Crise de saúde embaralhou clima de divisão
O flá-flu que já deu as caras na forma de "coxinhas x mortadelas" e "bolsominions x petralhas" vestiu nova máscara na pandemia do coronavírus, com uma divisão agora colocada entre "cloroquiners" e "quarenteners". As visões divergentes sobre o combate à crise reinventam a polarização política e adicionam ingredientes inéditos.
Por essa classificação (que pega emprestado do inglês o sufixo "er", neste caso dando a conotação de apoiador ou adepto), os partidários da cloroquina são aqueles que estão fechados com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Eles superdimensionam o papel do medicamento usado no tratamento da Covid-19, ainda sob testes, e fazem pirraça diante da quarentena.
No outro grupo, que defende aguerridamente o isolamento social, o remédio é visto com reservas. Na dicotomia entre economia e vidas humanas, a parcela acha que a segunda opção é soberana.
É também a ala dos paneleiros, que batucam nas janelas para ressoar seu descontentamento com o que consideram irresponsabilidade de Bolsonaro na condução da calamidade.
Para além das disputas de gabinete, a cisão se espalhou rápido em um ambiente que já era marcado por rachas na sociedade.
Se os "cloroquiners" emergem como um grupo mais coeso, com eleitores do núcleo duro do bolsonarismo, os "quarenteners" são mais diversos..
É uma contraposição entre gente sensata e não sensata. De esquerda e também de direita. Uma coisa não inviabiliza a outra.
A polarização em torno da doença pega fogo nas redes sociais, com provocações de parte a parte. "Cloroquiners", ora também chamados de negacionistas, perguntam se os defensores do isolamento estão dispostos a pagar com os próprios empregos, dadas as consequências econômicas.
"Quarenteners" não perdem a chance de alfinetar a cada notícia de estudo científico que atesta ainda não haver dados confiáveis sobre medicamentos e vacinas.
Argumentam que o discurso sobre uma hipotética "poção mágica" pode desmobilizar o recolhimento das pessoas em suas casas, ocasionando um indesejado pico de casos.
Não se trata de má vontade com o medicamento. Seria mais uma cautela baseada em evidências apresentadas por cientistas e médicos a quem dedicam frequentemente posts de homenagem e aplausos nas sacadas.
Nas redes há ainda relatos de simpatizantes de Bolsonaro pregando que eleitores do PT abram mão de auxílios emergenciais do governo. Sobram também piadas na linha: "Bolsonarista que descumprir isolamento deve se comprometer a dispensar leito no SUS caso fique doente".
Fora do ambiente virtual, a cisma pode se apresentar em detalhes da rotina de confinamento, como uma troca de olhares nada amistosos no elevador quando um típico "quarentener" (muito possivelmente de máscara) encontra o vizinho "cloroquiner" saindo à rua sem necessidade.
Dias atrás, o Copan, edifício no centro de São Paulo povoado por simpatizantes da esquerda, despejou vaias sobre carreata de apoiadores de Bolsonaro que reivindicavam a reabertura do comércio.
Para o professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o presidente deu verniz político-eleitoral a "uma questão que é eminentemente de saúde, técnica" ao comprar briga com governadores e com seu ministro.
"Isso é perigoso. Essa animosidade que se desdobrou até chegar à população não ajuda o país a se unir e enfrentar o problema", afirma.
O próprio Ceneviva lançou mão dos rótulos da nova ordem, dia desses, ao tuitar notícia de que o Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos EUA recuou na posição sobre a eficácia da cloroquina.
"Cadê os cloroquiners agora para acusarem os EUA e o presidente Trump de comunistas?", escreveu. À reportagem o docente explicou que se permite uma linguagem mais informal no Twitter.
Reportagem de Joelmir Tavares na FSP de 15/04/2020
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/guerra-entre-cloroquiners-e-quarenteners-reinventa-polarizacao-na-pandemia.shtml