segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Leite faz mal?

Quem não conhece alguém que resolveu parar de tomar leite ou de consumir laticínios porque achou que fazia mal?

O mercado de produtos sem lactose, ou de supostos “substitutos” como leite de amêndoas ou de arroz, vem crescendo e conquistando adeptos que talvez não saibam que estes produtos, além de desnecessários para a maioria das pessoas, não são substitutos nutricionais do leite. A intolerância a lactose é uma condição real, mas muito menos comum do que o marketing sugere, principalmente em populações ocidentais.


E por que existem pessoas que não conseguem digerir lactose? Na verdade, talvez a pergunta devesse ser o contrário: por que existem adultos que conseguem? A lactose é um açúcar presente no leite e requer uma enzima especial, chamada lactase, para ser digerida. Mamíferos em geral nascem bem equipados, com lactase e também com bactérias que ajudam no serviço, mas vão perdendo esta capacidade à medida que se tornam adultos. Isso acontece quando uma proteína reguladora “desliga” o gene da lactase, como se estivesse sinalizando que o animal já cresceu e pode desmamar. O que é diferente em humanos?

Parece que neste caso, a evolução fez uma “gambiarra”. Mais ou menos 7.500 anos atrás, quando começamos a domesticar animais que produzem leite, surgiu uma mutação que impede o desligamento do gene da lactase, que então se mantém ativo durante toda a vida. Isso pode ter sido vantajoso por uma série de motivos. A possibilidade de digerir leite pode ter aumentado as chances de sobrevivência em tempos de seca e pouca colheita, pode ter aumentado a taxa de fertilidade, ao diminuir o tempo necessário para o desmame das crianças, liberando a mãe para engravidar novamente. Pode ter reduzido infecções causadas por água contaminada, já que o leite é uma fonte alternativa de hidratação. Pode ter permitido uma maior diversidade de bactérias no intestino, trazendo outras vantagens. Quaisquer que sejam as causas, o fato é o que o gene foi selecionado e se espalhou pela Europa, onde a criação de animais para produção de leite e derivados era uma tradição.

Já na Ásia, onde a domesticação de animais de ordenha não era tão popular, não houve pressão seletiva para favorecer esta mutação. Não por acaso, o continente concentra a maior parte da população mundial que é realmente intolerante à lactose.

Embora o número de pessoas no mundo que de fato sofre com intolerância a lactose sejam considerável, o mercado de alternativas ao leite tenta vender a ideia de que nenhum ser humano adulto deveria consumir leite porque nenhum outro mamífero adulto consome e portanto, “não evoluímos para isso”. Curiosamente, os humanos capazes de digerir lactose só conseguem fazer isso justamente por causa da evolução, processo que não é dirigido: nenhuma espécie evolui “para isso” ou “para aquilo”, a evolução acontece ao acaso ou em resposta à pressão seletiva. Ao contrário do discurso pseudocientífico, que evolui para bater a carteira dos desavisados.

Texto de Natalia Pasternak, microbiologista, presidente do IQC, professora na Universidade de Columbia (EUA) e FGV-SP e autora dos livros Ciência no Cotidiano e Contra a Realidade n'O Globo

https://oglobo.globo.com/blogs/a-hora-da-ciencia/post/2023/08/leite-faz-mal.ghtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário