Todos os dias, em ocasiões distintas, as consequências de não ter recebido uma das doses da vacina que evitaria minha contaminação pelo vírus da poliomielite têm um papo com minha consciência, com meu futuro e com minhas emoções.
Não tome você uma vacina, qualquer, não dê a seus filhos a proteção descoberta e trabalhada pela ciência e ganhe para sempre a ausência de um sossego, às vezes, atormentador, chamado refletir a respeito do “e se”.
E se eu pudesse correr, como seriam meus cabelos e como andaria a minha pressa? E se eu pudesse jogar minha filha para o alto, como seria a risada de nós dois? E se eu pudesse ter amado alguém num canto, num encanto de ondas, numa cabana lá longe, no teto ao luar, meu coração teria outra batida, minhas inquietações seriam mais bem assistidas?
Ter contraído paralisia infantil de maneira severa e bastante incapacitante, a ponto de me limitar o andar por toda a existência, fez de mim uma pessoa que, também para sempre, cultivaria a prática de pensar a respeito de como seria uma outra vida possível.
Não tome vacinas e flerte com o risco de ter um corpo desencontrado, por dentro e por fora, daquilo que é a referência de quase todos ao seu redor. Não há pecado nem nada de muito errado nisso, mas prepare-se para ter muita energia e muita companhia para praticar o “eu me amo, eu me gosto, eu sou feliz assim”.
Preciso concordar com o presidente Bolsonaro quando ele diz que ninguém pode ser obrigado a jogar para dentro do próprio organismo um avanço humano que tente garantir-lhe que não sofra dores lancinantes, não passe grande tempo de sua existência tentando amenizar sequelas, não conviva com um tormento mental por seu corpo não responder adequadamente à sua mente.
Preciso concordar que ninguém é obrigado a se vacinar por ser isso também um ato fraterno, um ato de compaixão com os mais vulneráveis, mais expostos, mais dispostos à ação dos organismos desestabilizantes.
Não vacinar, no caso do coronavírus, pode ser atentar contra a própria vida, mas e daí? Se a gente não obrigar as pessoas a se vacinarem, também ninguém vai ter de se preocupar em saber como os pobres irão se imunizar, como a vacina irá chegar aos ermos —foi em um ermo que fui abatido—, como proteger os velhos, os indefesos, os ingênuos, os desprotegidos…
Cada um tem de ter o poder de saber o que é melhor para si, mesmo aqueles cujo “si” se harmoniza, se protege e se resguarda com o “nós”. Tudo tão reluzente, tudo tão livre, tudo tão triste.
Não tome vacina para colaborar com o recrudescimento do climinha egoísta, arrogante e intolerante do mundo.
Esse climinha que faz a quem guarda algum tipo de diferença– física, sensorial, intelectual, de gênero, de tonalidade– penar um pouquinho mais para ser gente.
Direitos individuais não podem jamais se sobrepor ao princípio nato do “serumano” de agir diante da fatalidade alheia, de tentar estender a mão a quem se afoga, de acalorar aquele que treme.
O que a gente faz pelo outro, a ciência já demonstrou, catapulta o cérebro, faz apaziguar a alma e as angústias, engrandece o caminho.
O planeta está em uma situação de desespero extremo, em via de enfrentar novos cenários de um desastre humano em todos os cantos.
Elixires com o potencial de evitar novas ondas de tristeza profunda e devastação mental estão em curso e são promissores. Tomar vacina é opção. Eu não tive. Use bem a sua.
O texto do jornalista Jairo Marques, que é cadeirante desde a infância, está na Folha de São Paulo de 11/11/2020
https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2020/11/10/nao-tome-vacina/
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