segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Criança e celular

Que tal permitir que os filhos usem o aparelho dos pais até ter mais maturidade?
Há poucos dias, conversei com um pequeno grupo de jovens mães que comentavam a respeito dos presentes que dariam aos filhos, com idades entre 4 e 10 anos, no Natal. A reclamação da falta de criatividade do que encontravam no mercado foi geral. Perguntei se todas dariam brinquedos, e uma disse que tinha decidido dar ao mais velho, de 10 anos, um celular. Outras duas, mães de meninas de 9 anos, e mais uma, com filho de 8, haviam decidido a mesma coisa.
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“Com internet?”, perguntei. “Claro! Dar celular sem chip 4G é igual a dar brinquedo quebrado”, respondeu uma delas, bem-humorada. Rimos juntas e ela acrescentou: “Sei que você é contra, mas me vi sem saída porque brinquedos não interessam mais a ele, que é pré-adolescente; além disso, quase todos os colegas têm o seu há anos”.

Bem, primeiramente um breve comentário sobre essa história de pré-adolescente. Por acaso você considera um adulto, de qualquer idade, um pré-velho? Certamente que não! E por quê? Porque velhice é uma etapa da vida que virá depois. Então, por que essa mania de abortar o fim da infância para introduzir uma categoria que nem existe? Fiquemos com infância e adolescência que fica melhor para eles.

Agora, ao celular com internet para crianças. Elas precisam? Não. O comentário da mãe que falou do brinquedo quebrado está absolutamente correto: celular, para crianças, é um brinquedo. E é aí que reside o problema: brinquedo serve para se distrair, entreter, sem compromisso, sem responsabilidade. A questão é que o celular não funciona apenas como brinquedo.

Ele, com acesso à internet, oferece recursos que exigem um tanto de responsabilidade para usar, o que crianças não têm. O que elas têm? Curiosidade, muita! Como o mundo adulto foi jogado sobre os ombros delas na maior sem-cerimônia, a curiosidade está, quase sempre, focada nos assuntos do mundo adulto. E quais chamam a atenção delas? Um deles é... Sexo!

Por meio das brincadeiras da infância, a criança explora o mundo para conhecê-lo. Mas, no universo infantil, não há espaço para explorar a sexualidade na forma adulta, não é verdade? Aí é que entra o celular com internet. Ele oferece essa possibilidade a qualquer um. Até algumas décadas atrás, crianças não costumavam se interessar pela vida sexual ao modo adulto porque estavam focadas em outras questões, próprias dessa etapa. Com a explosão dos usos e abusos do erotismo e da sexualidade, elas passaram a se interessar. E o que rendeu isso? Vou ilustrar a situação em que colocamos as crianças com dois casos simples.

No primeiro, um garoto de 11 anos, filho de um casal conhecido, pediu para falar comigo em particular e contou que acessara sites contendo fotografias de adultos em posições sexuais das mais esdrúxulas possíveis, e que guardara essas fotos em um pen drive. A dúvida dele, que colocou para eu resolver, foi simples: “E agora, o que eu faço com isso?”. Resolvi de maneira simples também: disse a ele que me desse o pen drive que eu guardaria para ele até que crescesse, o que ele atendeu prontamente.

No segundo caso, a mãe de uma menina de 9 anos descobriu, no celular da filha, que uma das buscas que ela havia feito era: “pessoas transando”. Se você é adulto, faça essa busca: vai se assustar com as imagens que irão surgir em sua tela ao pensar que crianças podem ver isso.

Há como mudar esse panorama para crianças? Cada família pode procurar proteger a infância dos filhos evitando, por exemplo, dar a eles um celular com internet para uso autônomo. Criança pode usar celular com internet? Pode! Com a tutela direta dos pais. E como fazer isso se o aparelho for dela? Quase impossível. Então, que tal permitir que os filhos usem o aparelho dos pais até ter um pouco mais de maturidade para lidar com isso?

Texto de Rosely Sayão, psicóloga, n'O Estado de S.Paulo de 01 de dezembro de 2019
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,crianca-e-celular,70003109138

sábado, 23 de novembro de 2019

Médico francês questiona em livro o aumento de diagnósticos de TDAH

Autor coordena o movimento na Europa que critica o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos MentaisA vitalidade da criança e do adolescente, refletida na sua maneira de estar no mundo, tem vínculos profundos e altamente instáveis com as pessoas e o meio à sua volta. 

Em seu novo livro “Todos hiperativos? A inacreditável epidemia dos transtornos de atenção”, que acaba de ser traduzido para o português, o psiquiatra e psicanalista francês Patrick Landman volta a sua atenção para um dos maiores motivos de consultas em neuropediatria e psiquiatria infantil: o transtorno do déficit de atenção (TDA) sem ou com hiperatividade (TDAH).

Landman é o coordenador na Europa do movimento “Stop DSM!”, que critica o livro de referência da psiquiatria norte-americana, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.

Muitos especialistas consideram surpreendente a epidemia de TDAH produzida nas últimas décadas, sobretudo nos Estados Unidos, e que se propagou enormemente no Brasil e em outros países do mundo.

Nos EUA, como relata Allen Frances no prefácio, a recorrência a esse diagnóstico aumentou de forma exponencial em três décadas, alcançando hoje 11% das crianças entre 4 e 17 anos, das quais mais da metade é tratada com medicamentos.

A que atribuir isso? Como entender esse fenômeno de expansão súbita de um quadro clínico?
Nos EUA, 11% das crianças entre 4 e 17 anos apresentam transtorno do déficit de atenção com hiperatividade. Do total, mais da metade é tratada com medicamentos

Landman percorre as várias facetas do problema, a começar pelos engodos que podem ocorrer no próprio estabelecimento do diagnóstico, uma vez que a quinta e mais recente versão do DSM define esse transtorno por meio de dois fatores díspares: déficit de atenção e comportamento perturbador. Assim, diz Landman, “o que parece ser prioritário para o DSM não é a atenção, e sim as perturbações do comportamento a que ela é assimilada”.
Nos anos 1980, o DSM-III produziu equívoco semelhante com a disseminação do diagnóstico de bipolaridade, ao inventar um pseudociclo do humor sem base científica devidamente estabelecida, fazendo com que o raríssimo quadro de psicose maníaco-depressiva, pertencente à psiquiatria clássica, se banalizasse a ponto de todas as pessoas, sem exceção, poderem ser consideradas bipolares.

Não por acaso, o autodiagnóstico buscado hoje com frequência cada vez maior no Dr. Google tem sido renovada fonte de novos problemas.

Patrick Landman chama igualmente a atenção para os erros inerentes à crença na etiologia biológica do TDAH. Já foram propostas várias hipóteses para explicar o que causa esse transtorno, mas até o momento nenhuma delas obteve comprovação científica. Por exemplo, a ideia de que ele é causado por uma anomalia cerebral não dispõe de embasamento teórico.

Como sublinha Landman, “o TDAH participa dessa tendência reducionista, já que, desde o início e sem nenhuma evidência, seus defensores consideraram que as crianças hiperativas apresentavam uma lesão cerebral qualificada de mínima. Desde então, essa tese se tornou um credo e se sustenta em correlações”.

Sem deixar de reconhecer as dificuldades de tratamento que muitos casos apresentam na clínica com crianças, Landman lastima que os “defensores” do TDAH não considerem os fatores psíquicos e sociais para a avaliação do quadro de seus pacientes. Desconhecer os fatores subjetivos tem sido a marca da medicina “baseada em evidências”, mas é fundamental insistir junto aos médicos e psiquiatras que as desordens mentais e comportamentais, na grande maioria dos casos, não se devem exclusivamente a distúrbios orgânicos.

Após fazer um levantamento minucioso e detalhado das diversas pesquisas que têm sido feitas sobre esse problema, Landman conclui que, para a psicanálise, o TDAH é um sintoma e não uma doença, porque o contexto familiar e social em que uma criança ou um adolescente apresenta sintomas de hiperatividade e déficit de atenção pode ser bastante significativo e revelar um quadro reativo a fatores externos, e não a configuração de uma patologia individual.

Como o psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira, professor da Escola de Medicina da Unicamp, tem enfatizado em seus trabalhos, o sujeito é o cerne de toda psicopatologia. As manifestações sintomáticas de uma criança não podem ser abordadas de modo isolado, como se ela fosse um organismo sem subjetividade. Em vez disso, a vitalidade da criança e do adolescente, refletida na sua maneira de estar no mundo, tem vínculos profundos e altamente instáveis com as pessoas e o meio à sua volta. Levar em conta os elementos que circundam a criança em cada momento de seu desenvolvimento é algo de que a psiquiatria não deve continuar a abrir mão.

O livro de Patrick Landman, portanto, traz em seu cerne uma denúncia do uso sistemático e muitas vezes continuado – leia-se, ininterrupto – que vem sendo feito da substância metilfenidato, presente em medicamentos como Ritalina, no tratamento de crianças, adolescentes e, agora também, de adultos diagnosticados com TDAH.

Não por acaso, a ênfase na estrita causalidade orgânica favorece a crença no tratamento psicofarmacológico e no uso abusivo do metilfenidato, sabendo-se hoje que o papel desempenhado pelos laboratórios farmacêuticos na disseminação dessa crença não é pequeno. Eles financiam estudos que acabam propagando avaliações tendenciosas, ou seja, favorecem a seleção dos resultados obtidos e dificultam a publicação daqueles considerados negativos.

A disseminação dos poderes mágicos atribuídos aos medicamentos junto à população é grande e os efeitos do contágio e da sugestão desses poderes, bastante conhecidos pela psicanálise, têm se mostrado cada vez mais hegemônicos, sobretudo nos Estados Unidos, único país do mundo em que os remédios têm espaço para propaganda na televisão. Nesses termos, não é exagero concluir, como faz Landman, que na psiquiatria orientada pelo DSM inventam-se doenças para, em seguida, aparecerem fórmulas medicamentosas supostamente aptas a curá-las.

Texto Marco Antonio Coutinho Jorge, psiquiatra, psicanalista, professor associado do Instituto de Psicologia da UERJ e autor dos livros “Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan" na Folha de São Paulo de 23/11/2019
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/11/medico-frances-questiona-em-livro-o-aumento-de-diagnosticos-de-tdah.shtml

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

7 truques de restaurantes para enrolar o cliente

Está tudo dentro da lei e da normalidade democrática. Mas que dá uma raivinha, dá.


Sugestão do garçom

Não me refiro aos pratos do dia, anunciados no cardápio ou em alguma tabuleta. Esses aí fazem parte da programação da operação do restaurante, que busca ordenar e simplificar os processos.
O problema é quando o cliente pede um conselho ao garçom, como se o funcionário do lugar fosse seu amigo confidente. Carne ou peixe? Lasanha ou nhoque? O que o senhor me sugere? A resposta sempre será: “O [prato sugerido] está fantástico hoje”. O que significa: “O [prato sugerido] encalhou na cozinha e pode não estão tããããão fresco assim”.

Louça grande demais
Expediente de restaurantes por quilo. Um prataço do tamanho de um campo de futebol sempre vai parecer meio vazio. E aí você vai pegando comida até ocupar os espaços em branco. No final, a dolorosa surpreende.

Louça pequena demais

Expediente do café da manhã em hotéis, onde o cliente se serve à vontade no bufê. Pratinho para a comida, copinho para o suco. A pessoa acaba comendo e bebendo menos do que se a louça fosse de tamanho normal.

Pão de queijo da churrascaria rodízio
O cliente é acomodado à mesa. Os garçons com espetos estão ao seu redor, mas não param por ali. Antes deles, chegam polenta, batata, pastéis, coxinhas, bolinhos de queijo, croquetes, pão, vinagrete, farofa –e, claro, um pão de queijo delicioso, tão bom que o indivíduo come uma dúzia.
Quando a carne começa a ser servida, metade da fome já se foi.

A picanha fantasma
Ainda na churrascaria rodízio, a picanha só faz sua breve aparição depois da linguiça, do coraçãozinho, da sobrecoxa, da costelinha de porco, do cupim, da alcatra, da fraldinha e da maminha. O abnegado que guarda sua fome para a picanha leva uma canseira danada dos garçons.
Obs.: O blogueiro não escreveu sobre a picanha com alho, que é coxão duro, disfarçado de picanha (o alho em excesso disfarça o sabor)

Chute nas bebidas
É a prática em qualquer lugar: a margem na bebida é o que dá lucro. Os maiores vilões não são o vinho e a cerveja –por serem caros, é comum que o cliente cheque os preços antes de pedir. O ralo de dinheiro está na água, nos sucos, no refrigerante e no cafezinho. Ninguém olha o valor no cardápio antes de pedir o cafezinho.

Porções gigantes e caras
Essa é uma praga típica do Rio de Janeiro. Muitos restaurantes tradicionais daqui vendem apenas porções para duas pessoas, que servem três e custam o valor de uma porção para quatro. Não fazem meia-porção, o que dificulta o pedido do cliente solo ou de grupos de pessoas que não querem rachar os mesmos pratos. A mesa acaba por pedir comida demais, pagar uma dinheirama e entregar o marmitex com as sobras para um dos sem-teto que fazem plantão na porta do restaurante.

Texto de Marcos Nogueira do blog Cozinha Bruta https://cozinhabruta.blogfolha.uol.com.br/2019/10/29/7-truques-de-restaurantes-para-enrolar-o-cliente/

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

POSITIVISMO INSPIROU O LEMA DA NOSSA BANDEIRA

Filosofia que inspirou República tem seguidores 130 anos após Proclamação
Única em atividade no mundo, Capela Positivista de Porto Alegre abre todos os domingos para visitantes e frequentadores

ENTENDA O POSITIVISMO
O que é 

Doutrina filosófica que surgiu na França no século 19 e defendia o método científico, a popularização da educação e relações éticas e igualitárias para atingir a “ordem e progresso”. O francês Augusto Comte (1798-1857) é sua principal figura. O positivismo rejeitava superstições, mas Comte entendia que a religião era uma ferramenta eficaz para provocar as mudanças que desejava

Relação com a República 
Os positivistas brasileiros eram republicanos e rejeitavam o princípio da Monarquia, segundo a qual o rei é escolhido por Deus. A doutrina está explícita na bandeira nacional, elaborada após a Proclamação

Personalidades 

Foram positivistas Benjamin Constant (1836-1891) e o marechal Cândido Rondon (1865-1958), por exemplo. Entre seus simpatizantes estavam três presidentes: marechal Deodoro (1827-1892), marechal Floriano (1839-1895) e Getúlio Vargas (1882-1954)

A filosofia que inspirou a Proclamação da República em 1889, o positivismo, tem seguidores assíduos no único templo da Religião da Humanidade ativo no mundo.
A Capela Positivista de Porto Alegre abre suas portas todos os domingos pela manhã, 130 anos após o início do regime republicano no Brasil, para receber frequentadores e curiosos.
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O terreno do local foi adquirido por positivistas gaúchos em 1911, durante a chamada República Velha, e a pedra fundamental foi inaugurada no ano seguinte.

O templo foi inaugurado em 1928, seguindo o projeto elaborado pelo francês Augusto Comte (1798-1857), principal idealizador da doutrina que tem a ciência como dogma. Há outra construção do tipo, no Rio de Janeiro, que está fechada.

“Bom dia, seja bem-vinda. Estamos iniciando a visita guiada. Se quiser participar, fique à vontade”, diz o guardião do templo, Érlon Jacques, 47. “Eu quero”, responde animada uma mulher ao entrar pela primeira vez no local, na avenida João Pessoa, próximo ao Parque da Redenção.

Assim como os outros 15 visitantes que acompanharam o sermão do mestre, ela atravessou o portão de ferro com uma inscrição no alto que atrai parte dos pedestres que param para observar ou tirar fotos. Ali é possível ler: "Os vivos são sempre e cada vez mais necessariamente governados pelos mortos".

“Não tem nenhuma conotação mística. É o reconhecimento e reverência à ancestralidade. A Religião da Humanidade é o que temos de melhor nas ciências e nas artes”, explica Jacques ao grupo ainda reunido na escada que conduz à construção branca em estilo neoclássico.

Cada um dos 13 degraus está marcado com palavras que indicam a organização social na visão de Comte, que inicia com o “proletariado” e culmina na “humanidade”, passando, entre outros, por “fraternidade” e “casamento”.

Sobre este último, Jacques afirma: “Comte diz que o casamento tem que ser livre e de espontânea vontade das partes. No passado, [os matrimônios] eram por conveniência. É preciso respeitar as escolhas”, comenta, usando as uniões homoafetivas como exemplo. “Não pode haver preconceito”. Principalmente os preconceitos raciais, continua ele: “Somente abolicionistas podiam ingressar na Igreja da Humanidade, não podiam ter escravos, precisavam ser éticos e humanistas”.

A ideia de igualdade é também o que justifica a luta dos positivistas brasileiros pelo fim da Monarquia e a instauração de uma República, segundo Jacques.

“A Monarquia subentende que o líder é referendado por um ser divino, é um sistema político baseado em uma fantasia. Não aceitamos que um ser humano pode ser considerado melhor do que outro apenas por ser de uma determinada família. Para nós, isso não existe”, diz.

O grupo chega ao topo da escada. Antes de entrarem no templo para o “culto”, todos observam as palavras na fachada que lembram o lema da bandeira do Brasil, não por acaso elaborado por positivistas: “O amor por princípio. A ordem por base. O progresso por fim”.

Mas e por que o lema da bandeira acabou deixando de fora o “amor”? “O amor não é feito para governar. Alguém duvida do amor de Hitler pela Alemanha? Olhem a catástrofe que ocorreu”, cita Jacques.

Quando a República foi proclamada, a primeira bandeira, provisória, era semelhante à dos Estados Unidos, com listras horizontais, mas com as cores verde e amarela.

Insatisfeitos com a “cópia”, os positivistas elaboraram uma nova bandeira, apresentada quatro dias depois. “O positivismo não é revolucionário, não tem a ideia de ruptura, de corte, mas de mudar aos poucos."

Por isso a nova bandeira conserva o molde anterior, mas substitui o brasão de armas do Império pelo céu no momento da proclamação. O astrônomo positivista Manuel Pereira Reis (1837-1922) foi o responsável por registrar o mapa estelar.

Dentro da capela, ao assinar o livro de visitas, o grupo descobriu que o mês de Shakespeare havia acabado e corria a primeira semana do mês de Descartes do ano de 231. O positivismo tem calendário próprio, com 13 meses, e o ano que inicia a contagem é 1789 —quando ocorreu a Queda da Bastilha, durante a Revolução Francesa.

“O mês de Shakespeare é lindo, dedicado a escritores e músicos. No mês de Descartes, vamos estudar os principais filósofos da humanidade. Hobbes, Locke, Kant...”, diz Jacques. “E o Nietzsche?”, pergunta um frequentador. “Nietzsche não, porque ele é posterior a Comte”, responde o mestre.

Em anos bissextos, o dia “extra” é em homenagem a santa Heloísa, uma erudita francesa de origem nobre. “Só no ano bissexto?”, pergunta o mesmo frequentador. “É para marcar a importância”, responde mais uma vez Jacques.

A figura feminina é a principal dentro do templo, ao centro na sala. No lugar de um deus tem-se uma deusa, a humanidade. De cada lado desta imagem central estão os bustos das figuras ilustres que nomeiam os meses do calendário, que variam de Homero a Gutenberg. 
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“Trago meus alunos aqui desde a década de 1980, faço questão”, conta Jovelina Drun da Costa, 71, professora de sociologia e filosofia de uma escola pública na cidade vizinha de Viamão (RS).

Naquele domingo, ela ouviu o sermão sobre o positivista Benjamin Constant, um dos principais articuladores da República que completa 130 anos. Outros nomes importantes influenciados pela doutrina são os gaúchos Júlio de Castilhos e Getúlio Vargas.

“Benjamin Constant era um pacifista. Esse sentimento se consolidou após a Guerra do Paraguai, quando desenvolveu sérias críticas ao duque de Caxias pelos exageros cometidos, foi o genocídio de toda uma população, crianças, indígenas”, afirma Jacques. Constant foi ministro da Guerra no início do governo do marechal Deodoro da Fonseca.

O sermão termina com todos fazendo o sinal que consiste em colocar a mão esquerda no peito e a palma direita na testa (amor), na cabeça (ordem) e na nuca (progresso).

O publicitário Flávio Freire, 69, conheceu por dentro o templo pela primeira vez ao lado da doutoranda em sociologia na UFRGS, Ana Cristina Cerva, 46.

“Já tinha fotografado por fora", diz ele. "Pesquisei sobre a história do local, tem muita simbologia. Mas percebi que os ideais que propunham para a sociedade se perderam, não se vê na prática."

Reportagem de Paula Sperb na Folha de São Paulo de 15/11/2019
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/filosofia-que-inspirou-republica-tem-seguidores-130-anos-apos-proclamacao.shtml

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Fim do Dpvat é avançar sinal vermelho do respeito à vida

Há uma realidade pouco conhecida por trás de um acidente de trânsito com repercussões de média ou grande intensidade que faz vítima uma pessoa de classe média ou pobre.

Além do trauma, das dores e das perdas, um caminhão de novos custos se instala rapidamente na vida desse povo que, a partir da fatalidade, vai chorar as pitangas até pela falta de lencinho descartável. E agora também acabou o Dpvat, que ajudava a pagar a conta básica.

Uma perda temporária de mobilidade ou uma deficiência permanente que se instala após um acidente automobilístico geram gastos que parecem não ter fim e que impactam o dia a dia de forma aviltante.´

Quem nunca zanzou por esse mundo dos quebrados talvez não tenha ideia de quanto custam talas, cateteres, medicamentos para dor, muletas, quites de profilaxia, curativos, equipamentos de adequação de postura para um corpo todo torto, transporte especializado, ataduras, cadeira de rodas, cuidadores para zelar minimamente de um indivíduo fragilizado.

Ah, e também gastos com fraldas, pois acidentes podem desorganizar o funcionamento das “partes”.

Nos últimos anos, o recurso emergencial de um seguro é o que tem amenizado a situação dos mais vulneráveis, pois a pressão sobre o SUS já flerta com o insuportável e obter do sistema insumos para o dia a dia enquanto ele for alterado é tarefa para os muito, muito fortes.

Levantamento do Conselho Federal de Medicina, de maio deste ano, mostra que, na última década, já foram aplicados R$ 3 bilhões com assistência a acidentados de trânsito.

A cada hora, segundo o conselho, 20 pessoas entram em um hospital público atrás de socorro depois de um choque pelas ruas das cidades brasileiras, número que só cresce. Mas dá para colocar mais pressão, segundo o governo.

Se o país optou por jogar o jogo do “cada um por si” e o pobre que se lasque na fila da assistência pública para conseguir dignidade após ter sido atropelado por um carro dirigido por um motorista que não parou para prestar socorro, é preciso estar preparado para a formação de um exército de mutilados pelo descaso.

Uma reabilitação malfeita ou a displicência com cuidados após um trauma implicam infecções, contraturas musculares, formação de dores crônicas, depressão pela falta de perspectivas.

O bom cuidado faz a recuperação ser mais rápida, a resposta do corpo ser mais efetiva e a volta à vida produtiva ser mais firme e segura.

Não que o dinheiro de uma indenização vá resolver todas as dores de uma tragédia, mas ele serve de alento para um recomeço, para a reconstrução de uma vida partida que poderá ser totalmente diferente dali em diante. Na morte, ele pode evitar, talvez, a indigência.

Para milhares de pessoas, nos últimos anos, o básico para as despesas depois de um acidente –e entenda-se o básico como aquilo que irá ofertar alguma dignidade diante uma carcaça abalada– veio após o recebimento do Dpvat, extinto em uma canetada.

Se há fraudes no sistema, não parece justo que se envergue a ponta mais frágil, quebrada, abaulada para eliminar o problema. Mais uma vez, opta-se por jogar a água do banho fora com o bebê também indo pelo ralo.

O brasileiro está empapuçado de corrupção, está sensível e intolerante a novas cobranças avacalhadas, que sempre correm o risco de cair em mãos de pilantras, mas a busca dessa clareza da coisa pública não pode vir por meio do esmagamento de pessoas e avançando o sinal vermelho do respeito a toda vida humana.

Texto de Jairo Marques, cadeirante, na Folha de São Paulo de 13/11/2019 https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2019/11/12/fim-do-dpvat-e-avancar-sinal-vermelho-do-respeito-a-vida/

DPVAT: o que é e como funciona o seguro obrigatório?

Entenda como acionar o DPVAT e confira os principais questionamentos sobre a indenização a vítimas de acidentes de trânsito

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) assinou nesta segunda-feira, 11, medida provisória que extingue o Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT), conhecido como "seguro obrigatório", usado para indenizar vítimas de acidentes de trânsito no País. Mas você sabe o que é o DPVAT e como ele funciona?
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O que é DPVAT?
Criado em 1974, o Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT), mais conhecido como "seguro obrigatório", é um seguro de caráter social que indeniza vítimas de acidentes de trânsito em todo o território brasileiro, independentemente de quem for culpado.

Como funciona o DPVAT?
A indenização é paga em casos de morte, invalidez permanente total ou parcial e para o reembolso de despesas de assistência médica e suplementares (DAMS) por danos físicos causados por acidentes com veículos automotores de via terrestre ou por suas cargas. São considerados os acidentes de trânsito que envolvem carros, motos, caminhões, caminhonetes, ônibus e tratos - veículos sujeitos ao licenciamento do Departamento Estadual de Trânsito (Detran).

O que o DPVAT não cobre?
Acidentes sem vítimas;
Danos pessoais que não sejam causados por veículos automotores de via terrestre, ou por sua carga;
Multas e fianças impostas ao condutor;
Acidentes fora do território nacional;
Acidentes com veículos estrangeiros em circulação pelo Brasil.

Quem tem o direito à indenização do DPVAT?
Quaisquer vítimas de acidente de trânsito, sejam elas motoristas, passageiros ou pedestres, podem ser contempladas com o DPVAT. Estrangeiros também podem receber o seguro. O motorista, porém, deixa de ter o direito à indenização em um acidente de trânsito caso esteja inadimplente e seja o condutor do veículo no momento do sinistro.
Nos casos de morte, os herdeiros legais da vítima recebem a indenização.

Quais são os valores das indenizações do DPVAT?
R$ 13.500 nos casos de morte;
Até R$ 13.500 nos casos de invalidez permanente, variando conforme a intensidade e a repercussão da lesão no corpo da vítima;
Até R$ 2.700 de reembolso de despesas médicas e hospitalares, considerando os valores gastos pela vítima em seu tratamento.

Quais são as categorias de veículos cobertas pelo DPVAT?
Categoria 1 - automóveis particulares;
Categoria 2 - táxis e carros de aluguel e aprendizagem;
Categoria 3 - ônibus, micro-ônibus e lotação com cobrança de frete (urbanos, interurbanos, rurais e interestaduais);
Categoria 4 - micro-ônibus com cobrança de frete, mas com lotação de até 10 passageiros, ônibus, micro-ônibus e lotações sem cobrança de frete (urbanos, interurbanos, rurais e interestaduais);
Categoria 8 - ciclomotores;
Categoria 9 - motocicletas, motonetas e similares;
Categoria 10 - caminhões, caminhonetas tipo picape de até 1.500 kg de carga, máquinas de terraplanagem e equipamentos móveis em geral (quando licenciados) e outros veículos.

Como acionar o DPVAT?
Para dar entrada no pedido de indenização, a vítima de acidente de trânsito (ou o herdeiro legal dela no caso de morte) deve se dirigir a um dos mais de 8 mil pontos de atendimento autorizados listados no site da Seguradora Líder, responsável por administrar o Seguro DPVAT em todo o País. Todo o trâmite do processo é gratuito. Não é necessário contratar despachantes ou advogados.

Para a solicitação, a vítima deve apresentar um documento de identidade e o boletim de ocorrência do acidente. Os demais documentos necessáros dependem da cobertura pleiteada e podem ser conferidos no site da seguradora.

Qual é o valor do Seguro DPVAT 2019?
Os pagamentos dos prêmios do seguro estão condicionados à categoria em que cada veículo se enquadra. Existem sete categorias, e o valor do prêmio varia entre R$ 16,21 e R$ 84,58. Veja abaixo:

Categoria 1 - automóveis particulares: R$ 16,21
Categoria 2 - táxis, carros de aluguel e aprendizagem: R$ 16,21
Categoria 3 - ônibus, micro-ônibus e lotação com cobrança de frete (urbanos, interurbanos, rurais e interestaduais): R$37,90
Categoria 4 - micro-ônibus com cobrança de frete, mas com lotação de até 10 passageiros, ônibus, micro-ônibus e lotações sem cobrança de frete (urbanos, interurbanos, rurais e interestaduais): R$ 25,08
Categoria 8 - ciclomotores: R$ 19,65
Categoria 9 - motocicletas, motonetas e similares: R$ 84,58
Categoria 10 - caminhões, caminhonetas tipo picape de até 1.500 kg de carga, máquinas de terraplanagem e equipamentos móveis em geral (quando licenciados) e outros veículos: R$ 16,77
Reboque e semirreboque: isento. O seguro deve ser pago pelo veículo tracionador.

Quando o Seguro DPVAT vai acabar?
O presidente Jair Bolsonaro assinou nesta segunda medida provisória (MP) que extingue, a partir de 1º de janeiro de 2020, o Seguro DPVAT. Pela proposta, os acidentes ocorridos até 31 de dezembro de 2019 continuam cobertos pela indenização.

Por que o Seguro DPVAT vai acabar?
De acordo com o governo, a extinção do DPVAT tem como objetivo evitar fraudes e amenizar os custos de supervisão e de regulação do seguro por parte do setor público, atendendo a uma recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU).

A Superintendência de Seguros Privados (Susep) apontou que a decisão se deu após os dados apontarem baixa eficiência do DPVAT. Apenas a fiscalização da seguradora consome em torno de 19% do orçamento para esse fim da Susep. A operação do DPVAT, no entanto, representa apenas 1,9% da receita do mercado supervisionado.

Reportagem deFelipe Cordeiro n'O Estado de S.Paulo de 12 de novembro de 2019
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,dpvat-o-que-e-e-como-funciona-o-seguro-obrigatorio,70003086272

Motociclistas respondem pela maior parte das indenizações do DPVAT

Seguro extinto é acionado anualmente por 460 mil, em média; em 250 mil casos, acidente envolve motos. Governo alega fraude, custo de regulação e serviço semelhante ao SUS, mas especialistas contestam
Nos últimos dez anos, uma média de 460 mil vítimas ou parentes de pessoas mortas em acidentes de trânsito puderam contar com o pagamento do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT) por ano. A maior parte desse total, 250 mil, foi de motociclistas que se acidentaram e ficaram inválidos, com sequelas permanentes que os impedem de trabalhar.
O benefício foi extinto na segunda-feira, 11, por uma medida provisória publicada pelo presidente Jair Bolsonaro e continua a valer apenas até 31 de dezembro. Ele consistia em um pagamento garantido a toda pessoa que se envolvesse em um acidente de trânsito dentro do território nacional causado por veículo registrado no País.

Eram três tipos de indenização: por morte (para parentes) ou por invalidez permanente (para a vítima), além de uma indenização de despesas médicas. Nos dois primeiros casos, a apólice era de R$ 13,5 mil e, no terceiro, de até R$ 2,7 mil. De 2009 a 2018, 3,27 milhões de pessoas que ficaram sem poder trabalhar depois de acidente receberam as apólices.


Além dos pagamentos de apólices, o seguro obrigatório também ajudou no financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Departamento Nacional do Trânsito (Denatran) com cerca de R$ 37 bilhões, entre os anos de 2008 e 2018, segundo dados da Seguradora Líder, que gerenciava os pagamentos. Esses custos agora serão assumidos pela União.


Pagamento ajudou vítima a pagar cadeira de rodas
Em dezembro de 2018, o promotor de vendas Jéferson Martins de Oliveira, de 23 anos, sofreu um acidente de moto que mudou sua vida. Estava voltando do trabalho, quando colidiu com um carro na rodovia MG-404, em Taiobeiras, no norte de Minas. “Tive fraturas expostas do lado esquerdo, levando à desarticulação do joelho esquerdo e do ombro. Perdi muito sangue, meu tornozelo direito desarticulou porque foi necrosando.” O pagamento o ajudou a comprar itens para a sua reabilitação, que ainda está longe do fim. “Cadeira de rodas, de banho e medicamentos.”


Os argumentos do governo federal para a extinção do DPVAT incluem fraudes detectadas no sistema, custo de regulação e serviço semelhante ao do SUS. O diretor da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Rafael Scherre, afirma que a medida supre demanda do Tribunal de Contas da União (TCU). “O número do repasse de 2019 (para o SUS) é de R$ 965 milhões e a tendência era de diminuição.” Ainda segundo ele, “o SUS não vai perder recursos”.


Considerando o novo cenário, o advogado especialista em Direito do Trânsito Maurício Januzzi afirma que, agora, se a pessoa se ferir no trânsito, terá de processar ela mesma o responsável pelo acidente. “Pode procurar a Defensoria”, observa, se não tiver um advogado.


Especialistas da área argumentam que a medida atingirá justamente a população de menor renda e, em especial, motociclistas que ficaram inválidos após um acidente.


“É um dinheiro para compensar uma família destroçada psicologicamente e financeiramente. É para pagar as necessidades básicas emergenciais quando uma pessoa deixa de produzir por estar machucada. Não é um seguro de saúde ou aposentadoria”, afirma o engenheiro e mestre em transportes pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), Sergio Ejzenberg.


“O Brasil todo é sabedor do número de fraudes no DPVAT”, afirma a presidente da Associação Nacional de Detrans, Larissa Abdalla Britto. “A AND e os Detrans alertaram isso.” Mas ela ressalta que “o DPVAT é um seguro obrigatório que atinge aquelas pessoas que não têm condições de fazer um”.


Larissa lembra ainda que o País não tem sistema integrado de coleta de dados de acidentes de trânsito. Os dados nacionais eram coletados pelos pagamentos do DPVAT. Sem ele, não haverá informações de abrangência nacional.


Reportagem de Bruno Ribeiro, Paula Felix e Renata Okumura n'O Estado de S.Paulo de 13/11/2019 https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,motociclistas-respondem-pela-maior-parte-das-indenizacoes-do-dpvat,70003087295

Fim do DPVAT é erro monumental e deixará milhares sem proteção

Este seguro é o único arrimo de mais de 300 mil pessoas anualmente vitimadas pelos acidentes de trânsito

A quem interessa acabar com o DPVAT?
O DPVAT é o seguro obrigatório de veículos automotores terrestres. Este seguro é o único arrimo de mais de 300 mil pessoas anualmente vitimadas pelos acidentes de trânsito. Na imensa maioria cidadãos abaixo da linha de pobreza, espalhados de norte a sul do País.

Sem o DPVAT essas pessoas ficarão sem proteção, justamente no momento em que mais necessitam de um suporte para enfrentar as consequências dramáticas de um acidente de trânsito. O seguro obrigatório indeniza morte, invalidez permanente total e parcial e despesas médico-hospitalares. Quer dizer, não estamos falando de uma batidinha atrás na saída de um semáforo. São acidentes de trânsito sérios, capazes de desestabilizar uma família, seja pela morte, seja pela invalidez do seu arrimo.
Acidente com caminhão na Marginal do Tietê - Ponte da Vila Maria

De acordo com as estatísticas da Seguradora Líder, que administra o Consórcio do DPVAT, 75% das indenizações são decorrentes de acidentes com motociclistas e a maioria das vítimas é de jovens pobres entre 18 e 30 anos de idade, habitantes do Nordeste.

O DPVAT é um seguro social que funciona. Indeniza 40 mil mortes e mais de 200 mil casos de invalidez permanente todos os anos. Além disso, indeniza outros mais de 200 mil casos de despesas médico-hospitalares. Menos de 20% da frota de veículos brasileira tem seguro facultativo para indenizar terceiros em caso de acidentes. Extinguir o DPVAT é deixar um número de vítimas superior ao total de mortos na guerra da Síria sem nenhuma proteção efetiva.

Como se não bastasse, 45% da receita do DPVAT, por lei, é destinada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Para quem imagina que o número é pequeno, nos últimos dez anos foram repassados R$ 37 bilhões ou, anualmente, mais ou menos 3% do orçamento total da saúde pública brasileira.

O artigo poderia se estender longamente a respeito de colocações absolutamente improcedentes do ministro da Economia, entre elas a de que o SUS teria condições de atender as vítimas porque já o faz. Isso não é verdade, até porque o SUS não indeniza morte e invalidez. Como se não bastasse, o SUS, que não tem recursos para fazer frente ao mínimo exigido dele, ainda por cima vai perder a verba destinada pelo seguro.

A Susep invoca como ponto importante para extinguir o DPVAT os altos custos para a fiscalização da Seguradora Líder. Ora, os custos de fiscalização da Susep são pagos pelas seguradoras e não por ela. Assim, esse argumento também não procede.

Finalmente, o governo não pode simplesmente tomar as reservas da Seguradora Líder da forma como pretende. Trata-se de uma seguradora privada, que não recebe nenhum aporte do governo, seja a que título for. A operação do DPVAT é uma operação de seguro privado, sem um único centavo de dinheiro público envolvido. O que o governo faz é determinar o capital segurado, por lei; precificar o seguro, por meio do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP); e, também pelo CNSP, determinar a margem de lucro da operação do seguro obrigatório, atualmente na casa de 2%. Entre secos e molhados, esta medida provisória é um erro monumental.

Texto de Antônio Penteado Mendonça n'O Estado de São Paulo de 12 de novembro de 2019
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,analise-fim-do-dpvt-e-erro-monumental-e-deixara-milhares-sem-protecao,70003087307

sábado, 2 de novembro de 2019

Vivandeiras

Ao invocar a possibilidade de edição de um “novo AI-5”, Eduardo Bolsonaro externou o que pensa o grupo que ora está no poder, a começar pelo sei pai, o presidente Jair Bolsonaro

O arroubo do deputado Eduardo Bolsonaro, que invocou a possibilidade de edição de um “novo AI-5” para enfrentar opositores, não foi um exagero retórico. Ele externou o que pensa o grupo que ora está no poder, a começar pelo pai, o presidente Jair Bolsonaro, que passou toda a sua vida como político a lamentar o fim da ditadura.

O objetivo é claro: dar vida ao que deveria estar morto e enterrado. O bolsonarismo desde sempre pretende acostumar os ouvidos da sociedade a ideias autoritárias como solução para os problemas nacionais. O método é escorar-se na liberdade de expressão e na imunidade parlamentar, dois dos pilares da democracia liberal, para acalentar a possibilidade de instalação de um regime de exceção, em que essas mesmas liberdades, entre outras tantas, são sumariamente cassadas.

De certa forma, a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, mesmo depois de décadas defendendo reiterada e inequivocamente o regime militar, a tortura, o banimento (e até o fuzilamento) de opositores e o silenciamento da imprensa, é um preocupante indicativo de que parte da sociedade já se deixou seduzir pelo discurso antidemocrático.

Para a parcela mais radical dos eleitores de Bolsonaro, que o trata como “mito” e o segue fanaticamente, o pacto pela transição para a democracia foi imperdoável traição aos ideais da ditadura militar. Graças ao sucesso eleitoral de Bolsonaro, essas vivandeiras não se sentem mais constrangidas em demandar abertamente o fechamento do Congresso, sob o argumento de que se trata de um valhacouto de corruptos que tramam contra o Brasil; exigir a interdição do Supremo Tribunal Federal, visto como um antro de advogados que defendem petistas e minorias em geral; e torcer pela asfixia da imprensa livre, considerada veículo de esquerdismo e imoralidade. Em resumo, nutrem a esperança delirante de que o presidente Bolsonaro se aventure num golpe de Estado e consequentemente estabeleça uma ditadura.

Nesse sentido, a ordem do presidente Bolsonaro para que o filho pedisse desculpas por suas declarações não tem valor nenhum. É o presidente, afinal, quem desde sempre incita essa retórica autoritária, elogiando ditadores, fazendo apologia de torturadores e ameaçando sistematicamente a imprensa. Os filhos, entre eles Eduardo, só agem – e só existem politicamente – em nome do pai.

Não se trata de relativizar a responsabilidade do deputado Eduardo Bolsonaro por seu discurso antidemocrático – que ademais, enquanto repugna o País, serve também para desviar a atenção da ainda nebulosa menção ao nome do presidente no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco. Trata-se, sim, de perceber que o problema vai muito além do palavrório autoritário de um político medíocre.

Há hoje no País uma atmosfera cada vez mais pesada, fruto do extremismo, à esquerda e à direita, que tenta inviabilizar a política e, consequentemente, a democracia. É contra essa ameaça, cada vez mais concreta, que as forças democráticas devem se mobilizar. Laivos golpistas não podem ser tratados como manifestações anedóticas ou inconsequentes. Devem ser denunciados de forma resoluta por todos aqueles que prezam a liberdade.

Por esse motivo, é alvissareiro que as lideranças institucionais do País tenham se manifestado tão prontamente para condenar, de forma cristalina e nos mais duros termos, a manifestação irresponsável do deputado Eduardo Bolsonaro, mostrando rejeição absoluta a qualquer possibilidade de retrocesso em nossa democracia.

Que a Câmara dos Deputados, ao lidar com o caso, não reaja com a pusilanimidade demonstrada em 1999, quando apenas advertiu o então deputado Jair Bolsonaro depois que este defendeu o fechamento do Congresso, disse que “o erro do regime militar foi torturar, e não matar” e lamentou que a ditadura não tivesse fuzilado vários políticos, a começar por Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República.

Na ocasião, exatamente como agora, Jair Bolsonaro, ante a repercussão negativa, disse que havia “exagerado”. Mas a mensagem já estava dada – e, ante a complacência dos democratas, ajudou a manter vivo o ânimo reacionário que tantos votos rendeu e, lamentavelmente, continua a render aos liberticidas.

Editorial d'O Estado de São Paulo 02/11/2019 que compartilho por concordar inteiramente
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,vivandeiras,70003073083

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A NECROPOLÍTICA, quando tudo isto começou?

O que surgiu com o aplauso à cena de ‘Tropa de elite’ transformou-se numa necropolítica

Em 2007, o filme “Tropa de elite” mostrava uma cena na qual o Capitão Nascimento, do Bope da PM do Rio, queria saber onde estava o traficante Baiano, espancava um jovem e mandava que o torturassem asfixiando-o com um saco de plástico. Esse momento foi aplaudido em muitas salas do país. Passaram-se 12 anos, Jair Bolsonaro está no Planalto, e Wilson Witzel (Harvard Fake’15) governa o Rio de Janeiro. Durante a campanha do ano passado, o capitão-candidato foi a um quartel do Bope, discursou e repetiu o grito de guerra de “Caveira!”. Eleito governador, Witzel anunciou sua plataforma para bandidos que empunhassem fuzis: “A polícia vai mirar na cabecinha e... Fogo!”

As plateias de “Tropa de elite” haviam mandado um sinal, e ele materializou-se na eleição. Tudo começou ali. O cidadão que aplaudiu a cena da tortura acreditava que aquele deveria ser o jogo jogado, reservando-se o direito de achar que só se deve torturar quem se mete com traficante ou que só se deve acertar a cabecinha do sujeito que vai para a rua com um fuzil. Passou-se um ano, não se sabe como o ex-PM Fabrício Queiroz “fazia dinheiro”, e a polícia do Rio acerta não só cabecinhas de bandidos, como também crianças. O cidadão do aplauso é capaz de fingir que não sabia que essa seria uma das consequências da sua manifestação de felicidade. Por trás de cena do Capitão Nascimento havia muito mais.Wagner Moura como capitão Nascimento em cena do filme 'Tropa de Elite' (2007)

O repórter Rafael Soares mostrou um aspecto desse desfecho. No dia 13 de novembro de 2014, um PM que servia no Bope tentou convencer o traficante Lacosta a executar um major que atrapalhava os negócios do setor:
“Manda ver onde mora e quando ele for sair da casa, forja um assalto e rasga ele”.
Depois entrou em detalhes:
“Glock com silenciador e carregador goiabada de 100 tiros pow vai brincar com ele. Esse cara tá com marra de brabo.”

Dois meses antes dessa conversa, a PM do Rio havia prendido 23 policiais acusados de extorsão. Entre eles estava o terceiro homem na hierarquia da corporação, sob cujas ordens ficavam os comandantes do Bope.

O dilema da segurança nas grandes cidades brasileiras nunca esteve num confronto simples, como o da retórica de Bolsonaro e Witzel, com o Capitão Nascimento de um lado e o traficante Baiano do outro. Nas camadas do meio estão policiais, milicianos e todas as combinações possíveis com a bandidagem. Aquilo que começou com o aplauso à cena de “Tropa de elite” seguiu seu curso e transformou-se numa necropolítica. Ela finge que combate o crime, mas contém o ingrediente que inibe esse propósito: o PM que queria “rasgar” o major negociava com o traficante Lacosta, a quem chamou de “meu rei”, porque há quem precise de bandido vivo e solto. Lacosta vai bem, obrigado. A facção à qual ele se associou foi pioneira na criação de holdings com milícias.

Não há nada de novo nessa constatação. O ex-sargento PM Ronnie Lessa, acusado de ter participado do assassinato da vereadora Marielle Franco, teve uma carreira complementar à sua atividade no Bope. Foi guarda-costas de contraventor, teria ligações com o Escritório do Crime e na casa de um de seus amigos guardava 117 fuzis desmontados. Tinha amigos na milícia de Rio das Pedras e uma boa vida, a ponto de ter comprado uma boa casa no condomínio da Barra da Tijuca onde vivia o deputado Jair Bolsonaro.

Texto de Elio Gaspari n'O Globo e na Folha de São Paulo de 09/10/2019
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2019/10/quando-foi-que-isso-tudo-comecou.shtml

domingo, 6 de outubro de 2019

Remissão da carne

Trabalho contesta recomendações de queda do consumo, em novo vaivém nutricional

Estudos recém-publicados pelo reputado Annals of Internal Medicine despertaram interesse —e, em alguns setores, comoção— ao afirmar que não há evidências científicas sólidas para sustentar a recomendação de que as pessoas comam menos carne vermelha.

Os trabalhos não chegam a dizer que inexiste correlação entre o maior consumo de carne bovina e suína e riscos sanitários como ataques cardíacos e câncer. Apenas postulam que os benefícios proporcionados pela redução, se verdadeiros, são tão pequenos que não justificam a elaboração de diretrizes individuais.

Essas conclusões não partem de Joesley e Wesley Batista, da JBS, mas de um consórcio internacional que analisou dezenas de pesquisas envolvendo 55 populações e mais de 4 milhões de pacientes.

Previsivelmente, nem todos os especialistas concordaram. A American Heart Association e a American Cancer Society criticaram a publicação. Um pesquisador graduado a qualificou como “irresponsável e antiética”. Ao menos até aqui, entretanto, ninguém apontou erros metodológicos ou estatísticos.

Provavelmente teremos de esperar a publicação de mais revisões sistemáticas, nos próximos anos, até saber para que lado penderá a balança dos especialistas.

A volatilidade das recomendações nutricionais já parte do imaginário popular. O caso mais emblemático talvez seja o do ovo, tantas vezes condenado e reabilitado.

A ciência da nutrição enfrenta desafios de extrema complexidade. O intervalo entre o consumo regular de um alimento e o eventual surgimento de efeitos sobre a saúde pode ser de décadas.

Em períodos tão dilatados, torna-se quase impossível controlar todas as variáveis, tanto de comportamento quanto de predisposições genéticas, que podem afetar os resultados. A maioria dos produtos que comemos tem impactos modestos, dificultando a detecção tanto daquilo que faz bem como daquilo que faz mal.

Ademais, a maior parte dos estudos dietéticos se baseia na memória dos participantes —usualmente falha, para dizer o mínimo.

Como se não bastasse, a nutrição é terreno no qual teses religiosas se propagam com facilidade, misturando-se com evidências científicas ou até as contaminando —o que explica a veemência de muitos dos conselheiros alimentares.

Em meio a tamanha balbúrdia, o mais sensato é manter uma dieta equilibrada temperada com pitadas generosas de ceticismo.

Editorial da Folha de São Paulo de 04/10/2019
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/10/remissao-da-carne.shtml

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Crianças psicopatas

Crianças não podem ser consideradas psicopatas
Especialistas falam em transtorno de conduta, que pode até desaparecer

Crianças e adolescentes podem ser diagnosticadas como psicopatas? Segundo especialistas ouvidos pela Folha, não. Nessa fase, o mais correto é falar em transtorno de conduta, que ainda pode ser atenuado e até desaparecer.

As características da psicopatia e do transtorno de conduta, porém, são as mesmas: insensibilidade, manipulação, ausência de remorso e empatia, sedução, comportamento violento, agressividade, tendência a responsabilizar os outros, comportamento antissocial, tendência ao tédio, mentiras e individualismo.

Os traços são constantes e perceptíveis por quem vive próximo. Hilda Morana, especialista em psicopatia e psiquiatra forense pela USP, afirma ainda que é normal que crianças com o transtorno sejam atraídas pelo perigo, ajam de maneira cruel com animais, tenham crises de birra e matem aulas.

“O que divide a normalidade de anormalidade é a frequência e intensidade dessas características. Todos temos um pouquinho delas. O problema é quando isso começa a ser o fio condutor do funcionamento da pessoa”, afirma Antonio de Pádua Serafim, coordenador do núcleo forense do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria).

Sem uma avaliação ou o relato de pessoas próximas, é difícil, senão impossível, atribuir tais características ao garoto de 12 anos que, segundo a polícia, confessou ter matado uma menina de nove anos no domingo (29). Antes do crime, o garoto afirma que estava brincando com a garota.

Também se deve levar em conta que a percepção de frieza relatada pelos policiais que participaram da investigação não necessariamente pode ser traduzida como parte da personalidade do garoto.

De acordo com Serafim, pode haver um prejuízo do entendimento da ação cometida. “Às vezes lidamos com indivíduos muito limitados do ponto de vista pedagógico e cultural para compreender a gravidade de seu comportamento. E as pessoas entendem isso como frieza”, diz.

Mas, se de fato o garoto a agrediu brutalmente, Serafim diz que a hipótese de um quadro de transtorno de conduta pode ser considerada.

O diagnóstico preciso envolve psiquiatras e psicólogos especializados na área e testes e entrevistas com pais e familiares.

Serafim lembra que a agressividade é parte da natureza humana. O sinal amarelo deve ser aceso quando ela é usada em ações violentas, como maus tratos a colegas. A escola é uma grande aliada na detecção do problema.

“Como as características do transtorno confrontam as normas, os afetados têm muita dificuldade de se adaptar às regras e vão sempre tentar manipulá-las e corrompê-las”, afirma Serafim.

Conforme os comportamentos fora do padrão são percebidos, os familiares devem procurar psicólogos e psiquiatras especializados para conseguir um diagnóstico correto, tratamento e orientação sobre como lidar com o jovem.

Morana afirma que castigos não têm efeito sobre quem tem o transtorno. Medicações que inibem a excitabilidade mas não curam o problema podem ser indicadas.

Os traços psicopáticos estão presentes entre 1% e 3% da população.
Em adultos, estudos têm apontado alterações cerebrais anatômicas em pessoas diagnosticadas como psicopatas.

Uma delas é a baixa ativação das amígdalas, região do cérebro associada com experiências de medo e memória afetiva.

A outra é um lobo frontal reduzido, o que pode estar associado a comportamentos impulsivos e irresponsabilidade.

Graças à maturação cerebral, um jovem com transtorno de conduta não necessariamente se tornará um psicopata no futuro.

Reportagem de Phillipe Watanabe na Folha de São Paulo de 03/10/2019
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/10/criancas-nao-podem-ser-consideradas-psicopatas.shtml


PARA VIZINHOS GAROTO TINHA COMPORTAMENTO EXPLOSIVO


Quem dividia muro com o garoto era a estudante Yasmim Carvalho, 14. Ela conta que ele não brincava muito com os vizinhos, porque das vezes em que ficou na rua com os outros, foi agressivo.

“Ele se irritava fácil, explodia, sabe? Então a gente não era muito próximo.” Mas ela ”jamais imaginaria” que ele pudesse fazer algo do tipo.

“Como um menino de 12 anos pode matar uma de nove?”, se pergunta Yasmin e outros vizinhos, céticos sobre a capacidade do garoto de executar uma ação tão brutal.

O barbeiro Rafael Mota, 29, organizador da festa beneficente, afirma que o garoto “era revoltado”. Certa vez, teria partido para cima de outra menina com uma caneta, na tentativa de furar-lhe o olho. Mas não acertou, segundo seu relato. Também era arredio na escola e chegou a fazer ameaças de morte à “tia da perua”.

Os moradores especulam que o garoto talvez não tenha agido sozinho. Ele não teria a força ou a maldade para matar daquele jeito, deduzem, mesmo lembrando da agressividade demonstrada com os colegas.

Mota aposta em ritual macabro, bruxaria, pela forma como a menina foi encontrada. A imagem do corpo ferido e amarrado circula pelo WhatsApp dos moradores.

Ela não chegou a ser suspensa pela corda, ou seja, seus pés encostavam no chão. Raíssa vestia um conjuntinho rosa e estava descalça.

“Tiraram o olho. Deformaram só o rosto. Não tem outra explicação”, diz Mota. “Alguém agiu de má-fé e usou ele por saber desse comportamento”, supõe o barbeiro.

A polícia ainda não sabe o que motivou o crime e procura descobrir se há outros envolvidos.

O garoto chegou a citar três versões em seus depoimentos. Na primeira, disse que apenas havia encontrado o corpo. Em outra, que um homem de bicicleta teria matado a menina. Depois, confessou que havia cometido o crime, sozinho.

Reportagem de Thaiza Pauluze na Folha de São Paulo de 03/09/2019 
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/10/para-vizinhos-raissa-era-doce-e-arisca-garoto-tinha-comportamento-explosivo.shtml

domingo, 15 de setembro de 2019

GULOSEIMAS E ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL

É errado recompensar a criança com guloseimas
Estudo mostra que é possível treinar o cérebro para desejar comidas saudáveis

O condicionamento da mente, para bem ou mal, começa na infância e pode ser reprogramado na vida adulta

Preferir batatas fritas a brócolis, por exemplo, é um comportamento possível de se "desaprender", revela estudo publicado em 1 de setembro, no jornal online Nutrition & Diabetes, da Nature. Cientistas descobriram empiricamente que, assim como as pessoas são condicionadas a desejar guloseimas, também podem aprender a gostar de alimentos que fazem bem para o corpo.
O hábito de comer alimentos saudáveis "ensina" o cérebro a desejá-los

Para chegar a essa conclusão, a pesquisa acompanhou 13 pessoas obesas ou com sobrepeso divididas em dois grupos: metade delas não mudou hábitos alimentares, enquanto o restante cortou de 500 a mil calorias e adotou uma dieta balanceada, rica em fibras e proteínas, além de participar de sessões com um grupo de apoio.

Antes de começar o experimento, todas elas foram submetidas a uma ressonância magnética enquanto observavam imagens de comidas calóricas, gordurosas e açucaradas, para mapear a resposta cerebral a esse estímulo. O centro de recompensas do órgão foi a delírio e registrou alta atividade.

Mas o panorama mudou seis meses depois. O grupo da dieta não só perdeu cerca de 6 kg, três vezes mais do que os outros participantes, como também apresentou mais atividade cerebral ligada a prazer quando exposto a imagens de alimentos saudáveis do que às de junk food.

"O estudo só comprova com exame de imagem aquilo que intuitivamente e na prática as pessoas percebem: que, se você consegue fazer a dieta por um tempo, isso acaba se tornando hábito. Você vai se condicionando e, no final das contas, tem prazer e uma vida saudável", explica Daniel de Barros, psiquiatra do Hospital das Clínicas, em entrevista ao programa Rota Saudável, da Rádio Estadão.

Segundo Barros, o condicionamento pode começar na infância, ao recompensar a criança com guloseimas. "Você tá mostrando que quando ela faz algo bom, o prêmio é uma comida ruim. Não estou falando para proibir guloseimas, mas para não associá-las ao prêmio", acredita.

Reportagem d'O Estado de São Paulo de 14/09/2014
https://emais.estadao.com.br/noticias/bem-estar,estudo-mostra-que-e-possivel-treinar-o-cerebro-para-desejar-comidas-saudaveis,1559346