segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O caso Mariana Ferrer

Acusado de estuprar Mariana Ferrer é absolvido, gera revolta e levanta debate sobre como a violência sexual contra a mulher é tratada na Justiça


A influenciadora Mariana Ferrer relata ter sido dopada e estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha em 15 de dezembro de 2018; O acusado foi indiciado por estupro de vulnerável e absolvido na última quarta-feira (9)

Desde a noite da última quarta-feira (09), o nome de Mariana Ferrer está entre os assuntos mais comentados do Twitter. O motivo é a absolvição pela Justiça do empresário André de Camargo Aranha, a quem a influenciadora acusa de tê-la estuprado em 15 de dezembro de 2018, durante uma festa no famoso Café de La Musique, onde trabalhava como embaixadora, em Florianópolis, Santa Catarina.

O caso veio a público quando a blogueira compartilhou um relato em suas redes sociais, em maio do ano passado. Ela não poupou detalhes, divulgando um vídeo do circuito de segurança em que aparece entrando e saindo do local onde teria sido violentada, prints de mensagens e áudios que enviou a amigas pedindo ajuda e uma foto do vestido que usava naquela noite, manchado de sangue. Ela relata ter sido dopada e diz lembrar apenas de flashes do ocorrido, o que fez com que André fosse indiciado por estupro de vulnerável.

A blogueira contou ainda que registrou boletim de ocorrência e fez exame de corpo delito no dia seguinte ao ocorrido — onde relata ter sido atendida somente por homens — e publicou prints do laudo pericial que confirmou a presença de sêmen na calcinha que usava. Um exame posterior constatou que o esperma encontrado era compatível com o DNA do empresário paulistano, que chegou a afirmar que nunca tinha tido contato físico com ela.

Ao longo do processo, Mariana disse que fotos suas foram manipuladas pela defesa do acusado para desacreditá-la e afirmou que via "clara obstrução das provas e favorecimento do denunciado e dos envolvidos no crime" pela Justiça. Suas denúncias ganharam apoio nas redes sociais, com centenas de usuários publicando a hashtag #justicapormariferrer. No mês passado, a conta da blogueira foi derrubada do Instagram.

Em sentença publicada nesta quarta-feira (9), o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, absolveu André Camargo Aranha. O magistrado acolheu os argumentos da defesa do empresário, liderada pelo advogado criminalista Claudio Gastão da Rosa Filho, e a própria posição do Ministério Público de Santa Catarina, que se manifestou nos autos pela absolvição do réu pela "ausência de provas contundentes para corroborar a versão acusatória".

A decisão gerou revolta entre os apoiadores de Mariana e levantou um debate sobre como o crime de estupro é tratado pela Justiça brasileira.

Incoerências no processo

A assistência de acusação, que representa Mariana Ferrer no processo, falou com exclusividade à CELINA em uma entrevista realizada pelo telefone nesta quinta-feira (10). Para a advogada Jackie Anacleto, o posicionamento do MPSC foi contraditório:

— O MP foi incoerente porque não deu peso para o depoimento da vítima. Mariana afirmou que não queria ter relacionamento sexual com o André Aranha. No entanto, eles acreditam que o ato foi consentido. As provas, desde o início, mostram o contrário. No processo penal, não se pode usar uma prova isolada, mas o MP fez isso com o vídeo. Existe o áudio que ela manda para as amigas e para a mãe no Uber reforçando que foi violentada. Na manifestação sobre a absolvição que o juiz cita “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”, definitivamente não diz respeito ao caso da Ferrer. Não condená-lo é pelo privilégio social e financeiro. Se fosse uma pessoa com menos recursos, teria sido diferente — diz.

A advogada aponta incoerências durante o processo e constrangimentos sofridos pela influenciadora digital. Ela informa que vai haver o recurso de apelação da sentença:

— A Mariana foi dopada. As drogas do sexo possuem complexidade e o exame toxicológico foi divulgado com um lapso temporal — afirma Anacleto, explicando que o exame foi feito em dezembro de 2018 e o resultado divulgado em abril de 2019.

— Além da inconsistência no exame, foi comprovada o rompimento himenal e material genético do empresário nas roupas da vítima. Durante o processo, a defesa do acusado tentou deslegitimar a vítima apresentando fotos dela com decotes e biquínis. Em uma delas, a foto estava manipulada, como se a Mariana estivesse sem blusa, quando na verdade estava de biquíni. Na hora do interrogatório, no final de julho, o advogado da defesa de Aranha, Cláudio Gastão, zombava do fato de Mariana ser virgem. Na sala, só tinham promotores, juízes e defensores públicos homens, o que influenciou o processo — diz.

A defesa do réu e o MP comentaram o caso por meio de nota (leia mais abaixo).

MP se manifestou pela absolvição

A absolvição determinada pelo juiz nesta semana seguiu a posição do próprio Ministério Público. Quando uma denúncia de estupro é registrada na polícia e o inquérito é enviado ao MP, cabe a este órgão apresentar ou não uma ação, pois se trata de uma ação penal pública incondicionada. Ou seja, o MP é o titular da ação. Quando recebeu o inquérito, o MP de Santa Catarina decidiu propor a ação do caso de Mariana, mas ao final do processo, se manifestou pela absolvição.

— Isso não é comum, mas acontece. O MP que apresenta a denúncia, é o titular da ação penal. Mas pode, ao final do processo, se convencer que as provas coletadas em juízo não foram suficientes e aí pede a absolvição — explica a advogada criminal Clara Masiero, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Para a advogada Marina Ganzarolli, que atua em casos de violência contra mulher há mais de 13 anos e é uma das idealizadoras do #MeTooBrasil, esse tipo de conduta do MP é mais comum nos crimes de violência sexual contra a mulher:

— Essa atitude não é comum. No entanto, quando se trata dos crimes contra a dignidade sexual, é recorrente tanto a remissão quanto o arquivamento dos casos. Tem uma série de provas que colaboram com a condenação do acusado no caso Mari Ferrer. A seletividade do sistema penal e o baixíssimo nível de condenações em crimes contra a dignidade sexual são os problemas estruturais. A palavra da vítima tem menor valor para o judiciário — ressalta.

Em nota, o promotor Thiago Carriço de Oliveira, responsável pela manifestação nos autos, afirmou que o MP apresentou a denúncia para buscar a formação de elementos de prova em juízo."Diversas testemunhas foram ouvidas, tendo sido examinado todo material apreendido na casa do acusado, como aparelhos de celular, tablets, computadores, sendo realizadas também perícias, exames de DNA, exames toxicológicos e filmagens em ambientes públicos e privados", disse.

Após analisar todos os elementos, o promotor afirma que não descarta a hipótese de inconsciência alegada por Mariana. "Todavia, os exames toxicológico e de alcoolemia testaram negativo no dia seguinte ao fato. Do mesmo modo, não se identificou nos autos nenhuma prova indicando que o acusado tivesse oferecido ou ministrado bebida ou droga para a vítima. Não há uma testemunha, imagem ou indício neste sentido."

"Do mesmo modo, não foram constatados elementos que comprovassem que o acusado tinha conhecimento da suposta inconsciência da vítima. A prova produzida não permitiu confirmar de maneira segura e incontestável que o acusado teria agido com dolo de estuprar a vítima", disse o promotor, afirmando que "todas as manifestações de inconsciência ou recusa da vítima são posteriores ao fato."

"Pelo que indica a investigação, com base nas provas materiais, exames, perícias e testemunhos, o que poderia ter ocorrido seria a possibilidade daquilo que a lei enquadra como 'erro de tipo essencial', ou seja, o acusado teria se envolvido sim com a vítima, mas sem a intenção ou consciência de que seu ato seria um crime e também não teria como saber, neste caso específico, se ela poderia estar sob efeito de droga ou embriagada, a ponto de não ter discernimento sobre os seus atos."

A pedido da reportagem, a advogada Clara Masiero analisou o posicionamento do MP. Não foi possível ter acesso aos autos ou à sentença completa, porque o processo corre em segredo de Justiça.

— Sem acesso aos autos, o que parece é que o MP não descartou que ela estivesse inconsciente, mas entendeu que não houve prova suficiente de que o acusado sabia disso. E isso precisava ser provado para que houvesse a condenação por estupro de vulnerável. A Justiça só vai punir um crime penal grave como esse se tiver a prova inconteste de que ele agiu de forma reprovável. Se não foi possível provar que houve essa intenção, a Justiça não pode punir — explica.

Em nota, o advogado do réu, Claudio Gastão da Rosa Filho, reforçou a posição do MP:
"O Ministério Público reuniu centenas de provas, dez depoimentos de testemunhas, incluindo oito mulheres, vários exames periciais e todas as evidências mostraram que não houve estupro. Por essa razão, o MP pediu a absolvição, no que foi seguido pelo juiz. Suas afirmações a respeito de um alegado estupro e supostas consequências ocorreram apenas nas redes sociais. Em seu depoimento ao juiz, Mariana diz que não se lembra o que aconteceu. Esse episódio, contaminado por mentiras, impacta negativamente na luta pela dignidade das mulheres. Mariana prestou um desserviço a todos."

O crime de estupro no Brasil

O crime de estupro tem pena de 6 a 10 anos de reclusão. Se for estupro de vulnerável, de 8 a 15 anos. Não há dados nacionais oficialmente compilados que demonstrem quantos casos terminaram com a condenação ou prisão do acusado. Mas há evidências de que poucos casos de fato chegam ao sistema de Justiça. Ao decidir registrar uma denúncia na polícia, Mariana foi uma exceção.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 66.041 casos de estupro foram registrados em 2018 (dado mais recente disponível). Um estudo feito pelo Ipea em 2014, com base nos dados do sistema de saúde, estimou que ocorrem anualmente 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país, dos quais somente 10% são reportados à polícia.

Considerando as estimativas de ocorrência e o número de notificações dos estupros no Brasil, o perito criminal e presidente da Academia Brasileira de Ciências Forenses, Hélio Buchmüller, estimou, em um artigo publicado em 2016, que apenas 1% dos crimes de estupro seriam punidos no país.

Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) referentes ao segundo semestre de 2019, apenas 0,18% das pessoas encarceradas no país respondem por crimes contra a dignidade sexual. Entre os crimes hediondos e equiparados, apenas 2,98% respondem por estupro.

— O que dá para se afirmar é que o crime de estupro, pela forma como ele ocorre, é um crime de difícil produção probatória. É claro que depende muito do contexto. Mas se não tem marca da violência, perícia que comprove a violência sofrida, testemunhas, ou se a palavra da vítima não tem nenhum outro tipo de corroboração, é, de fato, um crime mais difícil de ser demonstrado — afirma a advogada criminalista Clara Masiero.

— Há também uma construção histórica da sociedade que é o julgamento que se faz sobre essa vítima. Existe uma dificuldade em denunciar por causa disso. Há um senso comum de que algumas mulheres, as mulheres “honestas”, como se dizia antigamente, podem ser estupradas, e outras, que não cabem nesse perfil, não — completa a pesquisadora.

Na opinião da advogada Marina Ganzarolli, o caso de Mariana Ferrer destaca os obstáculos no judiciário brasileiro no debate sobre o estupro no país.

— A violência sexual não atingiu uma compreensão de que é um problema de segurança e saúde pública e de todos. A desqualificação da palavra da vítima está penetrada em uma sociedade com dominação machista e patriarcal. Não à toa os casos de violência sexual são subnotificados — diz.

Para Ganzarolli, é é fundamental que o sistema penal atue integrando táticas de enfrentamento à violência contra mulher:

— A agressão sexual, de forma majoritária, é feita entre quatro paredes. É a palavra da vítima contra a do agressor. O relato da Mariana é o que se espera. Não é consistente. É um discurso traumático. Se o promotor ou juiz não estão formados para o enfrentamento à violência baseada no gênero e formados a neurobiologia do trauma, tendemos a irresponsabilidade — completa Marina, que reflete sobre o estigma atribuído às sobreviventes de violência sexual: — Além disso, temos o problema da compreensão do judiciário brasileiro sobre o que é consentimento. Não é porque a mulher não gritou que ela disse sim. Nesse sentido, a revitimização causa mais trauma do que o próprio evento— diz.

Reportagem de Leda Antunes e Gabriela Oliva no blog Celina d'O Globo

https://oglobo.globo.com/celina/acusado-de-estuprar-mariana-ferrer-absolvido-gera-revolta-levanta-debate-sobre-como-violencia-sexual-contra-mulher-tratada-na-justica-24633120

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