Ultraprocessados são ligados a 32 doenças em análise de quase 10 milhões de pessoas
Revisão de 45 estudos sobre o tema encontrou evidências consistentes de um risco aumentado para morte por doenças cardiovasculares, transtornos mentais e diabetes tipo 2
Alternativas altamente palatáveis e práticas, que se tornam atrativas dentro de rotinas com pouco tempo livre, os alimentos ultraprocessados, como refeições prontas, salgadinhos, biscoitos e refrigerantes, têm sido alvo crescente de estudos que buscam avaliar o impacto de seu baixo teor nutricional na saúde humana. Agora, uma nova revisão de 45 trabalhos feitos sobre o tema, publicada nesta quarta-feira na revista científica The BMJ, mostra que existe uma associação entre as comidas e um risco aumentado para 32 agravos de saúde diferentes.
A publicação é chamada de “guarda-chuva” por ser uma análise conjunta de outras revisões já feitas sobre o tema. Por isso, é considerada um dos níveis mais elevados de evidência científica observacional, agregando uma série de pesquisas e avaliando não apenas os resultados, mas a qualidade de cada uma. O trabalho foi conduzido por pesquisadores dos Estados Unidos, Austrália, França e Irlanda.
Ao todo, os estudos analisados acompanharam quase 10 milhões de indivíduos. As estimativas de exposição aos ultraprocessados foram obtidas por meio de uma combinação de registros alimentares e foram medidas como um consumo maior versus um menor, como porções adicionais por dia ou como um aumento de 10%, a depender do trabalho.
De forma mais sólida, os cientistas afirmam que há evidências convincentes de que a ingestão de alimentos ultraprocessados está associada a um risco aumentado de 50% de morte relacionada a doenças cardiovasculares; 53% de transtornos mentais comuns e 48% de ansiedade prevalente.
Dados sólidos também mostraram um risco 12% maior de diabetes tipo 2 a cada 10% de aumento dos ultraprocessados na dieta. Evidências mais fracas, porém consideradas altamente sugestivas, indicaram uma chance 20% maior de morte por qualquer causa, 55% de obesidade, 41% de problemas de sono, 40% de chiado no peito e 20% de depressão.
A revisão constatou ainda que há estudos apontando uma associação com asma, pior saúde gastrointestinal, alguns tipos de câncer e fatores de risco cardiometabólicos, como níveis elevados de gordura no sangue e baixos níveis de colesterol “bom”. No entanto, de forma menos consistente que demanda mais avaliação.
— A hipótese de que o consumo aumentado de alimentos ultraprocessados poderia ser um desencadeante da pandemia de obesidade e doenças crônicas associadas foi lançada em 2009. Desde então, a evidência de associação entre os alimentos e agravos à saúde humana a partir de estudos epidemiológicos vêm se acumulando na última década — afirma a epidemiologista Eurídice Martínez Steele, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), grupo que cunhou o termo “ultraprocessados” no Brasil e no mundo e é responsável pelo Guia Alimentar para a População Brasileira.
A nova revisão traz um alerta importante em meio ao avanço dos alimentos do tipo no cardápio da população mundial. Os pesquisadores citam no estudo que, em países de renda alta, eles chegam a representar até 42% e 58% do total de calorias consumidas por dia, caso da Austrália e dos Estados Unidos, respectivamente.
O percentual é bem acima de taxas associadas a problemas de saúde. Um trabalho da USP, por exemplo, publicado no periódico JAMA Neurology em 2022, mostrou que, após um acompanhamento médio de 8 anos, aqueles com um consumo superior a 19,9% das calorias diárias em ultraprocessados tiveram uma taxa 28% mais rápida de declínio cognitivo.
Um outro trabalho que ganhou destaque recentemente sobre o tema, publicado na The BMJ por pesquisadores espanhóis, encontrou uma ligação entre comer mais de quatro porções de produtos do tipo por dia e um risco 62% maior de mortalidade por todas as causas.
— Algo que muitos trabalham mostram é essa questão da dose. O problema maior está na quantidade, na frequência. Esse consumo de maneira exagerada, que tem sido apontado como mais de quatro porções por dia, está sem dúvidas atrelado à praticidade do dia a dia. Mas é evidente que devemos, dentro do possível, evitá-los. Só que o que observamos no mundo e no Brasil é uma tendência de aumento — avalia o médico nutrólogo e endocrinologista Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) e fellow da Obesity Society.
No Brasil, de acordo com a última edição da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), que avaliou o tema, os ultraprocessados representam 18,4% da alimentação. Em 2002/2003, esse percentual era de 12,6%. Por outro lado, a presença de alternativas in natura ou minimamente processados caiu de 53,3% para 49,5% no mesmo período.
— Estudos em vários países têm mostrado essa tendência de aumento. Os ultraprocessados são desenhados para serem altamente palatáveis e convenientes, assim como pouco perecíveis, e são fabricados com ingredientes de baixo custo com escasso valor nutritivo. No Brasil, já tendem a ser mais baratos que alimentos frescos, como carne, leite, ovos, frutas e hortaliças. A publicidade desregulada também contribui. E a ideia de comidas “práticas”, no cotidiano dos trabalhadores, é um apelo — avalia Steele.
Os 32 problemas de saúde associados a ultraprocessados:
Mortalidade por todas as causas
Mortalidade por câncer
Mortalidade por doenças cardiovasculares
Mortalidade por problemas cardíacos
Câncer de mama
Câncer (geral)
Tumores do sistema nervoso central
Leucemia linfocítica crônica
Câncer colorretal
Câncer pancreático
Câncer de próstata
Desfechos adversos relacionados ao sono
Ansiedade
Transtornos mentais comuns
Depressão
Asma
Chiado no peito
Desfechos de doenças cardiovasculares combinados
Morbidade de doenças cardiovasculares
Hipertensão
Hipertriacilgliceridemia
Colesterol HDL baixo
Doença de Crohn
Colite ulcerativa
Obesidade abdominal
Hiperglicemia
Síndrome metabólica
Doença hepática gordurosa não alcoólica
Obesidade
Excesso de peso
Sobrepeso
Diabetes tipo 2
Medidas para diminuir o consumo
Junto com o novo estudo, a The BMJ publicou um editorial de pesquisadores do Nupens/USP chamado “Razões para evitar alimentos ultraprocessados”. O núcleo é um dos que mais pesquisam o tema no mundo e defende a importância de políticas públicas para reduzir o consumo.
No texto, eles destacam que os produtos podem ser danosos para “a maioria, senão todos, os sistemas do corpo humano” e citam que a lucratividade desencoraja fabricantes a alterarem as suas formulações, por isso a necessidade de medidas do poder público.
— O Brasil e outros países da América Latina são os que mais têm avançado nesse sentido. No Brasil, por exemplo, desde 2014 que o Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda evitar o consumo de ultraprocessados. Mais recentemente, o município do Rio de Janeiro proibiu a venda dentro de escolas. A própria mudança na rotulagem de 2023 também vem levantando esse debate na população — diz Steele, uma das autoras do editorial.
Ainda assim, diz que “há muito a se fazer”. Os pesquisadores defendem restrições na publicidade dos produtos; a proibição nacional da venda dentro ou perto de escolas e hospitais e medidas fiscais, como incentivos para alimentos in natura e minimamente processados e maior tributação dos ultraprocessados.
Outro ponto apoiado pelo grupo e pelo presidente da Abran é uma nova alteração na rotulagem. Hoje, o sistema lupa diz apenas se o item possui alto teor de açúcar, gordura saturada ou sódio. Eles pedem que seja incluída uma clara identificação de que se trata de um alimento ultraprocessado.
O que são os ultraprocessados e por que eles fazem mal?
Os ultraprocessados são alimentos como refeições prontas, refrigerantes, salgadinhos, embutidos, barras de cereais, sorvetes, entre muitos outros presentes no dia a dia. Basicamente, todos que passam por múltiplos processos industriais e contêm corantes, emulsificantes, aromatizantes e outros aditivos para torná-los palatáveis.
— Esses alimentos têm uma alta disponibilidade, praticidade, são mais duráveis e têm a conveniência de serem fáceis de comer. Mas têm um alto teor de sódio, de gordura hidrogenada e saturada, grande quantidade de açúcares refinados e uma baixa quantidade de fibras, o que os torna pobres em termos nutricionais — explica Durval Ribas Filho.
Um recurso que pode ajudar a identificá-los é o aplicativo “Desrotulando”, que escaneia o código de barras dos produtos e dá uma nota de acordo com a quantidade de substâncias nocivas. Para os especialistas, essa carência nutricional nos produtos e o fato de que eles ocupam o lugar de alternativas saudáveis na dieta podem explicar os riscos para a saúde observados.
“A ingestão desses alimentos torna as dietas densas em energia, ricas em açúcar e gordura saturada e pobres em proteínas, fibras, micronutrientes e fitoquímicos protetores da saúde, como flavonoides e fitoestrogênios. Elas também contêm aditivos, incluindo corantes, emulsificantes e adoçantes, associados por evidências experimentais e epidemiológicas a desequilíbrios na microbiota intestinal e inflamação sistêmica”, diz o editorial do Nupens.
Além disso, o texto destaca que “os alimentos ultraprocessados são projetados para serem altamente desejáveis, combinando açúcar, gordura e sal para maximizar a recompensa e adicionando sabores que induzem a comer mesmo quando não se está com fome”, o que favorece o ganho de peso e o risco de obesidade.
Os pesquisadores afirmam ainda que os ultraprocessados são considerados viciantes pelos padrões estabelecidos para produtos de tabaco e por isso pedem que as agências das Nações Unidas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), e os países desenvolvam diretrizes sobre os alimentos análogas àquelas sobre o tabaco.
Reportagem de Bernardo Yoneshigue n'O Globo
https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2024/02/29/ultraprocessados-sao-ligados-a-32-doencas-em-analise-de-quase-10-milhoes-de-pessoas.ghtml