Há uma realidade pouco conhecida por trás de um acidente de trânsito com repercussões de média ou grande intensidade que faz vítima uma pessoa de classe média ou pobre.
Além do trauma, das dores e das perdas, um caminhão de novos custos se instala rapidamente na vida desse povo que, a partir da fatalidade, vai chorar as pitangas até pela falta de lencinho descartável. E agora também acabou o Dpvat, que ajudava a pagar a conta básica.
Uma perda temporária de mobilidade ou uma deficiência permanente que se instala após um acidente automobilístico geram gastos que parecem não ter fim e que impactam o dia a dia de forma aviltante.´
Quem nunca zanzou por esse mundo dos quebrados talvez não tenha ideia de quanto custam talas, cateteres, medicamentos para dor, muletas, quites de profilaxia, curativos, equipamentos de adequação de postura para um corpo todo torto, transporte especializado, ataduras, cadeira de rodas, cuidadores para zelar minimamente de um indivíduo fragilizado.
Ah, e também gastos com fraldas, pois acidentes podem desorganizar o funcionamento das “partes”.
Nos últimos anos, o recurso emergencial de um seguro é o que tem amenizado a situação dos mais vulneráveis, pois a pressão sobre o SUS já flerta com o insuportável e obter do sistema insumos para o dia a dia enquanto ele for alterado é tarefa para os muito, muito fortes.
Levantamento do Conselho Federal de Medicina, de maio deste ano, mostra que, na última década, já foram aplicados R$ 3 bilhões com assistência a acidentados de trânsito.
A cada hora, segundo o conselho, 20 pessoas entram em um hospital público atrás de socorro depois de um choque pelas ruas das cidades brasileiras, número que só cresce. Mas dá para colocar mais pressão, segundo o governo.
Se o país optou por jogar o jogo do “cada um por si” e o pobre que se lasque na fila da assistência pública para conseguir dignidade após ter sido atropelado por um carro dirigido por um motorista que não parou para prestar socorro, é preciso estar preparado para a formação de um exército de mutilados pelo descaso.
Uma reabilitação malfeita ou a displicência com cuidados após um trauma implicam infecções, contraturas musculares, formação de dores crônicas, depressão pela falta de perspectivas.
O bom cuidado faz a recuperação ser mais rápida, a resposta do corpo ser mais efetiva e a volta à vida produtiva ser mais firme e segura.
Não que o dinheiro de uma indenização vá resolver todas as dores de uma tragédia, mas ele serve de alento para um recomeço, para a reconstrução de uma vida partida que poderá ser totalmente diferente dali em diante. Na morte, ele pode evitar, talvez, a indigência.
Para milhares de pessoas, nos últimos anos, o básico para as despesas depois de um acidente –e entenda-se o básico como aquilo que irá ofertar alguma dignidade diante uma carcaça abalada– veio após o recebimento do Dpvat, extinto em uma canetada.
Se há fraudes no sistema, não parece justo que se envergue a ponta mais frágil, quebrada, abaulada para eliminar o problema. Mais uma vez, opta-se por jogar a água do banho fora com o bebê também indo pelo ralo.
O brasileiro está empapuçado de corrupção, está sensível e intolerante a novas cobranças avacalhadas, que sempre correm o risco de cair em mãos de pilantras, mas a busca dessa clareza da coisa pública não pode vir por meio do esmagamento de pessoas e avançando o sinal vermelho do respeito a toda vida humana.
Texto de Jairo Marques, cadeirante, na Folha de São Paulo de 13/11/2019 https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2019/11/12/fim-do-dpvat-e-avancar-sinal-vermelho-do-respeito-a-vida/
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