Por mais controvérsias que existam sobre métodos de ensino, um conjunto de ideias virou praticamente consenso entre educadores nas últimas décadas.
Algumas delas: o aluno deve gostar do que aprende; decorar informações é negativo; e desenvolver competências como pensamento crítico, mais do que ensinar o conteúdo curricular, é o verdadeiro papel da escola do século 21.
Para o matemático Nuno Crato, 65, são erros de uma "pedagogia romântica". Ministro da Educação de Portugal de 2011 a 2015, ele comandou uma comandou uma reforma no sistema educacional do país que recorreu a uma receita clássica.
Priorizou português e matemática, eliminou disciplinas não tradicionais, como estudo acompanhado e projetos, e aumentou o rigor na seleção de professores. Tudo isso em meio a uma crise econômica que reduziu salários do funcionalismo e a críticas de sindicatos e pedagogos.
Após sua saída do ministério, os resultados do Pisa, exame internacional de educação, fizeram o mundo voltar os olhos para Portugal.
Na prova de 2015, o país superou a média da OCDE, organização que reúne o mundo desenvolvido, ultrapassando Estados Unidos e Espanha, por exemplo. Junto a Dinamarca, Suécia e à minúscula Malta, foi a única nação europeia a melhorar em todas as áreas avaliadas.
Hoje, no ranking do exame, Portugal ocupa o 18º lugar em ciências, o 15º em leitura e o 21º em matemática -três anos antes, estava em 29º, 22º e 28º, respectivamente. As colocações do Brasil são 49ª, 45ª e 53ª.
Folha - O que explica o avanço dos alunos portugueses?
Nuno Crato - Fizemos coisas simples. Demos prioridade, com mais tempo de aula, às disciplinas fundamentais –primeiro português e matemática e, depois, história, geografia e ciências. Elas são as estruturantes, permitem ao aluno progredir nas outras. Se ele tiver dificuldade de leitura, vai ser muito difícil estudar história. Se tiver conhecimento muito fraco de história, será difícil estudar política, sociologia, história da arte etc. Portanto, no conhecimento dos alunos há um conjunto de prioridades.
Nuno Crato - Fizemos coisas simples. Demos prioridade, com mais tempo de aula, às disciplinas fundamentais –primeiro português e matemática e, depois, história, geografia e ciências. Elas são as estruturantes, permitem ao aluno progredir nas outras. Se ele tiver dificuldade de leitura, vai ser muito difícil estudar história. Se tiver conhecimento muito fraco de história, será difícil estudar política, sociologia, história da arte etc. Portanto, no conhecimento dos alunos há um conjunto de prioridades.
E toda a gente sabe. Toda a gente sabe que português e matemática vêm em primeiro, que os alunos dos primeiros anos devem se concentrar em ler bem, escrever bem, falar bem e conhecer as regras fundamentais da matemática, para poder progredir nas ciências, literatura, artes, geografia etc. E muitas vezes isso, que parece o óbvio, que os estudos e a experiência mostram, não é feito. Demos mais tempo a essas duas áreas e depois a ciência, história e geografia.
Também criamos programas estruturados com metas que indicavam o que o aluno deveria dominar a cada ano de escolaridade. Isso ajudou professores, pais e autores de manuais escolares a ter um objetivo comum. A avaliação, junto com a divulgação dos resultados, foi fundamental. Investimos ainda no apoio aos alunos com mais dificuldades, com mais créditos (horários de professores) e assim melhoramos tanto os do topo como os de baixo da tabela.
Por que a ênfase em português e matemática?
A verdadeira pedagogia moderna, baseada nas ciências cognitivas do século 21, mostra que não basta saber ler. Os jovens devem ter fluência na leitura e nas operações matemáticas. Isso lhes permite depois libertar a mente para atividades de ordem cognitiva superior. Se o jovem estiver a soletrar enquanto lê, terá dificuldade de entender o conteúdo do texto.
A psicopedagogia do século 21 descobriu que há um conjunto de automatismos que ajuda a compreensão. A ideia é que as tarefas cognitivas de ordem superior –reflexão, crítica, criatividade– são baseadas em processos da ordem inferior. E o grande erro da pedagogia romântica é pensar que se pode chegar aos processos cognitivos superiores esquecendo-se dos inferiores.
Como foi enfrentar a resistência a essas medidas?
Os professores portugueses reagiram muito bem tanto a essas políticas como a outros dois fatos. Em 2011, Portugal teve que pedir ajuda externa. E, entre uma série de cortes, os salários de todos os funcionários públicos foram temporariamente reduzidos. Para diminuir o impacto, reduzimos o número de professores em funções de apoio [fora da sala de aula]. Em 2011, a escolaridade obrigatória era de nove anos. Desde 2012, é de 12 anos [no Brasil, desde o ano passado é de 14].
Um gargalo na educação brasileira é o ensino médio. E em Portugal?
Passava-se o mesmo. O aluno completava o básico e depois com muita dificuldade o secundário. Isso só pode ser ultrapassado com uma melhor preparação para o ensino médio. Não é simplificar, mas trabalhar mais. Uma receita simples. É importante também haver uma diversidade de caminhos.
O sr. é um crítico do chamado "eduquês". Quais são os maiores mitos da educação?
Há muitos. Um é que os alunos só devem aprender o que gostam. O problema é que eles só podem saber o que gostam depois de aprender. Portanto, além de motivar os alunos, é preciso ter uma pressão sobre eles para lhes transmitir conhecimentos e habilidades fundamentais.
Outro mito é que avaliação faz mal, cria estresse, e os jovens ficam traumatizados. Mas avaliação não é um obstáculo, é um incentivo. Todos precisamos. Tudo isso são mitos muito antigos.
O que se chama de pedagogia moderna no fundo são ideias muito velhas, de mais de um século, muitas sem fundamento. Exemplo é a noção de que a exigência prejudica os pobres. Não, ela é amiga deles, porque os mais favorecidos podem ir a escolas privadas, podem ter apoio especial. Os mais desfavorecidos, não. Ou a escola pública lhes dá o conhecimento e as capacidades de que precisam, ou terão mais dificuldade no futuro.
E as críticas aos métodos de ensino que fazem o aluno memorizar o conteúdo?
Outro mito é que memorizar faz mal. Pelo contrário. Memorizar ajuda a desenvolver o cérebro e preparar para atividades de ordem superior. Claro que não queremos alunos que saibam de cor as coisas e não saibam aplicá-las. Mas a memorização também é necessária, pois, se não se sabe nada, não se pode aplicar.
A ideia de que o aluno pode ser crítico sem saber também é outra totalmente falsa. Como se pode fazer formação crítica sem se dominar o conteúdo? Como o aluno pode ter formação crítica sobre economia de mercado se ele não souber o que é a economia de mercado?
Recentemente, Andreas Schleicher, o responsável pela educação na OCDE, disse que os alunos portugueses vão bem em tarefas que exigem uma reprodução do que é ensinado na escola, mas não são tão bons na aplicação criativa dos conteúdos. Nesse sentido, diz, as escolas do país "ainda não fizeram a transição do século 20 para o 21." Concorda?
Concordo, mas com reticências. Sim, é importante que os alunos consigam reproduzir os conteúdos ensinados na escola e ir além da sua aplicação mecânica. Mas, neste último Pisa, os portugueses melhoraram nos dois aspectos, nos conhecimentos e na aplicação. E não se pode cair no erro de querer uma aplicação criativa de conhecimentos se os conhecimentos não existirem.
Mais uma vez: as capacidades cognitivas de ordem superior, tais como a resolução criativa de problemas, desenvolvem-se com base nas capacidades cognitivas básicas, tais como o domínio da leitura e das operações matemáticas. Não se pode trocar a ordem das coisas e saltar etapas. É impossível aplicar criativamente conceitos se não se conhecem esses conceitos.
No Brasil, 20% dos alunos de pedagogia têm desempenho muito baixo na escola. Como melhorar a formação de professores?
Em Portugal, nós aumentamos a exigência para a profissão. Para entrar na universidade em cursos da área, exigimos uma nota mínima em português e matemática. Outra, que infelizmente foi retirada, é uma prova para entrar na carreira. [As duas medidas foram propostas também no Brasil, pelo então ministro Fernando Haddad, em 2009. A prova nacional não foi levada adiante, e a nota mínima virou lei em 2013, mas nunca foi regulamentada].
Além disso, as universidades também aumentaram a carga horária para o conhecimento das matérias que serão lecionadas. Havia uma tendência grande de ensinar muito sociologia, filosofia, e pouco sobre as matérias que serão ensinadas.
Algumas escolas brasileiras vêm adotando um ensino por projetos que reúnem várias disciplinas. O que acha?
Projetos podem e devem ser feitos. Podem e devem ser multidisciplinares. Mas isso é muito negativo se destrói as disciplinas, porque elas têm uma estrutura que os jovens precisam conhecer, e não só por meio de projetos dispersos.
A história, por exemplo, tem uma ideia de continuidade que deve ser apresentada de maneira sistemática. Se o jovem faz uma vez um projeto sobre a Grécia Antiga, outro sobre os índios brasileiros, nunca terá um conhecimento conjunto da história. Projetos são auxiliares do ensino, não podem ser sobrevalorizados.
Por que os países asiáticos, como Cingapura, dominam hoje os rankings educacionais?
Porque fazem o básico. Dão mais importância à matemática e à língua pátria, têm as disciplinas bem organizadas e professores exigentes, que trabalham na sala de aula e dão pouca atenção à fantasia. E há alguns países ocidentais que tiveram bastante sucesso e agora estão a andar para trás porque começaram a esquecer as coisas básicas e sucumbir a modas educativas.
Por exemplo?
Começaram a pensar que tudo podia ser organizado por projetos, e não pode. A Finlândia baixou os resultados. Certamente contribuiu o fato de os finlandeses terem mudado um pouco a orientação do sistema educativo e sucumbido a modas educativas. O Canadá também é um caso claro de país que adotou exageradamente essas modas e regrediu [os dois países estão entre os melhores fora da Ásia, mas pioraram na última década].
Há uma ideia corrente de que se investir muito no conteúdo não vai formar um cidadão.
É um erro completo. Não tem sentido formar cidadãos ignorantes. Quanto mais conhecedor ele for, mais crítico, ativo, criativo e solidário será. Claro que estamos no século 21 e, portanto, temos uma sociedade em que os jovens emigram, aprendem línguas estrangeiras, gostam de viajar, de mudar de emprego. É um mundo diferente. Mas não significa que o conteúdo deixa de ser importante.
Reportagem de Angela Pinho na Folha de São Paulo de 20/04/2017
http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/04/1875676-e-preciso-abandonar-modismos-educativos-diz-ex-ministro-portugues.shtml
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