Durante séculos, queixas e doenças relatadas por pacientes do sexo feminino foram negligenciadas ou apontadas como histeria
A analista de dados Alissa Caresia Munerato tinha 19 anos quando acordou com uma falta de ar que apareceu de forma repentina. Foi até um hospital privado de São Paulo para receber atendimento e investigar a causa do problema, e ouviu do médico de plantão que o sintoma era, provavelmente, emocional. “Deve ser só nervoso porque você deve estar apaixonada”, disse o profissional à jovem.
Após horas de espera no pronto-socorro, ela só conseguiu passar por mais exames depois de reclamar com a equipe de enfermagem. Mais tarde, quando os resultados dos testes saíram, Alissa foi levada às pressas para a UTI. A falta de ar era, na verdade, o sinal de uma embolia pulmonar grave, que, se não tratada a tempo, pode matar rapidamente. Ela ficou internada por um mês para o tratamento e descobriu que tinha trombofilia, distúrbio no sangue que facilita a formação de coágulos.
“Eu podia ter entrado em parada cardiorrespiratória. Podia ter caído dura e morrido por terem subestimado meu problema, por eu não ter sido ouvida”, diz Alissa, hoje com 30 anos.
A empresária e criadora de conteúdo Dana Steinberg, de 40 anos, também ouviu muitas vezes que suas dores e cansaço incapacitantes eram coisas da sua cabeça ou invenções para justificar um “comportamento preguiçoso”. Desde criança, ela diz ter sido julgada pelos médicos. Somente aos 35 anos, recebeu o diagnóstico da síndrome de Ehlers Danlos, uma condição rara que afeta a produção e síntese de colágeno no corpo e provoca danos em estruturas como a pele e as articulações - daí as dores e falta de energia.
“Um dos médicos que procurei chegou a pegar a ressonância de outro paciente e falar: ‘olha, ele tem uma coluna muito pior do que a sua e nunca reclama de dor’”, conta Dana. “Depois do diagnóstico, minha vida mudou completamente porque comecei a fazer o tratamento correto. Mas foram muitos anos perdidos sem que minhas queixas recebessem o devido crédito dos médicos”, diz.
Ela conta que o marido tem esclerose múltipla e nota diferença no tratamento que ele recebe dos profissionais de saúde. “Ninguém nunca duvidou dos sintomas dele. Ninguém nunca perguntou se ele estava com muito estresse em casa ou como estava o casamento dele quando ele relata dores”, diz Dana.
A empresária e criadora de conteúdo Dana Steinberg Foto: Arquivo pessoal |
Em relatos como esses, a primeira avaliação pode ser a de que Alissa e Dana foram “apenas” vítimas de maus profissionais ou que não tiveram sorte nas unidades de saúde pelas quais passaram. Estudos, no entanto, vêm demonstrando que o problema é muito mais complexo.
Eles revelam, por exemplo, que as mulheres têm menor probabilidade de receberem analgésicos para dor abdominal quando procuram um pronto-socorro, amargam piores resultados quando operadas por um cirurgião homem e têm maior dificuldade de ter diagnóstico e tratamento adequado para um infarto do que os homens quando procuram um hospital com dor no peito.
“Há um viés de gênero que, historicamente, considera o corpo feminino como inadequado, subestima os efeitos adversos de intervenções e negligencia os relatos e dores das mulheres, classificando-as como histeria ou outras reações psicogênicas. E isso se reflete na Ciência e na Medicina também”, diz Carmen Simone Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
O uso do termo histeria
A crença foi construída ao longo de séculos. Cerca de 400 anos antes de Cristo, Hipócrates, o grego considerado o pai da Medicina ocidental, cunhou o termo histeria para definir uma suposta condição médica de desequilíbrio emocional exclusiva das mulheres. O termo, inclusive, vem da palavra hystera, que, em grego, significa útero - não à toa que a cirurgia de retirada do útero é chamada de histerectomia.
Por muitos séculos, a chamada histeria feminina foi usada como diagnóstico para uma ampla gama de sintomas e doenças relatadas por pacientes do sexo feminino, levando algumas delas a serem internadas em instituições parecidas a manicômios. A crença só caiu por terra a partir do século 19, com pesquisas que buscavam entender melhor a mente humana.
Embora tenhamos avançado nas últimas décadas, ainda há resquícios desse pensamento em atendimentos de saúde como os citados no começo deste texto, que desacreditam os relatos das pacientes e encaixam muitas de suas queixas como problemas de fundo emocional. Tais crenças impediram ainda que condições tipicamente femininas recebessem a devida atenção da ciência, segundo especialistas.
Por muito tempo, alguns temas caros para as mulheres, como práticas obstétricas, disfunções sexuais e menopausa, foram alvos de poucos estudos. E, até hoje, ainda há uma participação mais baixa de mulheres em estudos clínicos de algumas patologias, como as cardíacas, o que dificulta a avaliação da eficácia e segurança de determinadas intervenções sob o prisma das diferenças de gênero.
A analista de dados Alissa Caresia Munerato reclama de negligência em atendimento médico
Foto: Arquivo pessoal
O exemplo da episiotomia
Simone cita como exemplo dessas crenças preconceituosas a realização indiscriminada (e muitas vezes sem consentimento da mulher) da episiotomia, corte cirúrgico feito no períneo durante o trabalho de parto sob a justificativa de facilitar a passagem do bebê. Desde a década de 1920 até o início dos anos 2000, o procedimento era tido como padrão no atendimento obstétrico, mesmo que ele não fosse necessário na maioria dos casos e pudesse deixar a mulher com sequelas como dor e dificuldades de ter relações sexuais.
“Era tido como um procedimento cientificamente embasado, embora nunca tenha tido evidência de benefício. Os estudos bem desenhados que existiam era sobre qual instrumento usar para cortar o períneo, qual era o melhor fio de sutura, mas não se perguntava se devia ser feito ou não”, conta a professora da USP.
Em muitos casos, diz a especialista, a principal preocupação dos médicos era costurar a região íntima feminina de forma a não “atrapalhar” o prazer do homem na penetração, por isso a sutura pós-episiotomia era comumente chamada de “ponto do marido”.
A publicitária Bia Fioretti, de 61 anos, passou pelo procedimento nos partos de seus dois filhos. Na primeira gestação, o corte foi feito sem o conhecimento dela. Na segunda gravidez, o médico disse que, pela posição do bebê, teria que fazer uma episiotomia ainda maior, mas tratou de tranquilizar o marido da publicitária:
“O médico falou para que ele ficasse tranquilo, que ia costurar de um jeito que ia ficar melhor do que antes”, conta Bia, que, depois das experiências traumáticas, abandonou o emprego em uma grande agência de publicidade para fazer mestrado e doutorado em saúde pública. Tornou-se especialista em comunicação para promoção da saúde e realizou trabalhos para o Ministério da Saúde na área de humanização do parto.
Ela defende que as discussões não fiquem focadas nas condutas individuais de cada profissional, mas, sim, se debrucem sobre as questões estruturais que permitem esse tipo de violência contra as mulheres. “Não culpo o médico, ele foi ensinado a fazer daquela forma. É o sistema todo que tem que mudar, começando pela formação dos profissionais”, diz.
A história da episiotomia só começou a mudar a partir da década de 1980, quando a autora e ativista britânica Sheila Kitzinger fez uma pesquisa para entender a percepção das mulheres sobre o procedimento. Ela descobriu que as experiências eram as piores possíveis. A partir de então, a ciência começou a estudar de forma mais aprofundada a repercussão desse procedimento na saúde e qualidade de vida das mulheres e, nos últimos anos, a episiotomia foi formalmente classificada pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um procedimento a ser evitado.
Sintomas de infarto são classificados como ansiedade
Outros problemas, no entanto, permanecem. O impacto do sexismo na saúde cardiovascular feminina é um dos pontos que vêm ganhando atenção dos especialistas. Embora o infarto seja a principal causa de morte entre as mulheres no País, nem sempre essa hipótese diagnóstica é cogitada pelos profissionais, que, em alguns casos, associam os sintomas a quadros de ansiedade sem fazer uma investigação mais aprofundada.
“Os sintomas de um infarto na mulher podem ser diferentes. Nem sempre é aquela dor opressiva no tórax que irradia para o braço. Elas podem ter cansaço e falta de ar, um desconforto no peito e nas costas, mas, por ser uma dor mais frustra, esse diagnóstico é descartado e elas não são colocadas na rota de atendimento de dor torácica no pronto-socorro”, diz Glaucia de Oliveira, presidente do Departamento de Cardiologia da Mulher da Sociedade Brasileira de Cardiologia e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A médica diz que essa demora no diagnóstico retarda o acesso ao tratamento adequado e aumenta o risco de mortalidade. Para a especialista, a educação das pacientes e dos profissionais é fundamental para que fique claro que as doenças cardiovasculares são causa de morte importante também nas mulheres. “Cerca de 30% das mortes de mulheres são por essas causas e acabamos não falando tanto delas quanto falamos de câncer de mama, por exemplo”, destaca a médica.
Para além da cardiologia, as especialistas apontam outros sintomas ou condições femininas que são minimizados no atendimento médico, como desconfortos da menopausa ou período pré-menstrual ou queixas relacionadas à sexualidade.
“Em quadros de vaginismo, por exemplo, que é um problema em que a mulher tem dificuldade para ter penetração porque sente dores intensas, recebo várias pacientes que ouviram de profissionais que era algo emocional, que falavam para a mulher tomar um vinho e relaxar. Existe uma negligência em relação a esses sintomas”, conta a ginecologista Carolina Ambrogini, coordenadora do Ambulatório de Sexualidade Feminina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Ela explica que, por mais que a condição possa, sim, ter causas emocionais, é necessário um atendimento especializado porque esses quadros psicológicos podem ser graves e estar relacionados a traumas. Em alguns casos, são necessárias, além da psicoterapia, fisioterapia e medicações. “Quando me formei, há 23 anos, a média de tempo que essas mulheres esperavam para ter um diagnóstico correto era de cinco anos. Melhorou muito, mas ainda há um descrédito de algumas queixas femininas”, diz a médica.
Para as especialistas, além de melhorar a formação dos profissionais de saúde trazendo esses temas para o currículo, é necessário ainda maior investimento em pesquisas sobre questões femininas, e maior presença delas não só nas carreiras de saúde e ciência, mas em cargos de liderança. “A questão da representatividade é importante para combatermos essa crença”, diz Simone.
Reportagem de Fabiana Cambricoli n'O Estadão
https://www.estadao.com.br/saude/como-o-machismo-na-medicina-e-na-ciencia-afeta-a-saude-das-mulheres-e-de-que-forma-superar-isso/