Os pais sentem culpa por acharem um saco tomar conta dos 'pentelhos'
Vou descrever uma cena e depois vou perguntar o que você acha dela. Cenário: um restaurante bem frequentado da zona oeste de São Paulo.
Uma criança com cerca de cinco anos corre perto da mesa onde se encontra sua família, com uma taça de vidro de vinho vazia nas mãos. A família conversa acaloradamente. O restaurante cheio, as mesas umas ao lado das outras. Sexta-feira à noite. De repente, um ruído de vidro quebrando. A criança, o que era óbvio de se esperar, derrubou a taça no chão.
É razoável imaginar que os pais não perceberam que a criança corria de um lado para o outro com a taça de vidro nas mãos. Às vezes, ainda mais numa sexta-feira à noite, tudo o que você quer é relaxar, e não ficar vigiando o “pentelho”. Com o ruído da taça se espatifando no chão, os pais se levantam e correm até a criança. Pedaços de vidros se espalham pelo chão, caindo, inclusive, nas mesas em volta, nos pratos das pessoas, e mesmo nos cabelos das mulheres próximas ao incidente. Vou propor duas reações possíveis que os pais tiveram e você “vota”.
Reação A. Os pais correm a acudir a criança para ver se tudo estava bem com ela e, em seguida, passam a pedir desculpas às pessoas próximas, mortos de vergonha pelo ocorrido. Em seguida, buscam ajuda dos garçons para limpar a área atingida pelos cacos minúsculos de vidro.
Reação B. Os pais correm a acudir a criança para ver se tudo está bem com ela, enchem a criança de beijos, dizem que não foi nada, que a culpa não foi dela, e voltam para a sua mesa sem se dirigir às pessoas das mesas em volta e sem buscar ajuda junto aos garçons a fim de garantir que os cacos de vidro não permaneçam, colocando todo mundo ao redor em situação de risco.
Se você votou na reação A, errou. O que aconteceu foi a reação B, por incrível que pareça. Talvez, não tão incrível assim. Afinal de contas, a única preocupação dos pais foi garantir que a criança não se sentisse culpada pelo que aconteceu. A rigor, os culpados foram eles, adultos, responsáveis pelo que uma criança de cinco anos faz.
As avós sempre nos ensinaram que crianças não podem mexer em determinadas coisas.
Mesmo que, num momento de desatenção, você não veja que seu filho brincava com um objeto de vidro (todo mundo pode perder de vista uma criança de vez em quando), na sequência do incidente, após ver se tudo está bem, você deveria vestir o manto da humildade e pedir desculpas aos outros.
Mas as avós estão fora de moda. O que está na moda é uma pedagogia e psicologia da economia da autoestima das crianças. E isso está destruindo a educação, as escolas e as próprias crianças.
Os pais mais jovens hoje fazem dos seus filhos pequenos ditadores, perguntando a eles o tempo todo “o que desejam”. Num movimento de suposta instauração do “direito das crianças” não fazerem o que não querem, os pais fazem dessas crianças adultos insuportáveis, incapazes de lidar com os desafios que qualquer vida normal traz para as pessoas.
Aposto que, em poucos anos, não haverá mais avaliação alguma nas escolas, e essas existirão apenas para reforçar a autoestima dos pequenos mimados de 25 anos. Mas, afinal de contas, qual a causa disso?
Seriam muitas. Muita gente capaz está estudando o fenômeno, tentando entender por que os jovens, hoje em dia, entram na universidade com uma idade mental afetiva de uma criança de dez anos. As escolas são usinas de idiotas da autoestima. Eu arriscaria uma intuição acerca de uma das possíveis causas.
Além do conhecido narcisismo epidêmico do mundo contemporâneo (que faz dos adultos uns retardados mentais em geral), acho que uma das principais causas desse fenômeno é a culpa que os pais sentem por acharem um saco ter que tomar conta do “pentelho” —quase sempre um pentelho único.
Filhos estão fora de moda e diminuem a sensação de felicidade, autonomia e autoestima dos próprios pais (neste caso especifico porque, quando você tem filhos, você é continuamente julgado pelas pessoas à sua volta, principalmente as mães).
O número de mentiras cresceu no mundo contemporâneo. Por exemplo: os pais morrem de medo que seus filhos venham a ser gays, lésbicas ou trans, mas quem confessar é fuzilado imediatamente.
A cultura Instagram transformou todos em idiotas de vidas posadas. A única forma de editar a criação dos filhos é fingir que está sempre tudo bem, e que tanto eles quanto os pais sempre vivem um roteiro de amor perfeito contínuo.
Texto de Luiz Felipe Pondé na Folha de São Paulo de 08/07/2019
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
https://www.facebook.com/jgeraldosilva/posts/10219262530504782
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