Cresce tipo de crime em que vítima é forçada a produzir imagens sexuais
Perfis falsos chegam a jovens e, com chantagens, praticam estupro virtual
A chamada sextorsão tem se tornado a modalidade mais recorrente de abuso sexual virtual, de acordo com especialistas e investigadores entrevistados pela Folha e relatórios de organizações internacionais ligadas ao tema.
União das palavras sexo e extorsão, o crime começa com a criação de perfis falsos para a aproximação (via likes e comentários) e abordagem das vítimas. Após algum tempo de conversa, o perfil falso envia um vídeo ou uma foto íntima, igualmente falsos, mas interessantes o bastante para instigar a reciprocidade.
Quando o criminoso consegue obter da vítima foto ou vídeo íntimo, tem início um pesado processo de chantagem.
“Ele dizia que, se eu não fizesse tudo o que ele me pedisse, iria postar aquela imagem no Facebook. Entrei em desespero”, conta Maria (nome fictício), hoje com 18 anos, sobre o pesadelo que viveu aos 14.
Segundo ela, o criminoso exibiu imagens de dezenas de outras vítimas adolescentes.
A estudante Maria, 18, vítima de sextorsão aos 14 anos, e sua mãe, Sônia (nomes fictícios), 38 -
A prática hoje é interpretada como um estupro virtual, graças a uma mudança na redação do artigo 213 do Código Penal que caracterizou o crime de estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena é de seis a dez anos de prisão.
“Eu era virgem e só chorava. Tentava conter os soluços porque os meus pais estavam no quarto do lado”, conta ela, que chegou a pensar em se matar.
“Isso me jogou para a beira do abismo”, diz. “Meus pais eram muito rígidos, nunca conversaram comigo sobre nada disso. Era eu comigo mesma.”
Maria parou de comer, de estudar e não saía do quarto. “A gente via ela chorando e não entendia”, conta a mãe, Sônia (nome fictício), 38. “Eu julgava, cobrava, mas não percebia o quanto era ausente. Descobri da pior maneira possível.”
A menina contou a história a um amigo, que a convenceu a denunciar a chantagem ao Conselho Tutelar. De lá, o caso seguiu para a polícia, que conseguiu mapear outras vítimas do abusador e prendê-lo.
“A gente dá todo acesso tecnológico aos filhos e esquece que tudo isso os torna acessíveis também”, diz Ana Cristina Melo Santiago, chefe da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente do Distrito Federal, responsável pelo caso.
Segundo ela, esse tipo de crime ainda é tabu, porque a vítima se sente partícipe da violação —por ter conversado com o abusador, por ter enviado a ele material íntimo, por ter cedido às chantagens, complicando a situação.
“Avançamos muito no debate de crimes de violência contra a mulher, mas não contra a criança, em relação à qual existe ampla complacência”, avalia. “Já os adolescentes ficam num vácuo, e para eles sobra a vergonha e a culpa.”
Zoe, 14, viu, aos 11 anos, a melhor amiga de internet se transmutar em um monstro.
“Ela era dona de uma página popular e dizia que eu era bonita e coisas assim. Até o dia em que pediu para eu ir ao banheiro e dançar pelada. Fui muito inocente. Eu não achava que as pessoas eram ruins.”
Depois disso, Zoe descobriu que a amiga era um cara e que precisava atender a seus pedidos para se preservar da revelação das imagens. “Vou espalhar pra todo mundo a putinha que você é”, escrevia ele.
“Chamei minha mãe, fomos para a delegacia”, diz. “Entrei em depressão e comecei a me mutilar. Os cortes são um jeito de eu me distrair da dor psicológica com uma dor física.”
Desenho feito por Zoe (nome fictício), 14, que sofreu estupro virtual aos 11 -
Para a procuradora Jaqueline Buffon, do Grupo de Apoio no Combate aos Crimes Cibernéticos do Ministério Público Federal, só a prevenção pode reduzir o problema. “As pessoas não refletem antes de postar imagens ou enviá-las a alguém”, diz ela, para quem o currículo escolar deveria incluir informações sobre uso consciente dos meios digitais.
“O diálogo em casa é fundamental para que a criança sinta confiança em buscar ajuda dos pais, que precisam acompanhar o que é acessado.”
Quanto aos meios de perpetração dos crimes, chamadas em vídeo e serviços de live streaming têm emergido como ferramentas de predadores sexuais, segundo a agência Europol e ONGs como Thorn e Internet Watch Foundation.
As transmissões são usadas para a venda de imagens de exploração sexual infantil sob demanda. Um criminoso contrata um serviço em que uma criança sofre abuso ao vivo, em outra parte do mundo.
Em 2015, um médico de 29 anos do interior paulista foi preso por financiar abusos ao vivo feitos nas Filipinas. Em um deles, a criança sofreu tanta violência que morreu.
PROFISSIONAIS RECEBEM AJUDA PARA LIDAR COM IMAGENS CHOCANTES
Protocolos e programas específicos tentam amenizar o impacto das imagens perturbadoras de abuso e exploração nos profissionais que lidam com elas no dia a dia.
Já há programas que transformam em pinturas imagens suspeitas de conter cenas de abuso para a primeira fase de reconhecimento nos centros de checagem das grandes empresas de internet. A ideia é preservar quem passa o dia confirmando suspeitas de conteúdo impróprio.
Entre investigadores, o recurso é inútil. Eles precisam observar fotos e vídeos atentamente. Para eles, os protocolos sugerem a quebra sistemática do trabalho para sessões de despressurização em salas com leituras e games.
“Ainda que seja chocante, é um trabalho que precisa ser feito. E os profissionais fazem algum tipo de rodízio porque as imagens são perversas”, afirma Alessandro Barreto, chefe do Laboratório de Inteligência Cibernética do Ministério de Justiça e responsável pelas operações Luz na Infância, de combate ao armazenamento dessas imagens.
Jaqueline Buffon avalia que profissionais que lidam com as imagens no cotidiano precisam de acompanhamento psicológico. “É algo muito difícil e doloroso de ver. Agride a gente. Quando comecei a trabalhar com isso, há dez anos, os casos não eram tão terríveis. E eles não podem ser tomados como uma coisa comum.”
Para Bruno Requião, agente da PF que ajudou a aplicar modelos matemáticos no combate a redes de pedofilia, “ninguém gosta de trabalhar com esse tema, porque o identifica com filhos ou sobrinhos”. Ao mesmo tempo, diz, é recompensador conseguir salvar crianças desse tipo de violência.
Reportagem de Fernanda Mena na Folha de São Paulo de 18/05/2019
https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2019/05/cresce-tipo-de-crime-em-que-vitima-e-forcada-a-produzir-imagens-sexuais.shtml
sábado, 18 de maio de 2019
sexta-feira, 17 de maio de 2019
Alimentos ultraprocessados e o ganho de peso
Dieta com alimentos ultraprocessados tem relação direta com ganho de peso
Estudo pioneiro em humanos comparou duas dietas com nutrientes semelhantes, mas a ultraprocessada tinha maior ingestão calórica
Um novo estudo publicado nesta quinta (16) pela revista Cell Metabolism mostra, pela primeira vez, uma relação causal entre o consumo dos chamados ultraprocessados e os malefícios para a saúde humana, como maior ingestão calórica e ganho de peso.
Entre os exemplos de alimentos ultraprocessados estão salgadinhos de pacote, refrigerantes, biscoitos industrializados e alimentos prontos congelados, que passam por muitas transformações até assumirem a forma final —diferente do que acontece com alimentos processados (como queijos e pães artesanais), que se valem de poucos ingredientes e processos, e minimamente processados (como vegetais congelados), que praticamente não passam por transformações.
Cientistas dos NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA) selecionaram 20 pacientes, dez homens e dez mulheres, com idade média de 31,2 anos, peso estável e sem doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, para participarem do estudo.
Os voluntários ficaram internados por quatro semanas e receberam, na primeira quinzena, uma dos tipos de dieta do estudo -ultraprocessada ou não processada. Na quinzena seguinte, era a vez de consumir a outra dieta. Os participantes podiam sempre comer o quanto quisessem.
As duas dietas tinham quantidades iguais de nutrientes como proteína, gordura, carboidrato, fibra e açúcar, e o menu de cada uma delas variava diariamente ao longo da semana. Nos quesitos saciedade, prazer de comer e familiaridade com as apresentações, os participantes consideraram ambas equivalentes. Ou seja, não daria para explicar o aumento no consumo de comida ultraprocessada simplesmente pelo sabor.
Segundo o principal investigador do estudo, Kevin Hall, do setor de fisiologia integrativa do NIDKK (instituto que estuda diabetes, doenças digestivas e renais), não haveria por que, a princípio, esperar que houvesse diferença significante no efeito das dietas no organismo.
“Eu era cético quanto ao fato de uma dieta composta por alimentos ultraprocessados ter efeito na ingestão calórica ou no ganho de peso, já que os nutrientes como açúcar, sal, gordura e fibra eram pareados entre elas. Para minha surpresa, houve uma grande diferença”, disse à Folha.
Uma das principais características de alimentos ultraprocessados é a falta de fibra —daí a necessidade de complementar a dieta com um suplemento alimentar rico em fibras solúveis, algo que não atrapalhou o sabor, segundo os participantes. Alimentos in natura, como folhas e frutas, suprem com facilidade essa demanda na dieta não processada.
A diferença entre os tipos de fibra pode ser uma das explicações para o desempenho das dietas (uma das hipóteses dos cientistas é que a fibra solúvel não seja tão boa em atrasar a metabolização do alimento pelo organismo). Consequentemente, houve o acúmulo em forma de gordura.
Outra explicação para o ganho de peso é a quantidade de comida ingerida, especialmente no café da manhã e no almoço, que chegou a ser 30% maior durante os dias de dieta ultraprocessada. Além disso, a velocidade de ingestão, calculada coma a razão entre quantidade de comida consumida e tempo que dura a refeição, foi 50% maior na dieta ultraprocessada, que é mais fácil de mastigar e engolir.
Devorar a comida nesse ritmo pode não dar tempo para os mecanismos que sinalizam saciedade funcionarem de maneira ideal.
O ganho de peso causado pela dieta ultraprocessada, segundo medições feitas pelos cientistas, também pode ser explicado, em parte, pelo consumo maior de sal. Em excesso o nutriente pode aumentar a retenção de água, aumentando o peso, portanto.
Durante o isolamento exigido pelo estudo as pessoas liam, trabalhavam em projetos, jogavam videogames e assistiam a filmes. Mas também se exercitavam durante uma hora por dia, para evitar o sedentarismo.
Apesar dos bons hábitos, só durante o período em que estavam na dieta não processada houve melhora de alguns parâmetros sanguíneos como a redução da produção de grelina, hormônio responsável pela fome, e aumento do hormônio PYY que dá sensação de saciedade. Também houve redução nos níveis de triglicérides e de colesterol LDL, ambos ligados a doenças cardiovasculares.
O médico e professor da USP Carlos Augusto Monteiro, que coordenou o “Guia Alimentar para a População Brasileira”, relata que vários estudos já haviam demonstrado uma associação entre a alimentação baseada em ultraprocessados e o ganho de peso, mas que o novo estudo dos NIH é o primeiro a estabelecer a relação de causalidade.
“Diante deste achado, a necessidade de que existam políticas para restringir o consumo de alimentos ultraprocessados fica ainda mais evidente, como, por exemplo, a proibição da propaganda desses produtos, em particular aquela dirigida a crianças e adolescentes, o aumento de impostos, de modo a desestimular o seu consumo, e a rotulagem frontal com advertências que informem os consumidores sobre o perfil inadequado de nutrientes tão comum nesses produtos”, diz Monteiro
A presença de aditivos e seus supostos malefícios para a saúde, tema de interesse de muitos pesquisadores, como o próprio Monteiro, não foi investigada nesse estudo. Mesmo assim para o professor da USP não faltam evidências para mudar a políticas de redução de consumo de ultraprocessados. “Sem essas políticas, continuaremos a observar no Brasil o surgimento, a cada ano, de 1 milhão de novos casos de obesidade e de 300 mil novos casos de diabetes, números que vêm sendo mostrados pelo sistema Vigitel do Ministério da Saúde desde sua criação em 2006.”
No estudo da Cell Metabolism, Hall e colegas escrevem: “Até que produtos reformulados se disseminem, limitar o consumo de alimentos ultraprocessados pode ser uma maneira efetiva para prevenir e tratar a obesidade.” Os autores dizem que os caminhos podem abranger diferentes dietas, sejam elas low-carb (com baixo teor de carboidratos), low-fat (com pouca gordura), baseada no consumo de plantas ou em produtos de origem animal.
João Dornellas, presidente da Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), diz que a classificação de uma alimento como ultraprocessado “não encontra respaldo na ciência e na tecnologia de alimentos”.
“O estudo compara duas dietas igualmente desbalanceadas, com tipos de alimentos e bebidas completamente diferentes. O estudo não compara produtos caseiros com alimentos industrializados correspondentes. Por exemplo, um hambúrguer feito em casa com um feito na indústria, o que poderia permitir a avaliação dos efeitos do processamento de alimentos na dieta.”, afirma o executivo.
Ele diz ainda que a indústria de alimentos estimula a importância do consumo equilibrado, da educação alimentar e da adoção de estilos de vida saudáveis. Segundo a Abia, apenas 10,5% do faturamento do setor vem de da venda de produtos como aperitivos, sobremesas, temperos e outros itens de consumo ocasional.
Nos EUA, mais da metade das calorias consumidas pela população vêm de alimentos processados. No Brasil, esse percentual, segundo Monteiro, é de cerca de 20%. Outro fator a que pesa para os americanos é que lá a comida não processada tende a ser mais cara. No estudo, o custo da dieta não processada foi 50% maior do que a baseada em ultraprocessados. No Brasil, a opção por alimentos não processados tendem a pesar bem menos no bolso —basta ir à feira.
A nutricionista Bianca Naves diz que, por causa dos riscos à saúde, como obesidade e doenças crônicas, como hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia (desbalanço no metabolismo de gorduras), o apelo de limitação no consumo de ultraprocessados deve ser levado em conta, “já que essas são comorbidades custosas para o sistema público de saúde”.
“Mas, além da qualidade nutricional, é necessário a avaliação do estilo de vida de cada indivíduo ou de determinada comunidade. A prática de atividade física, o manejo do estresse, a qualidade do sono, são fatores determinantes para a boa saúde. Não é apenas um único fator que determina riscos, e sim, o conjunto deles”, diz a nutricionista.
Reportagem de Gabriel Alves na Folha de São Paulo de 17/05/2019
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/05/dieta-com-alimentos-ultraprocessados-tem-relacao-direta-com-ganho-de-peso.shtml
Estudo pioneiro em humanos comparou duas dietas com nutrientes semelhantes, mas a ultraprocessada tinha maior ingestão calórica
Um novo estudo publicado nesta quinta (16) pela revista Cell Metabolism mostra, pela primeira vez, uma relação causal entre o consumo dos chamados ultraprocessados e os malefícios para a saúde humana, como maior ingestão calórica e ganho de peso.
Entre os exemplos de alimentos ultraprocessados estão salgadinhos de pacote, refrigerantes, biscoitos industrializados e alimentos prontos congelados, que passam por muitas transformações até assumirem a forma final —diferente do que acontece com alimentos processados (como queijos e pães artesanais), que se valem de poucos ingredientes e processos, e minimamente processados (como vegetais congelados), que praticamente não passam por transformações.
Cientistas dos NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA) selecionaram 20 pacientes, dez homens e dez mulheres, com idade média de 31,2 anos, peso estável e sem doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, para participarem do estudo.
Os voluntários ficaram internados por quatro semanas e receberam, na primeira quinzena, uma dos tipos de dieta do estudo -ultraprocessada ou não processada. Na quinzena seguinte, era a vez de consumir a outra dieta. Os participantes podiam sempre comer o quanto quisessem.
As duas dietas tinham quantidades iguais de nutrientes como proteína, gordura, carboidrato, fibra e açúcar, e o menu de cada uma delas variava diariamente ao longo da semana. Nos quesitos saciedade, prazer de comer e familiaridade com as apresentações, os participantes consideraram ambas equivalentes. Ou seja, não daria para explicar o aumento no consumo de comida ultraprocessada simplesmente pelo sabor.
Segundo o principal investigador do estudo, Kevin Hall, do setor de fisiologia integrativa do NIDKK (instituto que estuda diabetes, doenças digestivas e renais), não haveria por que, a princípio, esperar que houvesse diferença significante no efeito das dietas no organismo.
“Eu era cético quanto ao fato de uma dieta composta por alimentos ultraprocessados ter efeito na ingestão calórica ou no ganho de peso, já que os nutrientes como açúcar, sal, gordura e fibra eram pareados entre elas. Para minha surpresa, houve uma grande diferença”, disse à Folha.
Uma das principais características de alimentos ultraprocessados é a falta de fibra —daí a necessidade de complementar a dieta com um suplemento alimentar rico em fibras solúveis, algo que não atrapalhou o sabor, segundo os participantes. Alimentos in natura, como folhas e frutas, suprem com facilidade essa demanda na dieta não processada.
A diferença entre os tipos de fibra pode ser uma das explicações para o desempenho das dietas (uma das hipóteses dos cientistas é que a fibra solúvel não seja tão boa em atrasar a metabolização do alimento pelo organismo). Consequentemente, houve o acúmulo em forma de gordura.
Outra explicação para o ganho de peso é a quantidade de comida ingerida, especialmente no café da manhã e no almoço, que chegou a ser 30% maior durante os dias de dieta ultraprocessada. Além disso, a velocidade de ingestão, calculada coma a razão entre quantidade de comida consumida e tempo que dura a refeição, foi 50% maior na dieta ultraprocessada, que é mais fácil de mastigar e engolir.
Devorar a comida nesse ritmo pode não dar tempo para os mecanismos que sinalizam saciedade funcionarem de maneira ideal.
O ganho de peso causado pela dieta ultraprocessada, segundo medições feitas pelos cientistas, também pode ser explicado, em parte, pelo consumo maior de sal. Em excesso o nutriente pode aumentar a retenção de água, aumentando o peso, portanto.
Durante o isolamento exigido pelo estudo as pessoas liam, trabalhavam em projetos, jogavam videogames e assistiam a filmes. Mas também se exercitavam durante uma hora por dia, para evitar o sedentarismo.
Apesar dos bons hábitos, só durante o período em que estavam na dieta não processada houve melhora de alguns parâmetros sanguíneos como a redução da produção de grelina, hormônio responsável pela fome, e aumento do hormônio PYY que dá sensação de saciedade. Também houve redução nos níveis de triglicérides e de colesterol LDL, ambos ligados a doenças cardiovasculares.
O médico e professor da USP Carlos Augusto Monteiro, que coordenou o “Guia Alimentar para a População Brasileira”, relata que vários estudos já haviam demonstrado uma associação entre a alimentação baseada em ultraprocessados e o ganho de peso, mas que o novo estudo dos NIH é o primeiro a estabelecer a relação de causalidade.
“Diante deste achado, a necessidade de que existam políticas para restringir o consumo de alimentos ultraprocessados fica ainda mais evidente, como, por exemplo, a proibição da propaganda desses produtos, em particular aquela dirigida a crianças e adolescentes, o aumento de impostos, de modo a desestimular o seu consumo, e a rotulagem frontal com advertências que informem os consumidores sobre o perfil inadequado de nutrientes tão comum nesses produtos”, diz Monteiro
A presença de aditivos e seus supostos malefícios para a saúde, tema de interesse de muitos pesquisadores, como o próprio Monteiro, não foi investigada nesse estudo. Mesmo assim para o professor da USP não faltam evidências para mudar a políticas de redução de consumo de ultraprocessados. “Sem essas políticas, continuaremos a observar no Brasil o surgimento, a cada ano, de 1 milhão de novos casos de obesidade e de 300 mil novos casos de diabetes, números que vêm sendo mostrados pelo sistema Vigitel do Ministério da Saúde desde sua criação em 2006.”
No estudo da Cell Metabolism, Hall e colegas escrevem: “Até que produtos reformulados se disseminem, limitar o consumo de alimentos ultraprocessados pode ser uma maneira efetiva para prevenir e tratar a obesidade.” Os autores dizem que os caminhos podem abranger diferentes dietas, sejam elas low-carb (com baixo teor de carboidratos), low-fat (com pouca gordura), baseada no consumo de plantas ou em produtos de origem animal.
João Dornellas, presidente da Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), diz que a classificação de uma alimento como ultraprocessado “não encontra respaldo na ciência e na tecnologia de alimentos”.
“O estudo compara duas dietas igualmente desbalanceadas, com tipos de alimentos e bebidas completamente diferentes. O estudo não compara produtos caseiros com alimentos industrializados correspondentes. Por exemplo, um hambúrguer feito em casa com um feito na indústria, o que poderia permitir a avaliação dos efeitos do processamento de alimentos na dieta.”, afirma o executivo.
Ele diz ainda que a indústria de alimentos estimula a importância do consumo equilibrado, da educação alimentar e da adoção de estilos de vida saudáveis. Segundo a Abia, apenas 10,5% do faturamento do setor vem de da venda de produtos como aperitivos, sobremesas, temperos e outros itens de consumo ocasional.
Nos EUA, mais da metade das calorias consumidas pela população vêm de alimentos processados. No Brasil, esse percentual, segundo Monteiro, é de cerca de 20%. Outro fator a que pesa para os americanos é que lá a comida não processada tende a ser mais cara. No estudo, o custo da dieta não processada foi 50% maior do que a baseada em ultraprocessados. No Brasil, a opção por alimentos não processados tendem a pesar bem menos no bolso —basta ir à feira.
A nutricionista Bianca Naves diz que, por causa dos riscos à saúde, como obesidade e doenças crônicas, como hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia (desbalanço no metabolismo de gorduras), o apelo de limitação no consumo de ultraprocessados deve ser levado em conta, “já que essas são comorbidades custosas para o sistema público de saúde”.
“Mas, além da qualidade nutricional, é necessário a avaliação do estilo de vida de cada indivíduo ou de determinada comunidade. A prática de atividade física, o manejo do estresse, a qualidade do sono, são fatores determinantes para a boa saúde. Não é apenas um único fator que determina riscos, e sim, o conjunto deles”, diz a nutricionista.
Reportagem de Gabriel Alves na Folha de São Paulo de 17/05/2019
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/05/dieta-com-alimentos-ultraprocessados-tem-relacao-direta-com-ganho-de-peso.shtml
domingo, 5 de maio de 2019
Cresce alerta para automutilação entre crianças e adolescentes no Brasil
Feridas emocionais já mobilizam governo, escolas, consultórios e até faculdades em planos de intervenções e ações preventivas
“O que está doendo tanto em você para fazer isso?” Foi o que a aposentada Maria, de 40 anos, perguntou para Bárbara (nomes fictícios) quando viu cortes no braços da filha, de 11. “A dor dela era se achar tão inferior que não merecia carinho de ninguém.” Cada vez mais comuns entre crianças e adolescentes, as automutilações trazem à tona feridas emocionais de meninos e meninas e mobilizam escolas em planos de intervenções e ações preventivas.
Depois de terapia e a aposta em um esporte novo, aos poucos os cortes deram lugar às cicatrizes nos braços de Bárbara, mas a menina ainda vê colegas da mesma idade que passam pelo problema. O Brasil não tem dados específicos sobre o número de jovens que se automutilam. Nos corredores dos colégios e consultórios, porém, a sensação é de aumento.
'A dor dela era se achar tão inferior que não merecia carinho de ninguém', diz mãe de menina que se automutilava Foto: Felipe Barduchi/Estadão
Conhecer a dimensão das lesões entre adolescentes é um dos objetivos de uma lei sancionada na semana passada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). A norma prevê que escolas passem a notificar casos de automutilação a conselhos tutelares – a ideia é que a família também seja avisada, ao mesmo tempo. “É um fenômeno. Outros países enfrentam os mesmos dilemas e, para instituir políticas públicas, precisamos de dados precisos”, disse ao Estado a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A pasta vai articular a regulamentação da norma.
A escola é vista por autoridades e especialistas com um papel central na identificação dos casos – parte ocorre dentro das unidades e com objetos cortantes de uso cotidiano dos estudantes. Mas, em meio a uma série de outros desafios ligados à aprendizagem e falta de recursos, os colégios ainda precisam superar tabus e a falta de formação de seus profissionais para lidar com o tema.
Pesquisadora da violência nas escolas há quase 20 anos, Miriam Abramovay se assustou quando percebeu o volume de relatos sobre automutilações em um estudo em escolas públicas do Ceará e Rio Grande do Sul. Realizada em 2016 e 2017, a pesquisa incluiu o tópico pela primeira vez e ouviu grupos de jovens. “Em uma escola onde fizemos pesquisa, devolveram ao professor um ‘kit de automutilação’. Disseram que não precisavam mais, já se sentiam reconhecidos não só pela escola, como também pela sociedade.”
“Era uma catarse, eles choravam muito”, lembra Miriam, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). “Tanto que começamos a levar caixinhas de lenço de papel", comenta.
Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Leila Tardivo observa, além do aumento, uma mudança no perfil. “Era mais entre mulheres acima de 20 anos, pessoas com problemas psiquiátricos. Agora, acontece em pessoas mais jovens, de 12, 13, 14 anos.” As meninas são maioria, mas a prática também ocorre entre os meninos.
Raramente há intenção de causar a morte. “Os adolescentes se machucam até para não se suicidar. Muitos dizem que a dor no braço é menor do que a tristeza”, diz Leila, que, com uma equipe da USP e pesquisadores da Universidade de Sevilha, na Espanha, participa de ações preventivas em escolas públicas de São Paulo.
Automutilação está ligada a frustrações e depressão
Para ela, o contágio pelas redes sociais – há jovens que publicam as lesões na internet e páginas que incentivam a prática – ajuda a explicar o fenômeno, mas não é a única causa. “A automutilação está ligada a frustrações, à depressão.” Os casos também podem vir após violência em casa, bullying e abandono. O tratamento inclui psicoterapia e, em geral, não dura menos de um ano.
Espaços como o ambulatório do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da USP se especializaram no assunto. Jovens com histórico de autolesões começaram a chegar em 2013 e não pararam mais. “Hoje, temos mais adolescentes com automutilação do que uso de drogas no ambulatório”, diz a psiquiatra do IPq Jackeline Giusti, que também tem recebido ligações de escolas em dúvida sobre como agir.
Foi depois da demanda de colégios que uma equipe do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) passou a estudar questões emocionais e afetivas relacionadas à automutilação entre adolescentes.
Para Antônio Augusto Pinto Júnior, professor da UFF, chama a atenção o número de jovens encaminhados pelas escolas de Volta Redonda, no Rio, onde o projeto é realizado: mais de dez em cada colégio. “Que problema é esse que está acontecendo com os jovens que eles precisam usar uma conduta autoagressiva para dar conta de suas questões?”, indaga.
A interrogação também ecoa entre professores e pais – que fazem parte de uma geração em que essa prática era menos comum. “Fiquei desesperada porque nunca imaginei que existisse isso”, conta Laís, de 37 anos, alertada pelo colégio de que o filho, aos 14, estava machucando os pulsos. Após terapia e o olhar atento da mãe, as lesões cessaram.
Para Gustavo Estanislau, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ainda é comum que as escolas reajam diante de casos de autolesão ou com susto excessivo ou banalização. Ele defende a abertura ao diálogo e o acompanhamento profissional.
“Temos de ter cuidado para não sobrecarregar o educador, mas fortalecê-lo para identificar e fazer ao menos o primeiro movimento de encaminhar ao orientador”, diz ele, que faz parte do projeto Cuca Legal, de formação de professores.
PRESTE ATENÇÃO
1. Feridas. A automutilação tem se tornado mais comum, mas não deve ser banalizada. Ela pode indicar dificuldades emocionais.
2. Comportamento. Fique atento a mudanças de humor e isolamento. O uso de mangas compridas no calor pode indicar uma tentativa de esconder lesões.
3. Apoio. Caso identifique a situação, acolha o adolescente, escute os motivos e evite repreendê-lo. Procure ajuda profissional.
Conheça os projetos e saiba onde buscar ajuda:
Centros de Atenção Psicossocial (Caps)
Lista de contatos das unidades em São Paulo: prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/atencao_basica/
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP
Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785
ipqhc.org.br
Projeto Cuca Legal, da Unifesp
cucalegal.org.br
Apoiar, do Instituto de Psicologia da USP
ip.usp.br/site/apoiar
Guia para diretores e professores, da Flacso
flacso.org.br/files/2018/08/Guia-Diretores
Reportagem de Júlia Marques n'O Estado de São Paulo de 05 de maio de 2019 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,cresce-alerta-para-automutilacao-entre-criancas-e-adolescentes-no-brasil,70002815855
“O que está doendo tanto em você para fazer isso?” Foi o que a aposentada Maria, de 40 anos, perguntou para Bárbara (nomes fictícios) quando viu cortes no braços da filha, de 11. “A dor dela era se achar tão inferior que não merecia carinho de ninguém.” Cada vez mais comuns entre crianças e adolescentes, as automutilações trazem à tona feridas emocionais de meninos e meninas e mobilizam escolas em planos de intervenções e ações preventivas.
Depois de terapia e a aposta em um esporte novo, aos poucos os cortes deram lugar às cicatrizes nos braços de Bárbara, mas a menina ainda vê colegas da mesma idade que passam pelo problema. O Brasil não tem dados específicos sobre o número de jovens que se automutilam. Nos corredores dos colégios e consultórios, porém, a sensação é de aumento.
'A dor dela era se achar tão inferior que não merecia carinho de ninguém', diz mãe de menina que se automutilava Foto: Felipe Barduchi/Estadão
Conhecer a dimensão das lesões entre adolescentes é um dos objetivos de uma lei sancionada na semana passada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). A norma prevê que escolas passem a notificar casos de automutilação a conselhos tutelares – a ideia é que a família também seja avisada, ao mesmo tempo. “É um fenômeno. Outros países enfrentam os mesmos dilemas e, para instituir políticas públicas, precisamos de dados precisos”, disse ao Estado a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A pasta vai articular a regulamentação da norma.
A escola é vista por autoridades e especialistas com um papel central na identificação dos casos – parte ocorre dentro das unidades e com objetos cortantes de uso cotidiano dos estudantes. Mas, em meio a uma série de outros desafios ligados à aprendizagem e falta de recursos, os colégios ainda precisam superar tabus e a falta de formação de seus profissionais para lidar com o tema.
Pesquisadora da violência nas escolas há quase 20 anos, Miriam Abramovay se assustou quando percebeu o volume de relatos sobre automutilações em um estudo em escolas públicas do Ceará e Rio Grande do Sul. Realizada em 2016 e 2017, a pesquisa incluiu o tópico pela primeira vez e ouviu grupos de jovens. “Em uma escola onde fizemos pesquisa, devolveram ao professor um ‘kit de automutilação’. Disseram que não precisavam mais, já se sentiam reconhecidos não só pela escola, como também pela sociedade.”
“Era uma catarse, eles choravam muito”, lembra Miriam, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). “Tanto que começamos a levar caixinhas de lenço de papel", comenta.
Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Leila Tardivo observa, além do aumento, uma mudança no perfil. “Era mais entre mulheres acima de 20 anos, pessoas com problemas psiquiátricos. Agora, acontece em pessoas mais jovens, de 12, 13, 14 anos.” As meninas são maioria, mas a prática também ocorre entre os meninos.
Raramente há intenção de causar a morte. “Os adolescentes se machucam até para não se suicidar. Muitos dizem que a dor no braço é menor do que a tristeza”, diz Leila, que, com uma equipe da USP e pesquisadores da Universidade de Sevilha, na Espanha, participa de ações preventivas em escolas públicas de São Paulo.
Automutilação está ligada a frustrações e depressão
Para ela, o contágio pelas redes sociais – há jovens que publicam as lesões na internet e páginas que incentivam a prática – ajuda a explicar o fenômeno, mas não é a única causa. “A automutilação está ligada a frustrações, à depressão.” Os casos também podem vir após violência em casa, bullying e abandono. O tratamento inclui psicoterapia e, em geral, não dura menos de um ano.
Espaços como o ambulatório do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da USP se especializaram no assunto. Jovens com histórico de autolesões começaram a chegar em 2013 e não pararam mais. “Hoje, temos mais adolescentes com automutilação do que uso de drogas no ambulatório”, diz a psiquiatra do IPq Jackeline Giusti, que também tem recebido ligações de escolas em dúvida sobre como agir.
Foi depois da demanda de colégios que uma equipe do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) passou a estudar questões emocionais e afetivas relacionadas à automutilação entre adolescentes.
Para Antônio Augusto Pinto Júnior, professor da UFF, chama a atenção o número de jovens encaminhados pelas escolas de Volta Redonda, no Rio, onde o projeto é realizado: mais de dez em cada colégio. “Que problema é esse que está acontecendo com os jovens que eles precisam usar uma conduta autoagressiva para dar conta de suas questões?”, indaga.
A interrogação também ecoa entre professores e pais – que fazem parte de uma geração em que essa prática era menos comum. “Fiquei desesperada porque nunca imaginei que existisse isso”, conta Laís, de 37 anos, alertada pelo colégio de que o filho, aos 14, estava machucando os pulsos. Após terapia e o olhar atento da mãe, as lesões cessaram.
Para Gustavo Estanislau, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ainda é comum que as escolas reajam diante de casos de autolesão ou com susto excessivo ou banalização. Ele defende a abertura ao diálogo e o acompanhamento profissional.
“Temos de ter cuidado para não sobrecarregar o educador, mas fortalecê-lo para identificar e fazer ao menos o primeiro movimento de encaminhar ao orientador”, diz ele, que faz parte do projeto Cuca Legal, de formação de professores.
PRESTE ATENÇÃO
1. Feridas. A automutilação tem se tornado mais comum, mas não deve ser banalizada. Ela pode indicar dificuldades emocionais.
2. Comportamento. Fique atento a mudanças de humor e isolamento. O uso de mangas compridas no calor pode indicar uma tentativa de esconder lesões.
3. Apoio. Caso identifique a situação, acolha o adolescente, escute os motivos e evite repreendê-lo. Procure ajuda profissional.
Conheça os projetos e saiba onde buscar ajuda:
Centros de Atenção Psicossocial (Caps)
Lista de contatos das unidades em São Paulo: prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/atencao_basica/
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP
Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785
ipqhc.org.br
Projeto Cuca Legal, da Unifesp
cucalegal.org.br
Apoiar, do Instituto de Psicologia da USP
ip.usp.br/site/apoiar
Guia para diretores e professores, da Flacso
flacso.org.br/files/2018/08/Guia-Diretores
Reportagem de Júlia Marques n'O Estado de São Paulo de 05 de maio de 2019 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,cresce-alerta-para-automutilacao-entre-criancas-e-adolescentes-no-brasil,70002815855
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