domingo, 10 de agosto de 2025

Vergonha, medo e anonimato digital são travas para investigar violência sexual infantil

ONG recebeu quase 53 mil denúncias em 2024 relacionadas a imagens de abuso e exploração de crianças na internet

Uma das formas mais insidiosas de violência sexual infantil no ambiente virtual é o "grooming", ou aliciamento, quando um criminoso se aproxima da criança ou adolescente online e constrói um relacionamento de confiança.

O objetivo é manipular a vítima para que ela envie fotos ou vídeos íntimos, que posteriormente são usados para chantagem e coação, levando à exploração sexual.

Quem explica o cenário é Eronides Meneses, delegado titular da divisão de crimes cibernéticos da Polícia Civil de Pernambuco. Outra prática criminosa, diz, "envolve a produção, armazenamento, divulgação e compartilhamento de imagens de abuso sexual infantil".

"Embora o ciberbullying possa parecer uma categoria diferente, ele muitas vezes se entrelaça com a violência sexual", explica.

Em 2024, a ONG Safernet, dedicada à promoção e defesa dos direitos humanos na internet, recebeu 52.999 denúncias de crimes relacionados a imagens de abuso e exploração sexual infantil, uma queda de 26% em relação às 71.867 de 2023 —recorde histórico da série iniciada em 2006.

Dados de uma pesquisa recente realizada pelo ChildFund Brasil, organização dedicada à proteção infantil, revelam que a violência sexual online é uma realidade para mais da metade dos adolescentes brasileiros.

O estudo, intitulado "Mapeamento dos Fatores de Vulnerabilidade de Adolescentes Brasileiros na Internet", aponta que 54% dos jovens já foram vítimas de violência sexual na internet, o que representa aproximadamente 9,2 milhões de adolescentes.

O estudo destaca que 94% dos adolescentes não sabem como agir diante de situações de risco online, mesmo já tendo recebido algum tipo de orientação sobre o uso da internet. Essa falta de conhecimento cria um cenário de vulnerabilidade ainda maior para milhões de jovens.

Para o delegado Meneses, um dos principais desafios na investigação é o anonimato digital, que torna difícil o rastreamento de IPs, que funcionam como uma espécie de identificador de dispositivos eletrônicos —a criptografia é comum em aplicativos de mensagens, por exemplo.

"Enfrentamos também o problema do retardo na resposta dos provedores de internet e das aplicações, o que atrasa bastante o andamento das investigações."

Além do volume de dados e da falta de uma perícia especializada, o delegado cita que muitas vítimas ainda não denunciam por medo ou vergonha.

Apesar das dificuldades, sua divisão realiza operações integradas, como a iniciativa Luz na Infância, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que busca proteger crianças e adolescentes de crimes digitais.

Além disso, a delegacia monitora redes de compartilhamento de conteúdo, ajudando a identificar atividades ilícitas. Há também cooperação internacional com organizações como Interpol e Europol, permitindo ações conjuntas e troca de informações globais.

No Recife, a conselheira tutelar Elen Brito diz que a maioria das vítimas de denúncias no ambiente virtual é de meninas.

Por meio das redes sociais ou plataformas de mensagens, elas são atraídas por jovens ou homens que se passam por menores. Esses adultos conseguem obter imagens e vídeos íntimos, posteriormente usados para fazer chantagens e ameaçá-las.

"Geralmente as denúncias chegam pelo Disque 100 ou por instituições de ensino, tendo em vista que alguns casos acontecem dentro da escola. É comum casos entre adolescentes que tiveram algum tipo de relacionamento, mas, quando a menina não quer mais, o garoto ameaça divulgar imagens íntimas, muitas vezes obtidas sem consentimento", diz Elen.

Desde 2018, o Código Penal foi alterado para tipificar o crime de importunação sexual, que inclui divulgar, por qualquer meio, cenas de estupro ou divulgar cena de sexo ou nudez sem a autorização da vítima.

Família, professores e profissionais da saúde mental destacam que um dos desafios na identificação de casos de violência sexual na internet é que, muitas vezes, as mudanças no comportamento das vítimas podem ser interpretadas como parte do processo de desenvolvimento.

Para a psicóloga Priscila Souza, que atua no Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) do Recife, o diálogo precisa virar rotina.

"Muitas vezes os adultos evitam tocar no tema por medo de falar algo errado ou por não saber como iniciar essa conversa. Não há um modelo único ou perfeito, cada família deve encontrar o seu próprio jeito, respeitando o nível de compreensão da criança", afirma Priscila.

A psicóloga alerta que a exposição a conteúdos inadequados na internet pode acarretar prejuízos significativos, como "comportamentos sexualizados, aumento do risco de desenvolver ansiedade, depressão, baixa autoestima e isolamento social."

Apagamento de histórico de navegação, presença de contatos de desconhecidos em redes sociais e uso excessivo da internet, especialmente em horários incomuns, são listados pelo delegado Meneses como sinais de alerta no ambiente digital.

A psicóloga considera importante compreender que a proteção também depende da colaboração ativa da sociedade, especialmente no que diz respeito à formalização de casos.

"As denúncias não servem apenas para investigar casos pontuais. São essenciais para a produção de dados, que subsidiaram o trabalho da Segurança Pública. A partir da análise desses dados, será possível identificar padrões, variáveis que influenciam o aumento dos casos e até prevenir reincidências" diz Priscila.

Esta reportagem da Suellen Barbosa é resultado do curso sobre cobertura jornalística de violência sexual infantil promovido pela Folha e pelo Instituto Liberta em junho de 2025

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/08/vergonha-medo-e-anonimato-digital-sao-travas-para-investigar-violencia-sexual-infantil.shtml

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