segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Criança e celular

Que tal permitir que os filhos usem o aparelho dos pais até ter mais maturidade?
Há poucos dias, conversei com um pequeno grupo de jovens mães que comentavam a respeito dos presentes que dariam aos filhos, com idades entre 4 e 10 anos, no Natal. A reclamação da falta de criatividade do que encontravam no mercado foi geral. Perguntei se todas dariam brinquedos, e uma disse que tinha decidido dar ao mais velho, de 10 anos, um celular. Outras duas, mães de meninas de 9 anos, e mais uma, com filho de 8, haviam decidido a mesma coisa.
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“Com internet?”, perguntei. “Claro! Dar celular sem chip 4G é igual a dar brinquedo quebrado”, respondeu uma delas, bem-humorada. Rimos juntas e ela acrescentou: “Sei que você é contra, mas me vi sem saída porque brinquedos não interessam mais a ele, que é pré-adolescente; além disso, quase todos os colegas têm o seu há anos”.

Bem, primeiramente um breve comentário sobre essa história de pré-adolescente. Por acaso você considera um adulto, de qualquer idade, um pré-velho? Certamente que não! E por quê? Porque velhice é uma etapa da vida que virá depois. Então, por que essa mania de abortar o fim da infância para introduzir uma categoria que nem existe? Fiquemos com infância e adolescência que fica melhor para eles.

Agora, ao celular com internet para crianças. Elas precisam? Não. O comentário da mãe que falou do brinquedo quebrado está absolutamente correto: celular, para crianças, é um brinquedo. E é aí que reside o problema: brinquedo serve para se distrair, entreter, sem compromisso, sem responsabilidade. A questão é que o celular não funciona apenas como brinquedo.

Ele, com acesso à internet, oferece recursos que exigem um tanto de responsabilidade para usar, o que crianças não têm. O que elas têm? Curiosidade, muita! Como o mundo adulto foi jogado sobre os ombros delas na maior sem-cerimônia, a curiosidade está, quase sempre, focada nos assuntos do mundo adulto. E quais chamam a atenção delas? Um deles é... Sexo!

Por meio das brincadeiras da infância, a criança explora o mundo para conhecê-lo. Mas, no universo infantil, não há espaço para explorar a sexualidade na forma adulta, não é verdade? Aí é que entra o celular com internet. Ele oferece essa possibilidade a qualquer um. Até algumas décadas atrás, crianças não costumavam se interessar pela vida sexual ao modo adulto porque estavam focadas em outras questões, próprias dessa etapa. Com a explosão dos usos e abusos do erotismo e da sexualidade, elas passaram a se interessar. E o que rendeu isso? Vou ilustrar a situação em que colocamos as crianças com dois casos simples.

No primeiro, um garoto de 11 anos, filho de um casal conhecido, pediu para falar comigo em particular e contou que acessara sites contendo fotografias de adultos em posições sexuais das mais esdrúxulas possíveis, e que guardara essas fotos em um pen drive. A dúvida dele, que colocou para eu resolver, foi simples: “E agora, o que eu faço com isso?”. Resolvi de maneira simples também: disse a ele que me desse o pen drive que eu guardaria para ele até que crescesse, o que ele atendeu prontamente.

No segundo caso, a mãe de uma menina de 9 anos descobriu, no celular da filha, que uma das buscas que ela havia feito era: “pessoas transando”. Se você é adulto, faça essa busca: vai se assustar com as imagens que irão surgir em sua tela ao pensar que crianças podem ver isso.

Há como mudar esse panorama para crianças? Cada família pode procurar proteger a infância dos filhos evitando, por exemplo, dar a eles um celular com internet para uso autônomo. Criança pode usar celular com internet? Pode! Com a tutela direta dos pais. E como fazer isso se o aparelho for dela? Quase impossível. Então, que tal permitir que os filhos usem o aparelho dos pais até ter um pouco mais de maturidade para lidar com isso?

Texto de Rosely Sayão, psicóloga, n'O Estado de S.Paulo de 01 de dezembro de 2019
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,crianca-e-celular,70003109138