sexta-feira, 31 de maio de 2024

O que muda na campanha de vacinação contra Covid

Covid já matou 3,5 mil brasileiros em 2024

Os tipos de imunizantes disponíveis, os públicos-alvo e o esquema de doses sofreram uma série de alterações em relação ao início da vacinação contra o coronavírus. Saiba quais são as mais recentes recomendações das autoridades sobre a prevenção dessa enfermidade.

"É como se um avião caísse toda semana."

Essa é a comparação feita pelo médico Renato Kfouri, vice-presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), para lembrar que a Covid ainda causa cerca de 200 mortes no Brasil a cada sete dias.

Até o final de maio, o país havia registrado mais de 3,5 mil óbitos relacionados à infecção causada pelo Sars-CoV-2, o coronavírus por trás da pandemia.

"É claro que tivemos períodos mais graves, em que chegamos a contabilizar 4 mil mortes em um único dia", pondera Kfouri.

Em 2021, o ano mais grave da crise sanitária, o Brasil teve 424 mil mortes por Covid. Desde então, esses números caíram de forma dramática: foram 74 mil óbitos em 2022, 14 mil em 2023 e 3,5 mil nesses primeiros cinco meses de 2024.

A queda coincide com a chegada das vacinas a partir de 2021 e o aumento do número de pessoas que tomaram as doses preconizadas.

"A vacinação foi a grande responsável por conseguirmos conter essa doença tão ameaçadora", constata a infectologista Raquel Stucchi, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

A médica Isabella Ballalai, também da SBIm, concorda: "A vacinação contra a Covid no Brasil foi um sucesso e nos tornamos um dos primeiros países a ter mais de 80% da população imunizada. Isso mostra que o brasileiro acredita nas vacinas".

Os dados recém-divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua revelam que, no primeiro trimestre de 2023, 188,3 milhões de brasileiros haviam tomado pelo menos uma dose de vacina contra a Covid. Isso representa 93,9% da população. Cerca de 11 milhões (ou 5,6% do total) declararam que não se imunizaram.

Mônica Calazans, enfermeira do Instituto Emílio Ribas, de São Paulo, foi a primeira pessoa vacinada contra a Covid no país


"Hoje, ainda temos muitas mortes por uma doença para a qual existem doses disponíveis", lamenta Ballalai.

Passados mais de três anos desde que as primeiras doses que protegem contra o coronavírus começaram a chegar aos postos de saúde, muita coisa mudou.

Alguns imunizantes —que foram essenciais para conter a pandemia— acabaram aposentados, por diferentes motivos.

As faixas da população que devem tomar reforços periódicos também sofreram uma série de ajustes.

E ainda há um grande debate sobre quando e como as doses devem ser atualizadas para proteger contra as mais recentes variantes do coronavírus.

A seguir, a BBC News Brasil resume as principais informações sobre a nova campanha de vacinação contra a Covid, que foi iniciada pelo Ministério da Saúde no final de maio.

Algumas vacinas são aposentadas, e outras entram em cena.

Ao longo das campanhas de 2021 a 2023, o Brasil chegou a adotar quatro tipos diferentes de vacinas contra a Covid: a CoronaVac (Sinovac/Butantan), a Comirnaty (Pfizer), a Vaxzevria (AstraZeneca/FioCruz) e a Jcovden (Janssen).

"Todas foram extremamente importantes naquele momento", avalia Stucchi, que também integra a SBIm.

Mais recentemente, três dessas opções saíram de cena nos postos de saúde brasileiros: as vacinas CoronaVac, da AstraZeneca e da Janssen não são mais aplicadas.

Do grupo "original", restaram as doses fabricadas pela Pfizer —que também passaram por atualizações para proteger contra as variantes do vírus.

Além delas, o país também começará a usar na atual campanha o imunizante Spikevax, produzido pela farmacêutica Moderna.

Pfizer e Moderna usam a tecnologia do mRNA. Isso significa que as doses trazem uma pequena sequência de material genético capaz de instruir as células do nosso próprio corpo a fabricarem a proteína spike, uma estrutura presente na superfície do coronavírus.

Esse material é identificado pelo sistema imunológico, que cria uma resposta para conter uma infecção pelo patógeno e as consequências mais graves da Covid no organismo, que estão relacionadas à hospitalização e morte.

Há ainda uma terceira vacina recém-aprovada no Brasil: a Covovax, desenvolvida pelo laboratório Novavax e licenciada no país pela Zalika Farmacêutica.

Ela é uma vacina de subunidade proteica, uma tecnologia também usada nos imunizantes que protegem contra o HPV e a hepatite B.

Neste caso, proteínas do coronavírus são injetadas diretamente no corpo, para que as células de defesa aprendam a identificar e a lidar com essa ameaça.

Por ora, não há previsão de quando a Covovax será utilizada na rede pública de saúde brasileira.

Mas, afinal, o que motivou a "aposentadoria" de algumas vacinas e a "promoção" de outras?

"Hoje, sabemos que as vacinas de mRNA [Pfizer e Moderna] induzem uma resposta imunológica mais robusta e uma maior proteção", explica Stucchi.

Em comparação, os resultados obtidos com a CoronaVac se mostraram inferiores —e, por esse motivo, ela foi deixada de lado conforme os estoques foram se esgotando, embora ainda seja recomendada em algumas situações para as crianças.

Além disso, a experiência de vida real revelou que as vacinas de vetor viral (AstraZeneca e Janssen, entre outras) estão relacionadas a um efeito colateral raro em algumas populações, como as gestantes: a trombose com trombocitopenia.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) dos Estados Unidos calcula que esse evento adverso afeta 4 pessoas a cada 1 milhão de doses administradas.

"A trombose com trombocitopenia é um efeito colateral raro, mas sério, que provoca coágulos em grandes vasos sanguíneos, além de diminuir as plaquetas", explica o CDC.

Ballalai explica que, em um contexto de pandemia, quando havia um altíssimo número de casos e mortes por Covid, o uso dos produtos de AstraZeneca ou Janssen era justificado.

"Nesse contexto, essas vacinas continuaram a ser utilizadas, porque a relação risco-benefício era muito grande", explica Ballalai.

Os pesquisadores também colocaram na balança o fato de que a própria infecção pelo coronavírus representa um risco relativamente mais alto de desenvolver quadros de trombose quando comparada à vacinação com essas opções.

"Ou você simplesmente deixava as pessoas morrerem de Covid, ou apenas não aplicava essas doses naqueles grupos onde havia mais risco de desenvolver esse evento adverso", destaca a médica.

À época, as autoridades de saúde optaram pela segunda alternativa: as vacinas de AstraZeneca e Janssen seguiram na campanha, mas deixaram de ser utilizadas em mulheres grávidas, por exemplo.

"Com o passar do tempo, passamos a ter mais quantidade de outras vacinas, especialmente da Pfizer. Com isso, as doses de AstraZeneca foram sendo usadas com menor frequência, até que elas deixaram de ser utilizadas nas campanhas", complementa Ballalai.

Esse debate voltou à tona recentemente, quando a AstraZeneca divulgou no início de maio que deixaria de fabricar sua vacina.

A farmacêutica disse que estava "incrivelmente orgulhosa" dos resultados obtidos: "De acordo com estimativas independentes, mais de 6,5 milhões de vidas foram salvas apenas no primeiro ano de vacinação".

"Nossos esforços foram reconhecidos por governos de todo o mundo e são apontados como amplamente decisivos para acabar com a pandemia global", disse o laboratório.

A notícia recente não significa, porém, que a AstraZeneca só reconheceu agora que a vacina está relacionada aos (raros) casos de trombose com trombocitopenia, como sugerem alguns textos com informações falsas compartilhados em sites e redes sociais.

Há documentos divulgados pela farmacêutica desde 2021 que citavam claramente esse evento adverso —e propunham protocolos para minimizar os riscos ou fazer o diagnóstico precoce dos casos.

Vacinação contra a Covid: quem deve tomar as doses de reforço?


Se anteriormente os imunizantes contra o coronavírus estavam disponíveis praticamente a todas as idades (com raríssimas exceções), agora eles serão priorizados a alguns públicos-alvo específicos.

Kfouri diz que a definição de grupos prioritários tem a ver com o contexto atual. "A vacinação universal contra a Covid não faz mais sentido, pois não estamos diante do mesmo risco que enfrentávamos há quatro anos", avalia o médico.

"Alcançamos uma imunidade populacional, e dificilmente um adulto jovem saudável vai parar no hospital por causa dessa doença agora."

No entanto, existem alguns grupos que continuam altamente vulneráveis, seja porque eles ainda não tiveram contato algum com o Sars-CoV-2 ou porque têm um sistema imunológico mais frágil, que precisa ser lembrado com frequência sobre como combater esse patógeno.

Também há uma diferença na periodicidade de aplicação dos reforços. Alguns grupos precisarão receber uma dose por ano, enquanto outros devem tomar a injeção a cada seis meses.

A campanha de 2024 traçada pelo Ministério da Saúde estabelece o seguinte.

Duas doses por ano, com um intervalo mínimo de seis meses entre elas para:
Pessoas com mais de 60 anos;
Indivíduos imunocomprometidos com mais de 5 anos;
Gestantes e puérperas.
Os "imunocomprometidos" são pessoas que têm qualquer condição que altera o funcionamento do sistema imunológico, como é o caso de pacientes que fazem tratamento contra o câncer, por exemplo.
Já o grupo das puérperas inclui as mulheres que deram à luz nos últimos 45 a 60 dias.

Uma vacina por ano, com um intervalo mínimo de três meses em relação à última dose aplicada para:

Pessoas que vivem em instituições de longa permanência;
Trabalhadores de instituições de longa permanência;
Indígenas;
Ribeirinhos;
Quilombolas;
Trabalhadores da saúde;
Pessoas com deficiência permanente;
Pessoas com comorbidades;
Pessoas privadas de liberdade com mais de 18 anos;
Funcionários do sistema prisional;
Adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas;
Pessoas em situação de rua.

Para quem nunca foi vacinado contra a covid:
Crianças de 6 meses a 5 anos: duas doses de vacina, com um intervalo de quatro semanas entre elas;
Crianças de mais de 5 anos: uma dose do imunizante;
Pessoas imunocomprometidas com mais de 5 anos: três doses. A segunda é aplicada quatro semanas após a primeira. Já a terceira vem após oito semanas da segunda.
"Temos uma preocupação grande com as crianças, porque vemos muitos casos de covid nessa faixa etária que exigem hospitalização e apresentam risco de morte", alerta Ballalai.

"Precisamos aumentar a proteção desse público."

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil aprovam a estratégia adotada pelo Ministério da Saúde contra a Covid e observam que ela se assemelha ao que é feito há anos na vacinação contra o influenza, o vírus causador da gripe.

Doses que resguardam contra as novas variantes


Por fim, o último aspecto da vacinação que passou por uma mudança relevante tem a ver com a atualização das doses, para que garantam um bom nível de proteção contra as variantes do coronavírus que circulam com mais intensidade no momento.

Isso é necessário porque o patógeno sofre mutações genéticas o tempo todo. Algumas dessas mudanças conferem alguma vantagem a ele —como uma facilidade maior para ser transmitido de uma pessoa para outra, por exemplo.

Os imunizantes, portanto, precisam ser capazes de "treinar" células imunes para as ameaças em voga.

A vacina que será ofertada agora no Brasil foi desenhada para fazer frente à cepa XBB.1.5.

Embora já existam outras variantes de preocupação ou em monitoramento, como a JN.1 e a KP.2, as autoridades consideram que essa versão do imunizante em uso (contra a XBB) confere um bom nível de proteção, ao reduzir o risco de hospitalização e morte por Covid.

No entanto, os médicos entrevistados pela reportagem entendem que esse processo de atualização das vacinas contra o coronavírus precisará passar por ajustes nos próximos anos.

"A Organização Mundial da Saúde recomenda atualmente que as vacinas contra a covid sejam revisadas uma vez ao ano, no mês de junho. Mas essa orientação parece privilegiar o Hemisfério Norte, que terá acesso às doses mais atualizadas durante o inverno em comparação com o Hemisfério Sul", critica Stucchi.

Os especialistas sugerem aqui a adoção do mesmo modelo utilizado na imunização contra o influenza, em que a composição das doses que serão usadas nas campanhas é definida em fevereiro para o Hemisfério Norte e em setembro para o Hemisfério Sul.

Kfouri aponta que ainda é preciso observar o comportamento do coronavírus por mais tempo para entender a sazonalidade dele.

"Com o influenza, temos muitos anos de vigilância, o que nos garante uma previsibilidade das cepas de vírus que vão circular em cada temporada", compara ele.

"Já com o coronavírus, isso ainda não está bem definido. Tivemos picos de casos em pleno janeiro, durante o verão", argumenta o médico.

De acordo com o Ministério da Saúde, a meta da nova campanha de vacinação contra a Covid é proteger cerca de 70 milhões de brasileiros.

"A Covid não acabou. Ela ainda tem um impacto importante na saúde pública e privada", alerta Stucchi.

"A vacinação é a estratégia que pode mudar a história ao garantir um quadro mais leve para a grande maioria das pessoas."

Reportagem da BBC NEWS BRASIL na Folha de São Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/05/o-que-muda-na-campanha-de-vacinacao-contra-covid-doenca-que-ja-matou-35-mil-brasileiros-em-2024.shtml

segunda-feira, 6 de maio de 2024

82% dos nascimentos são cesáreas

Taxa de cesáreas segue em alta no Brasil, e motivos passam pelos planos de saúde, aumentando riscos para mãe e bebê


Se considerados apenas os planos, as cesarianas representaram cerca de 82% dos nascimentos em 2022 enquanto a OMS recomenda que sejam apenas 15%


Por trabalhar na área da saúde, como enfermeira, a carioca Jéssica Pinho, de 35 anos, já imaginava que teria dificuldade para encontrar um médico que topasse fazer o parto da filha que ela esperava de maneira natural. Quando procurou um obstetra do plano de saúde, porém, ela entrou em uma verdadeira batalha — e saiu vencida: precisou contratar uma equipe particular, como única forma de evitar uma cesárea. Casos como o dela, de mulheres que não conseguem realizar o parto natural por meio do convênio, se avolumam no Brasil. Consumidoras e advogadas que acompanham o tema apontam os planos de saúde como o cerne do problema, porque uma parte significativa dos médicos credenciados se recusa a seguir no atendimento quando descobre a preferência da gestante pelo parto natural.

Por trabalhar na área da saúde, como enfermeira, a carioca Jéssica Pinho, de 35 anos, já imaginava que teria dificuldade para encontrar um médico que topasse fazer o parto da filha que ela esperava de maneira natural. Quando procurou um obstetra do plano de saúde, porém, ela entrou em uma verdadeira batalha — e saiu vencida: precisou contratar uma equipe particular, como única forma de evitar uma cesárea. Casos como o dela, de mulheres que não conseguem realizar o parto natural por meio do convênio, se avolumam no Brasil. Consumidoras e advogadas que acompanham o tema apontam os planos de saúde como o cerne do problema, porque uma parte significativa dos médicos credenciados se recusa a seguir no atendimento quando descobre a preferência da gestante pelo parto natural.

O número de cesarianas no Brasil continua a crescer e se distanciar do patamar recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de que apenas 15% dos nascimentos sejam não naturais — o percentual estimado de casos em que o procedimento é realmente necessário. No país, aproximadamente 59,7% dos partos realizados no ano passado, incluindo nascimento através de hospital públicos, foram por meio de cesariana, ante 58,1% em 2022. Informações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) obtidas pelo GLOBO mostram que, se considerados apenas os planos de saúde, as cesarianas representaram cerca de 82% dos nascimentos em 2022, o dado mais recente disponível.

O problema com os planos tem motivado reclamações na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). No primeiro trimestre, foram 78 queixas de consumidoras na plataforma consumidor.gov.br por não conseguirem realizar o parto normal pelo plano de saúde — para comparação, no mesmo período de 2019 não houve nenhuma queixa formal sobre o tema.

Na saga pelo parto normal, Jéssica primeiro entrou em contato com o plano, Bradesco Saúde, para descobrir a taxa de partos normais na rede de atendimento credenciada. Uma norma da ANS permite que as gestantes tenham acesso ao percentual de cesarianas entre os nascimentos realizados no convênio.

O GLOBO teve acesso a um documento que lista as informações de todos os 66 médicos e clínicas credenciados pelo plano no estado do Rio de Janeiro. Desse total, 60 realizaram apenas cesarianas em dezembro de 2023. Outros cinco tinham taxas de cesariana entre 80% e 98% dos nascimentos. Apenas um médico tinha taxa inferior a esse patamar, mas ainda elevada (50%).

— Pedi que o plano me indicasse um profissional que respeitasse as taxas da OMS — conta Jéssica. — Não conseguiram me indicar, e me passaram uma lista de prestadores, falando para eu entrar em contato com cada um. Os quinze consultórios indicados falaram que não faziam parto normal, a não ser que eu pagasse por fora.

Jéssica, então, entrou em contato novamente com o plano, que prontamente agendou uma consulta com um profissional que supostamente realizaria o parto natural. Após poucos minutos de atendimento, o médico disse que não haveria como assumir essa responsabilidade, por ter compromisso no mesmo dia, mas deixou escapar que a remuneração pelo procedimento é baixa, de apenas R$800.

— É possível fazer uma cesária em meia hora. Com o parto normal, pode acontecer de durar 20 horas. As operadoras remuneram o mesmo para os dois procedimentos, mas o pagamento deveria se basear na disponibilidade — diz o presidente da Comissão Nacional de Assistência ao Parto da Febrasgo, que representa associações de ginecologia, Elias Melo.

O médico explica que a cesariana apresenta maior risco de morte para a mãe, porque o corpo não possui mecanismos de defesa natural para cortes no abdômen, ao contrário da vagina, que tem um sistema linfático que protege a área durante o parto. Por isso, a probabilidade de a mulher se recuperar sem sequelas é maior.

Além disso, bebês nascidos por cesariana têm maiores chances de apresentar taquipneia transitória (dificuldade para respirar). A menor contração do útero nesses casos pode fazer com que o neném não consiga expulsar os líquidos dos seus pulmões.

‘Teria de chegar parindo’

A fisioterapeuta Pamela Britto, de 31 anos, encontrou outro tipo de problema ao procurar um médico associado a seu plano de saúde (que preferiu não identificar), em 2022: todos os profissionais disseram que só realizariam o parto normal se ela chegasse à maternidade “parindo”.

— Diziam que fariam, mas sem induzir. Não falaram diretamente, mas não queriam o parto normal por conta da demora. Sempre diziam que haveria riscos para o neném e para mim se induzissem. Alguns falavam que esperavam só uma ou duas horas — diz.

Ela desembolsou R$ 10 mil para pagar uma equipe de assistência particular e mais R$ 300 mensais para consultas, sobre as quais o plano reembolsou apenas 50%. Quase todos os valores da equipe foram reembolsados, com exceção da remuneração à enfermeira.

A taxa de disponibilidade

Segundo a psicóloga e doula Patrícia Ramos, a maioria dos médicos afirma que não assiste o parto. Alguns, embora digam que sim, exigem que a gestante chegue com o trabalho de parto avançado. Outros cobram uma “taxa de disponibilidade”.

— Há casos em que o médico arruma alguma desculpa para não induzir, já que uma indução pode demorar de quatro a cinco dias. Alguns usam isso para forçar a cesariana, dizendo que a indução deu errado — contra Patrícia.

A advogada Sabrina D’avila, especialista em direito público e privado, afirma que existe entendimento judicial de que não há problemas na cobrança da taxa de disponibilidade, desde que a paciente concorde. Ao mesmo tempo, existe uma interpretação contrária, de que essa taxa é abusiva pelas normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

— O Conselho Federal de Medicina (CFM) entende que essa cobrança não é pelo parto, mas pela disponibilidade. Agora, se a paciente for em um médico do plano que só realiza o procedimento com taxa, o plano é obrigado a indicar um que não cobre. Se o plano disser que o médico credenciado não pode cobrar taxa, a paciente pode reclamar no plano e na ANS.

Edylaine Rodrigues, advogada especializada em direito da saúde e da mulher, afirma que os médicos muitas vezes recebem R$ 1 mil do plano pelo parto, e cobram outros R$ 3 mil da paciente como taxa extra.

— A paciente vai ter problemas para reembolsar esse valor, porque essa taxa, que os médicos chamam de disponibilidade obstétrica, não tem TUSS (Terminologia Unificada da Saúde Suplementar), ou seja, não é procedimento médico — diz Edylaine.

Ela menciona que, além desses problemas, as mulheres sofreriam outras violências no momento de dar à luz, como serem obrigadas a ficar sem comer durante o trabalho de parto. Sem forças, elas pediriam pela cesariana. Outros médicos falariam coisas como: “seu bebê é muito grande, vai te rasgar inteira”. Existe ainda a violência medicamentosa, quando a mulher recebe ocitocina sem necessidade.

— Esse remédio é dado como um punhal. A dor é tamanha que a mãe desiste.

'A gente não quer isso'

A estudante Alessandra Batista, de 27 anos, descobriu uma gravidez em janeiro, e começou a se consultar com um médico credenciado da Amil. Simultaneamente, fazia acompanhamento com uma doula. Na primeira consulta, ele disse que não era o momento de falar sobre como o neném nasceria. Quando Alessandra completou 17 semanas, não conseguiu mais fugir do assunto. Comentou que a data provável do parto seria em julho, antes que ela completasse 40 semanas:

— Perguntei se eu completaria as 40 semanas em julho. Ele disse: “você está louca? Não vou deixar você chegar a 40 semanas para entrar em trabalho de parto. A gente não quer isso”.

Alessandra disse que sentiu que a decisão não era dela e do marido, mas do médico:

— O tom da conversa foi mudando. Falei que queria tentar o parto normal. Ele disse que a cesariana era simples. Como sou cega, sei que minha experiência com a maternidade será desafiadora. Não quero ter de lidar com pontos e complicações.

O médico disse que ela se preocupava demais. Pediu para que pensasse com calma, que da forma como ele propunha ela “estaria com o neném mais rapidamente”. Depois, contou como seria complicado fazer o acompanhamento, sem saber quando entraria em trabalho de parto. Disse, enfim, que ela não conseguiria fazer o procedimento pelo plano, porque ninguém aceitaria.

— Saí de lá arrasada. Liguei para alguns médicos do plano, e nenhum aceitou.

Hoje, Alessandra faz o acompanhamento com uma médica particular e na Casa de Parto (SUS), onde pretende ter o filho, já que, no particular, um parto pode custar entre R$ 15 e R$ 30 mil.

O que dizem os planos

Em nota, a ANS afirma que vem trabalhando, desde a década de 2000, para sensibilizar o setor quanto à melhoria da qualidade e segurança da atenção à saúde materna e neonatal. A ANS menciona, por exemplo, o programa Parto Adequado, em parceria com o Institute For Healthcare Improvement (IHI) e o Hospital Albert Einstein, que levou a uma redução gradativa de cesarianas. “A taxa de cirurgias cesáreas vem declinando desde 2017 no setor suplementar de saúde, passando de, aproximadamente, 86% em 2017 para cerca de 81,8% nos anos de 2021 e 2022”, disse.

Procurada, a Bradesco Saúde disse entender que o tema deveria ser abordado junto à ANS. A Amil afirma que é apoiadora desde 2015 do Parto Adequado, da ANS, que busca estimular o cuidado mais indicado a cada gestante, para redução de cesáreas desnecessárias. Na Maternidade Madre Theodora, no estado de São Paulo, a operadora destaca que metade dos partos no último ano foram pelo método normal. “Educação continuada de médicos e enfermeiros para estímulo ao parto normal é uma outra prática”, disse em nota. A Amil disse, ainda, ter procurado a paciente para tentar solucionar o problema e oferecer uma alternativa dentro do convênio.

Marcos Novaes, superintendente executivo da Abramge, que representa os planos de saúde, afirma que as empresas têm incentivos para realizar o parto normal, que levam, de modo geral, a menor tempo de internação e recuperação melhor da paciente.

— Estamos habituados a realizar o parto com o mesmo médico que fez o pré-natal, diferentemente de países europeus, como Portugal, Inglaterra e França, em que o acompanhamento é feito com uma equipe multidisciplinar. Assim, no momento do parto, a gestante já estará acostumada com a equipe, para caso eventualmente algum deles precise realizar o parto — diz Novaes.

Ele afirma ainda que os médicos credenciados aos planos não podem cobrar taxa de disponibilidade. Além disso, caso o médico que aceitou realizar o parto não possa estar presente no dia do nascimento, os planos devem oferecer uma equipe no hospital ou maternidade para assistir à gestante.

Reportagem de Ana Flávia Pilar n'O Globo 

https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/05/06/parto-normal-taxa-de-cesareas-segue-em-alta-no-brasil-entenda-os-motivos.ghtml