jogava xadrez por correspondência. Um legítimo nerd, como decreta o meu filho.

Talvez por isso fico com um pé atrás para cortar o wifi e deixá-lo à margem. O que fazer? O segredo é o comedimento, dirão os mais sábios. Uma hora por dia? Só no fim de semana? O problema é que o comedimento nos obriga a negociar com os adolescentes, que é algo que exige muita paciência, além de várias caixas de Rivotril. Uma batalha durante a semana, uma guerra no finde. É tanta briga que às vezes dá vontade de partir para soluções como a do primeiro parágrafo.

Quem sabe se, em vez de usar um pé de cabra, o que seria um desatino primitivo e selvagem, não tento uma tesoura de grama ou um bisturi?

Texto de Leo Aversa n'O Globo


https://oglobo.globo.com/cultura/como-afastar-adolescente-do-celular-25498275