quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

GENTE RICA É OUTRA COISA, gente rica não cumpre cadeia?

Publico abaixo três matérias que li na Folha de São de São de 22/02/2018

Tecnicismo que tira ricos da cadeia não vale para os pobres
(1)

Crimes de colarinho-branco devem sim ser punidos com cadeia
Nem Hércules daria conta de carregar a culpa cabível a Sérgio Cabral pelo que ocorre no Rio.
Pessoas muitas estão perdendo a vida em decorrência do que ele fez no palácio. A caneta é mais perigosa do que a metralhadora. Imaginar que ele "não tinha a intenção de matar" é se enganar: quem desvia centenas de milhões tem noção de onde a corda estoura. O governador sabia a desgraça que construía.
As algemas na transferência para Curitiba foram um erro. Mas quem põe demasiado foco nisso perde a noção de peso relativo das coisas.
Cabral é exemplo claro de que crimes de colarinho-branco devem ser punidos com cadeia, ao contrário do que muita gente defende. Não há outro lugar onde seria justo ele estar.
Pule-se daí para o caso de Wesley Batista, libertado nesta quarta (21). Criminoso confesso, foi solto sob o argumento de que a prisão preventiva não fazia mais sentido. Aguardará fora das grades seu julgamento.
Wesley, como tantos outros corruptos e corruptores, está longe do alcance efetivo de qualquer punição que não seja a cadeia. Nenhuma condenação financeira lhe fará cócegas.
Ele escapou, por ora, graças ao trabalho de dois dos advogados mais caros da praça —nas palavras de um deles, foi uma "decisão técnica".
Advogados são o lado ganhador da Lava Jato. Dinheiro fruto de corrupção acaba no bolso de defensores milionários, adoentados por um novo-riquismo que os faz esbanjar vinhos de R$ 9.000 e promover festas em Portugal dizendo que o Brasil é um país "esquisito".
É essa a força motora que tira os ricos da cadeia. O "tecnicismo" que beneficiou Wesley não chega ao outro lado da pirâmide, onde centenas de milhares vivem situação parecida. Se o problema é muita gente para pouco presídio, seria o caso de fazer uma libertação em massa na ordem inversa ao tamanho do dano causado à sociedade. Cabral e Wesley decerto não estariam no começo da fila.

Decisão do STF não exime pena de detentas, apenas faz cumprir a lei (2)

É dever do Estado cuidar dessas mulheres e da infância dessas crianças
A segunda turma do Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus coletivo para todas as mulheres presas preventivamente que sejam gestantes, puérperas, em situação de amamentação, mães de crianças de até 12 anos e de pessoas com deficiência. A decisão também foi estendida para adolescentes que se encontrem em situação semelhante.
O resultado do julgamento traz dois pontos principais. O primeiro deles é a sinalização positiva para a possibilidade de utilização do habeas corpus de forma coletiva, algo que já vinha sendo questionado, e até concedido, em tribunais de instâncias inferiores e estava pendente de decisão com repercussão geral no próprio tribunal.
A partir do reconhecimento de que demandas coletivizadas merecem tratamento processual igualmente coletivo, sob pena de se privar de acesso à Justiça determinados grupos que tenham a sua esfera de direitos agredida, os ministros atestaram a evolução processual desse remédio constitucional com função ímpar no nosso ordenamento: a de tratar da liberdade de ir e vir dos cidadãos.
Se a violação de direitos se dá de forma maciça e sistemática, especialmente por parte do Estado, ele próprio deve adaptar e contextualizar os instrumentos judiciais capazes de atender às necessidades de proteção e garantia dos direitos da coletividade, de forma que o reconhecimento do exercício de um habeas corpus coletivo é apenas mais um passo para o próprio aperfeiçoamento desse instrumento jurídico.
Afinal, em um cenário em que se vislumbra a possibilidade de mandados de busca e apreensão coletivos nas residências dos cidadãos, nada mais justo que os mecanismos de proteção de direitos também sejam atendidos de forma coletiva.
Outro ponto relevante da decisão diz respeito ao mérito da própria ação proposta pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos, pois coloca em evidência a situação de vulnerabilidade das mulheres que foram presas preventivamente em situação bastante peculiar de saúde e estrutura familiar e, portanto, que foram submetidas desnecessariamente às situações degradantes e desumanas do cárcere brasileiro.
Sendo muitas vezes privadas do acesso a programas de acompanhamento pré-natal, assistência de saúde regular durante a gestação e no pós-parto, essas mulheres e suas crianças têm seus direitos constitucionais mais basilares ofendidos.
É dever do Estado cuidar dessas mulheres e da infância dessas crianças com prioridade absoluta e resguardar o seu pleno desenvolvimento, como já prevê a Constituição e as leis brasileiras.
A decisão da segunda turma do STF apenas assenta a compreensão do que o Código de Processo Penal brasileiro já cuidou em seu artigo 318: o de que mulheres gestantes e mães de crianças até 12 anos de idade, quando presas de forma cautelar, podem gozar de prisão domiciliar.
Esse entendimento é importante porque fortalece, no mínimo, dois pilares do sistema penal brasileiro: o de que prisão preventiva é uma exceção e assim deve continuar sendo, já que a todos é assegurada a presunção de inocência; e o de que a pena jamais deve ser transposta para terceiros (neste caso, à criança).

TRAFICANTES

Tendo em vista o reforço que a decisão traz a esses dois princípios, fica fragilizada a suposição de que o seu resultado funcionará como estímulo para que mulheres passem a atuar como traficantes.
A decisão não é um incentivo ao cometimento de crimes. Pelo contrário, ela protege crianças e mulheres que se encontram em situações bastante específicas.
Não se trata de eximir essas mulheres da devida persecução penal no caso de cometimento de crime, mas apenas de fazer cumprir a própria lei.

Uma crueldade a menos (3)Decisão sobre prisão domiciliar para grávidas e mães é um passo na direção certa

Esta Folha há muito defende uma reorientação profunda das políticas prisionais do país, por questões de princípio e também a partir da experiência concreta. Observa-se, afinal, que o crescimento contínuo da população carcerária traz danos mais dramáticos e evidentes que os resultados no combate à criminalidade.
Apenas de 2013 a 2016 (junho), o contingente de brasileiros atrás das grades saltou de 581,5 mil para 726,7 mil. No período, a taxa de mortes violentas intencionais em território nacional elevou-se de 27,8 para 29,9 por 100 mil habitantes.
A superlotação torna inadministráveis os presídios, que em seu conjunto dispõem de não mais de 368 mil vagas. Em tal ambiente, rebeliões sangrentas são muito mais prováveis que a reeducação dos presos; pior: é aí que as facções do crime organizado obtêm novos quadros a cada dia.
Nem seria necessário todo esse arrazoado, contudo, para justificar a recente concessão, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de habeas corpus coletivo determinando a substituição de prisão preventiva por domiciliar nos casos de gestantes e mães de crianças até 12 anos de idade.
Com a decisão, tomada nesta terça-feira (20) pela segunda turma do STF, ao menos 4.500 detentas (aproximadamente 10% do total do país) devem ser beneficiadas —a resolução contempla ainda adolescentes e mães de filhos portadores de deficiência, mas não mulheres já condenadas ou acusadas de crimes violentos.
Aqui as razões humanitárias são, claro, as mais importantes. Seguem-se a diretrizes do Estatuto da Primeira Infância, de 2016, que entende ser a criança a parte mais prejudicada pela interrupção do convívio com pais encarcerados.
A ampla maioria dos presídios femininos, ademais, não dispõe de condições mínimas para abrigar mulheres grávidas. O estatuto promoveu, assim, as alterações no Código de Processo Penal que embasaram a medida do STF.
A corte foi acionada depois de um habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal de Justiça em favor de Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Em boa hora, generalizou os impactos da legislação.
Trata-se de um passo na direção correta, ainda que diga respeito a circunstâncias específicas. No entender deste jornal, o arcabouço legal brasileiro deve amadurecer de modo a restringir os casos de encarceramento aos criminosos que representem risco de violência. Por ora, ao menos se reduz uma crueldade desnecessária.

(1) Texto de Roberto Dias, jornalista, secretário de Redação da área de Produção da Folha, onde trabalha desde 1998.
(2) Texto de 
Lívia Gil Guimarães é pesquisadora do Supremo em Pauta da FGV Direito-SP
(3) Editorial da Folha de São Paulo 

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Depoimento de jovem vítima de crime exige atenção e cuidados especiais

Com entrada em vigor prevista para 6 de abril de 2018, a Lei 13.431/17 criou e regulamentou o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

Tendo por fundamento o princípio constitucional da prioridade absoluta da tutela dos direitos das crianças, adolescentes e jovens (artigo 227 da Constituição) e os documentos internacionais correlatos, a nova lei trata dos direitos específicos que gozam as crianças e adolescentes que se encontrem na condição de vítimas ou testemunhas de violência.

A principal inovação trazida pelo legislador foi a determinação de que essas crianças e adolescentes sejam sempre ouvidos por meio dos procedimentos de escuta especializada e depoimento especial.

Toda violência cometida no meio social dispara uma cadeia de procedimentos que correm paralelamente em inúmeros órgãos. Esses procedimentos objetivam desde a proteção da vítima (por exemplo, encaminhamento médico e atendimento por órgãos assistenciais) até a busca pela punição do autor (por exemplo, realização de perícias médico-legais e colheita de depoimentos). Ocorre que, não raras vezes, tais procedimentos submetem as vítimas a novos sofrimentos. Isso ocorre,por exemplo, quando são chamadas a relatar o evento traumático individualmente para cada um desses profissionais, tendo que relembrar e reviver a violência inúmeras vezes.

Essa violência praticada pelos órgãos de atendimento caracteriza a chamada violência institucional[1]. Nas palavras da psicanalista Giselle Câmara Groeninga, ela se constitui em “um tipo especial de violência psicológica, com procedimentos desconexos que causam novos traumas”[2]. Este processo mostra-se especialmente preocupante quando estamos diante de crianças e adolescentes que, pela condição de seres em formação, poderão restar especialmente prejudicados em seu desenvolvimento psíquico e emocional.

Com o objetivo de evitar a violência institucional, a lei determina aos órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça que, diante de uma revelação espontânea de violência por criança ou adolescente, eles deverão adotar os procedimentos necessários para que o relato seja confirmado por meio da escuta especializada e/ou depoimento especial. Por consequência, caso um profissional não possua a capacitação necessária, deverá se abster de proceder a qualquer questionamento ao menor, devendo encaminhá-lo a profissional capacitado[3].

A intenção de evitar que crianças e adolescentes sejam submetidos a reiteradas entrevistas fica evidente quando o legislador estabelece como direito fundamental das crianças e adolescentes “ser resguardado e protegido de sofrimento, com (...) limitação das intervenções”.

A despeito da justificada preocupação do legislador, faz-se essencial registrar a importância de se respeitar o desejo de verbalização da vítima ou testemunha. Nunca deverá o profissional, sob pretexto de proteção, fazer calar o relato espontâneo e desejado. Ao contrário, deverá ouvir atentamente e registar de forma pormenorizada a narrativa e as expressões que foram utilizadas pelo menor. É direito da criança e do adolescente expressar suas visões, opiniões e desejos. Não cabe ao adulto ditar exclusivamente “o que deva ser o superior interesse da criança, porque é o próprio sujeito do interesse que deve ser legitimado a falar por si”. (MELO, 2016, p. 62)

Observe-se, que uma das mais importantes providências para se evitar a violência institucional é o estreitamento da relação entre os serviços de proteção existentes, com otimização dos fluxos de atendimento e criação de uma rede de proteção coesa e dialógica[4].

Na prática, diante das dificuldades em integrar os vários órgãos da rede, diversas localidades têm implementado centros de atendimento integrados, que congregam,em um mesmo espaço físico, vários dos serviços da rede de proteção.

Nos Estados Unidos já existem cerca de 900 centros integrados. Eles adotam o modelo do Children´s Advocacy Center (CAC),primeiro centro integrado do país, criado em 1985. Este modelo inspirou inúmeros outros países e, diante da expansão, foi criado o National Children´s Alliance, “organização social de acreditação e registro dos serviços que adotam o modelo CAC” (SANTOS, 2017).

Escuta especializada
A escuta especializada consiste no procedimento de entrevista da criança ou adolescente pelo profissional do órgão da rede de proteção (como órgãos de saúde, educação, assistência social, segurança pública), e que deverá se limitar ao estritamente necessário para o cumprimento de sua finalidade.

Caberá a cada um desses órgãos realizar uma reflexão sobre sua finalidade institucional e sobre quais informações são indispensáveis para atingi-la. Questionamentos impertinentes não deverão ser formulados às crianças e adolescentes.

Assim, a título de exemplo, caso a vítima seja encaminhada ao Instituto Médico Legal para realização de exame pericial de conjunção carnal ou atos libidinosos diversos, cuja finalidade é constatar vestígios materiais do crime sexual (como lesões), não deverá o médico perquirir sobre detalhes menos importantes da ocorrência. O histórico, item da estrutura básica do laudo pericial, deverá ser confeccionado somente com as informações essenciais à realização do exame, as quais preferencialmente deverão ser fornecidas pela autoridade requisitante.

Nesse sentido, temos que todo encaminhamento realizado entre órgãos da rede de proteção “deve incluir o registro do atendimento (...), incluindo o relato espontâneo da vítima e informações eventualmente coletadas com os responsáveis ou acompanhante, evitando-se revitimização em decorrência da repetição dos fatos” (SANTOS, 2017).

O objetivo principal é que “a intervenção se atenha ao estritamente necessário para o encaminhamento seguinte, evitando a ampliação do sofrimento, bem como o conflito de versões que a repetição exaustiva dos fatos vivenciados pode gerar” [5],

A lei não traz forma pré-determinada para a realização da escuta especializada, fazendo-nos concluir que se trata de procedimento informal, não havendo sequer a exigência de redução a termo da entrevista. Contudo, entendemos extremamente importante que toda interação mantida com a criança ou adolescente seja registrada. Esse registro servirá para preservar termos e expressões usados nos relatos iniciais e permitirá a verificação de eventuais contaminações ou alterações da narrativa.

Depoimento especial
O depoimento especial é o procedimento de escuta de crianças e adolescentes perante a autoridade policial ou judiciária, devendo ser conduzido por profissional especializado. O procedimento deverá ser regido por protocolos, tramitará em segredo de justiça e seu registro será feito em áudio e vídeo.

A Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos parâmetros de escuta de crianças e adolescentes em situação de violência, traz o seguinte conceito:

(...) procedimento realizado pelos órgãos investigativos de segurança pública, com a finalidade de coleta de evidências dos fatos ocorridos no âmbito de um processo investigatório e pelo sistema de Justiça para responsabilização judicial do suposto autor da violência.

A maior distinção entre a escuta especializada e o depoimento especial encontra-se na profundidade e extensão dos questionamentos que serão feitos à vítima ou testemunha. Durante a persecução penal faz-se necessária a obtenção do maior número de detalhes do fato e, por tal razão, esta oitiva será muito mais longa e detalhada.

Depoimento especial perante a autoridade policial
Os órgãos policiais comumente são os primeiros a ter contato com o fato criminoso, sendo essencial, para o desenvolvimento da atividade investigativa,que rapidamente se obtenha o relato das vítimas e das testemunhas sobre suas recordações. É a partir desses relatos que a autoridade policial delineia os atos de investigação que serão realizados. A depender da narrativa apresentada, será ou não necessário o encaminhamento da vítima ao IML, a apreensão de peças de roupa, a localização de filmagens em câmeras de segurança, etc.

A própria lei determina, em seu artigo 22, que os órgãos policiais envidarão esforços investigativos para que o depoimento especial não seja o único meio de prova para o julgamento do réu. É exatamente para otimização da coleta de provas materiais que se mostra essencial a oitiva das vítimas e testemunhas logo após o crime.

A rapidez na realização da oitiva da vítima é também importante para a não ocorrência da vitimização secundária[6]. Conforme esclarece a Comissão Permanente da Infância e Juventude, “(...) o decurso do tempo, a demora na escuta e na solução do caso são especialmente danosos às crianças e adolescentes vítimas (...) por impedir que estas possam superar, da forma mais rápida possível, os traumas decorrentes da violência sofrida”.[7]

Um terceiro aspecto que evidencia a necessidade de imprimirmos celeridade na realização dessa escuta é a fragilidade da memória, especialmente das crianças e adolescentes. Conforme bem expressa Guilherme de Souza Nucci (2017), “a mente (e a memória) infanto-juvenil trabalha com fantasias e ficções, que podem mesclar-se com o fato ocorrido quanto mais o tempo passar”.

Assim, embora o artigo 11 deixe claro que o depoimento especial será preferencialmente realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, nosso entendimento é que sempre que a estrutura do Poder Judiciário local não permitir que o depoimento especial judicial seja realizado de forma imediata ou pelo menos em curtíssimo prazo, estará autorizada a realização do depoimento especial policial.

Existem, contudo, duas situações em que a lei determina, de forma taxativa, que seja realizado o depoimento especial judicial, seguindo-se o rito cautelar de antecipação de prova. Tal ocorrerá quando a vítima for criança menor de sete anos (artigo 11, parágrafo 1°, I) e nos casos de violência sexual (artigo 11, parágrafo 1°, II) independentemente da idade da vítima.

Todavia, mesmo nas hipóteses do parágrafo 1° do artigo, sempre poderá a autoridade policial, enquanto integrante da rede de proteção, realizar escuta especializada. Essa entrevista terá como finalidade específica determinar as diligências investigativa se protetivas urgentes, tal como eventual representação pela prisão do suspeito.

Acerca da forma do depoimento especial policial, temos que também deverá seguir, no que for cabível, o procedimento trazido pelo artigo 12. Assim, deverá ser conduzido por profissionais especializados e gravado em áudio e vídeo.

Por ausência de exigência legal, não vislumbramos essencial que no depoimento especial perante a autoridade policial seja garantida ampla defesa do investigado, prevista pelo artigo 11 exclusivamente para os casos de depoimento especial em sede de produção antecipada de prova judicial.

Depoimento especial perante a autoridade judiciária
Conforme dito, sempre que possível, o depoimento especial será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.

A prova antecipada consiste na prova produzida perante o juiz,com a observância do contraditório real, antes de seu momento processual oportuno ou até mesmo antes de iniciado o processo (durante a fase investigativa).

Embora o “caput” do artigo 11 traga o depoimento especial judicial como não obrigatório, devendo ser adotado “sempre que possível”, o parágrafo 1° traz duas situações em que esse procedimento deverá necessariamente ser observado, quais sejam: quando se tratar de criança com menos de sete anos de idade ou quando estivermos diante de violência sexual.

Ademais, embora o artigo 11 indique que excepcionalmente poderá ser realizado um segundo depoimento especial judicial, seu parágrafo 2° veda nova oitiva quando a autoridade competente não houver justificado sua imprescindibilidade ou quando não houver a concordância da vítima, da testemunha ou de seu representante legal.

O depoimento especial judicial será transmitido em tempo real para a sala de audiência e, ao final da narrativa, caberá juiz consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos acerca da existência de perguntas complementares. Caso julgue pertinentes as perguntas, as encaminhará em bloco para o profissional especializado que estará com a criança na sala especial.

Importante registrar que a lei traz que é direito das crianças e dos adolescentes que assim desejarem, prestar seu depoimento diretamente ao juiz, hipótese em que a autoridade judiciária poderá realizar o afastamento do autor da violência da sala de audiência para proceder à escuta.

Aspectos procedimentais do depoimento especial
O depoimento especial será conduzido por profissional especializado que inicialmente deverá esclarecer à criança ou ao adolescente os procedimentos que serão realizados e quais são seus direitos, procedendo ao planejamento de sua participação.

Lembramos, nesse ponto, que a lei estabelece que as crianças e adolescentes têm o direito de permanecer em silêncio (artigo 5º, inciso VI). Assim, embora o Código de Processo Penal preveja que as testemunhas com idade entre 14 e 18 anos sejam compromissadas a dizer a verdade do que souberem e lhes for perguntado (artigos 203 e 208 do CPP), caso o adolescente opte por permanecer em silencio, não cometerá ato infracional análogo ao crime de falso testemunho (artigo 342 do Código Penal).Ante o exercício regular de direito, incidirá a excludente de ilicitude prevista no artigo 23, III do Código Penal.

Realizados os esclarecimentos iniciais, o profissional deverá permitir que a criança ou o adolescente realize a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo intervir, quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos.

Embora a lei preveja que o profissional “poderá” adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente, entendemos que há obrigatoriedade nesta adaptação. Diante da utilização de linguagem incompatível, a vítima ou testemunha poderá omitir informações importantes simplesmente por não haver compreendido plenamente os questionamentos formulados.

Observe-se que é importantíssimo que a atuação do profissional especializado se baseie nas “metodologias mais avançadas e testadas cientificamente, que garantem rigor técnico e qualidade da prova coletada, para que a escuta e/ou o depoimento não tenha sugestionamentos, direcionamentos ou contaminação da memória (...)” (SANTOS, 2018, p. 17).

Existem inúmeros protocolos de oitiva de crianças e adolescentes, como o Guia de Entrevista Infantil do Centro Médico Harborview do Estado de Washington (Estados Unidos); o procedimento de entrevista cognitiva (entrevista forense); o Protocolo NICHD (Protocolo de Entrevista Investigativa Estruturada do National Institute of Child Health and Human Development); o Protocolo de Entrevista Forense Ratac (da organização não governamental americana CornerHouse); e os protocolos de entrevista forense e de entrevista forense estendida NCAC (National Children’s Advocacy Center).

Conforme expõe Vanea Maria Visnievski (2014), todos esses documentos possuem muitos pontos de convergência:

"A maioria dos protocolos de entrevista investigativa tem os mesmos fundamentos: evitar perguntas sugestivas; fazer perguntas abertas; permitir relato livre; tratar o entrevistado com cordialidade e estabelecer confiança. (...) Verifica-se ainda que esses protocolos de entrevista desenvolvem-se, essencialmente, em três fases: 1) acolhimento do entrevistado, fase conhecida também como rapport ou preparação; 2) obtenção de relato do fato, que implica na recordação do entrevistado; 3) fechamento ou finalização da entrevista, de maneira que o entrevistado saia com sentimentos positivos

Texto de Lívia Graziela Pini no CONJUR, 
delegada de polícia da Polícia Civil do Paraná, titular de Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente.

[1] Nominada pela vitimologia como vitimização secundária.

[2] Lei 12.431 tem longo caminho para ser efetiva sem causar injustiças. Revista Consultor Jurídico, abr. 2017. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2017.

[3] Caso não o faça, poderá receber as sanções da Lei 8.069/90 (artigo 4º, parágrafo 4°).

[4]O que é incentivado pela lei, conforme previsão do parágrafo 1° do artigo 4º e dos artigos 10 e 14.

[5] BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Parâmetros de escuta de crianças e adolescentes em situação de violência. Brasília, DF, 2017. Disponível em: , Acesso: 03 fev. 2017.

[6] “(...) impacto produzido na vítima pelas próprias instituições responsáveis pela prevenção e pela persecução do delito (...). A falta de uma resposta rápida e eficaz (...), a distância, os horários, a falta de pessoal especializado, (...) reiteradas intimações, (...), a submissão a excessivos exames e perícias, a demora na finalização do processo, a falta de informação (...)” (MELO, 2016. p. 72).

[7] Nota técnica 01/2015 da Comissão Permanente da Infância e Juventude do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça sobre Depoimento Especial de crianças e adolescentes vítimas de violência.Disponível em: . Acesso: 14 out. 2017.

Do blog CONJUR
https://www.conjur.com.br/2018-fev-18/livia-pini-sadsddssdsd