Enzo, Larissa, Bernardo...
Não há como limitar o uso de armas brancas. O problema está na motivação por trás da mão que ataca, não naquilo que a mão carrega
Na manhã da última quarta-feira, Bernardo, de 4 anos, se espreguiçou na cama pela última vez. Enzo, também de 4 anos, vestiu pela última vez o uniforme. Outro Bernardo, de 5, tomou seu último café da manhã. Larissa, de 7, se penteou — e foi a última vez que se viu no espelho.
Todos eram filhos únicos. E que filho não é único?
Dali a pouco estariam mortos, diante de outras crianças feridas, em choque, e de professoras atônitas.
Essa deveria ser a notícia. Esses, os nomes a ser lembrados.
Mas há outro personagem — que também se espreguiçou pela manhã, se vestiu, deve ter tomado café e se olhado no espelho. E que continuará a fazer isso todos os dias. Por algum tempo, dentro de uma cela; logo, muito antes que Larissa, Enzo e os xarás Bernardos pudessem saber o que é estar apaixonado e ter sofrido a primeira dor de amor, esse personagem estará de volta às mesmas ruas que Enzo, Bernardos e Larissa nunca mais pisarão.
Sete anos antes da manhã em que se armou e ligou a motocicleta, o sem nome foi preso por uma briga. Dois anos antes de pular o muro da creche, esfaqueou o padrasto. Nove meses antes de caminhar por entre os balanços e escorregadores, havia sido detido por posse de cocaína. Quatro meses antes de se lançar sobre nove crianças, a vítima de seus golpes fora um cachorro.
Em pelo menos quatro oportunidades, poderia ter sido afastado temporariamente da sociedade. Tratado, se sofresse de algum transtorno. Reeducado, em caso de desajuste. Acolhido, se vítima de um histórico de abandono. Sabe-se lá quantas vezes terá dado sinais de comportamento agressivo. E quantas chances de evitar que sua violência atingisse Bernardos, Larissa e Enzo foram perdidas.
Os meios de comunicação que levam o jornalismo a sério tornaram mais cuidadosa a divulgação desse tipo de crime. Não há fotos do assassino. Seu nome nem sequer é mencionado. Ao contrário da notoriedade que certamente almeja, terá a ignomínia — a perda do nome, o anonimato.
A cada atentado — em Caraí, Ipaussu, Medianeira, Morro do Chapéu, Janaúba, Santa Rita, São Caetano do Sul, Rio de Janeiro — debate-se o (urgente, necessário) controle de armas de fogo. Mas não há como limitar o uso de armas brancas, paus, pedras, álcool, fósforos. O problema está na motivação por trás da mão que ataca, não naquilo que a mão carrega. Está na indiferença de parentes e amigos diante dos alertas, na inoperância da polícia, na leniência da Justiça, na inexistência de um sistema eficiente de saúde mental, na falência do Estado em prover educação, segurança, assistência social.
Cada tragédia como esta — em Blumenau, São Paulo, Aracruz, Barreiras, Saudades, Suzano, Goiânia — é pretexto para que se retome a rinha politiqueira, a troca oportunista de acusações (“Faz arminha!”, “Faz o L!”). Como se a defesa da vida, a condenação da impunidade, a proteção ao cidadão fossem monopólio deste ou daquele partido.
Quem perde pai ou mãe torna-se órfão. Não há palavra para designar quem perde o filho. Desde quarta-feira, o Brasil tem os órfãos reversos de Enzo, Bernardo, Larissa — como já tinha os de Selena, Juan Pablo, Ana Clara, Kaio, João Pedro, Sarah, Anna Bela, Samira...
E mais um assassino inominável. Que em breve será outra prova viva da cegueira da Justiça.
Texto de Eduardo Affonso n'O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/eduardo-affonso/coluna/2023/04/enzo-larissa-bernardo.ghtml
sábado, 8 de abril de 2023
sexta-feira, 7 de abril de 2023
Blumenau e outros ataques a escolas: por que casos se repetem?
1. Avanço da intolerância e valorização da ‘cultura da violência’
2. Crescimento e radicalização de grupos de ódio na internet
3. Distanciamento nas relações e enfraquecimento do afeto
4. Piora da saúde mental da sociedade
5. A importância do efeito contágio
Estadão ouviu cinco estudiosos para entender que tipos de fenômenos e tendências podem funcionar como gatilhos ou potencializadores de atos violentos como os registrados em Blumenau
Embora cada ataque trágico ocorrido em uma escola tenha por trás uma história e perfil específicos do agressor, especialistas são unânimes em dizer que fatores sociais e culturais existentes atualmente na sociedade brasileira podem estar relacionados ao aumento de ocorrências do tipo no País. O Estadão ouviu cinco estudiosos para entender que tipos de fenômenos e tendências podem funcionar como gatilhos ou potencializadores de atos violentos como os registrados em Blumenau e de que forma a sociedade deve se organizar para reduzir esses fatores de risco e diminuir o risco de novas tragédias.
1. Avanço da intolerância e valorização da ‘cultura da violência’
O cenário social e político brasileiro, com crescente intolerância e polarização, funciona como um incentivador para atos violentos de todos os tipos, em especial para pessoas com algum histórico ou predisposição a esse tipo de conduta, segundo especialistas. Esses reconhecem que, embora o País tenha historicamente altos índices de violência e ataques contra minorias, os últimos anos foram marcados por um movimento crescente, visto principalmente na política, de polarização, intolerância e extremismo.
”Estamos em um País que tem os maiores índices de violência no trânsito, contra mulheres, contra minorias, contra pessoas trans. Somos uma sociedade violenta e ela está mais intolerante e polarizada. A polarização e a intolerância são ingredientes de uma cultura beligerante, de hostilidade, de extermínio do inimigo. Isso tudo alimenta mais violência”, afirma o psiquiatra Daniel Martins de Barros, colunista do Estadão.
Para Thiago Fernando da Silva, psiquiatra forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC) da USP, o cenário se agravou nos últimos anos porque a “cultura da violência passou a ser glamourizada”, com mais discursos de intolerância, menos espaço para resolução de conflitos de forma amistosa e incentivo a políticas públicas de maior acesso a armas. “Essa era uma cultura que associávamos aos Estados Unidos, mas passou a estar presente também no Brasil de maneira intensa. Isso cria um impacto muito grande em indivíduos vulneráveis que, por diversos motivos, têm um funcionamento mental mais frágil na questão
da influência”, diz.
2. Crescimento e radicalização de grupos de ódio na internet
Na esteira do avanço da intolerância e da polarização e com a ampliação do acesso a ferramentas tecnológicas, até mesmo por parte de crianças e adolescentes, cresceram também grupos extremistas que se articulam sobretudo pelas redes sociais e ganham potência e escala graças a esse alcance dado pela internet. “Temos há algum tempo o extremismo e o discurso de ódio, com a desumanização de outros grupos sociais e discursos supremacistas. Só que isso chegou ao debate público, o extremismo veio para o mainstream porque houve uma normalização dos discursos nocivos. Isso vai levando mais pessoas para o extremo”, diz Michele Prado, pesquisadora do grupo Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade de São Paulo (USP).
Temos há algum tempo o extremismo e o discurso de ódio, com a desumanização de outros grupos sociais e discursos supremacistas. Só que isso chegou ao debate público, o extremismo veio para o mainstream porque houve uma normalização dos discursos nocivos
Michele Prado, pesquisadora do grupo Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade de São Paulo
Ela lembra que, com o isolamento imposto pelos dois anos mais intensos da pandemia da covid-19, as pessoas, em especial crianças e adolescentes, se voltaram mais para as interações sociais virtuais e ficaram mais expostas a esses conteúdos extremistas. “Temos crianças a partir de 10 anos recebendo isso em grupos do TikTok, Twitter, Discord”, diz.
As narrativas são especialmente perigosas para os mais jovens porque eles ainda não completaram seu desenvolvimento psíquico e emocional e são mais suscetíveis à influência de pares. “Nessas comunidades de ódio, essas ideias têm eco, esses participantes se influenciam reciprocamente”, diz Silva, do IPq-HC.
Segundo Gustavo Estanislau, psiquiatra da infância e adolescência do Instituto Ame Sua Mente, o adolescente, pela imaturidade emocional e em especial se já tiver transtornos mentais ou conflitos familiares, pode mudar seu comportamento ao acompanhar esses grupos. “Quando está nesse conjunto, a pessoa pode dissolver sua personalidade no grupo, passar a ser mais hostil, impulsiva, reativa. Por isso é importante que os pais e educadores mantenham o diálogo, as relações saudáveis e monitorem o que os jovens fazem na internet.”
3. Distanciamento nas relações e enfraquecimento do afeto
O aumento de comportamentos violentos, do isolamento e da intolerância entre alguns jovens tem, como pano de fundo, em alguns casos, um distanciamento e superficialismo nas relações, até mesmo familiares. Para o psicólogo Timoteo Madaleno Vieira, professor de psicologia e educação do Instituto Federal de Goiás (IFG), vivemos um período de transição entre uma sociedade mais tradicional para um cenário de maior liberdade e priorização das demandas e desejos individuais.
Nesse contexto, porém, o afeto e o cuidado com o outro podem se perder, levando ao aumento de sentimentos como abandono, rejeição e solidão. “Nos distanciamos uns dos outros. Os pais se distanciam dos filhos, eles passam mais tempo sozinhos. Os pais ficam preocupados com isso, mas, ao mesmo tempo, gera conforto para eles poderem fazer as coisas deles, porque o filho demanda muito, dá trabalho. Essa proximidade afetiva está em baixa. E um mundo sem afeto é um mundo doente porque não consegue pensar no outro e no valor que ele tem”, diz o especialista.
Nos distanciamos uns dos outros. Os pais se distanciam dos filhos, eles passam mais tempo sozinhos. Os pais ficam preocupados com isso, mas, ao mesmo tempo, gera conforto para eles poderem fazer as coisas deles, porque o filho demanda muito, dá trabalho
Timoteo Madaleno Vieira, professor de psicologia e educação do Instituto Federal de Goiás (IFG)
“Nosso processo de desenvolvimento é modulado pela visão do outro, a gente se constitui a partir disso e há esse desgaste nas relações sociais e familiares. Com isso, as redes sociais acabam sendo um refúgio”, afirma Silva.
4. Piora da saúde mental da sociedade
Os prejuízos trazidos pela pandemia e o empobrecimento das relações afetivas são dois fatores que pioraram a saúde mental geral da população, com aumento de transtornos mentais e comportamentos problemáticos que podem levar a atos violentos. ”Temos dados concretos de que os estados de alerta associados à pandemia elevaram os níveis de estresse, aumentaram as queixas de depressão e ansiedade e levaram especialmente os jovens a agirem de forma mais impulsiva e agressiva”, diz Estanislau.
Temos dados concretos de que os estados de alerta associados à pandemia elevaram os níveis de estresse, aumentaram as queixas de depressão e ansiedade e levaram especialmente os jovens a agirem de forma mais impulsiva e agressiva
Gustavo Estanislau, psiquiatra da infância e adolescência do Instituto Ame Sua Mente
Os especialistas alertam que o uso excessivo de redes sociais aumenta a ansiedade e pode gerar frustrações pelo não alcance dos padrões de beleza e sucesso impostos por algumas publicações. “Os mais jovens estão com o cérebro em formação. Os pais têm de tomar cuidado com o conteúdo que está sendo consumido, precisam estar juntos no processo de desenvolvimento Um dos melhores marcadores de saúde mental é o desenvolvimento de relações sociais saudáveis”, afirma Silva. Ele defende ser necessário maior regulamentação por parte das plataformas tecnológicas quanto ao conteúdo disseminado nas redes.
5. A importância do efeito contágio
Um último aspecto trazido pelos especialistas como possível influenciador do aumento de ataques a escolas é o chamado efeito contágio, ou seja, um crescimento de atos violentos motivados por outros crimes similares cometidos num período recente. No contexto atual, de ampla e rápida disseminação dos ataques por meio da imprensa e redes sociais, a forma com que os casos são retratados pode levar outras pessoas já vulneráveis ou integrantes de grupos extremistas a se inspirarem e repetirem essa conduta.
”Dependendo de como o fato é divulgado, um indivíduo com um perfil de empatia menos desenvolvido pode se sentir validado por esse tipo de comportamento”, diz Estanislau. Para Silva, um dos fatores que influenciam outros casos similares é justamente a glamourização da violência por pessoas já predispostas a esses tipos de atos. “Esses indivíduos querem ser vistos, querem aparecer no jornal, na mídia. Uma maneira de fazer prevenção é noticiar o fato de maneira mais controlada, evitar imagens dos ataques e do autor”, afirma.
NOTA DA REDAÇÃO: O Estadão decidiu não publicar foto, vídeo, nome ou outras informações sobre o autor do ataque, embora ele seja maior de idade. Essa decisão segue recomendações de estudiosos em comunicação e violência. Pesquisas mostram que essa exposição pode levar a um efeito de contágio, de valorização e de estímulo do ato de violência em indivíduos e comunidades de ódio, o que resulta em novos casos. A visibilidade dos agressores é considerada como um “troféu” dentro dessas redes. Pelo mesmo motivo, também não foram divulgados vídeos do ataque em uma escola estadual na Vila Sônia, zona oeste de São Paulo, no último dia 27 de março.
Reportagem de Fabiana Cambricoli n'O Estado de São Paulo
https://www.estadao.com.br/educacao/blumenau-e-outros-ataques-a-escolas-por-que-casos-se-repetem-especialistas-listam-5-razoes/
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