sábado, 25 de outubro de 2025

Mulheres contam como superaram abandono dos parceiros após diagnóstico de câncer de mama

Estresse e sentimentos de tristeza e desamparo podem piorar estado de saúde de pacientes
Pesquisa já mostrou que 1 a cada 10 mulheres com câncer é abandonada pelo companheiro

"Essa menina vai custar quanto para a gente? Quanto vai sair essa brincadeira?". A pergunta foi feita pelo ex-sogro da palestrante, influenciadora e escritora Janaína Almeida, hoje com 37 anos. Segundo o relato de Janaína, a fala se referia aos custos de exames que ela teria que fazer após uma suspeita de câncer de mama.

O ano era 2019. Ela estava casada com um médico, com quem tem um filho. E conta que o homem a abandonou pouco tempo depois de confirmado o diagnóstico: um carcinoma invasivo na mama esquerda.


Um levantamento realizado em 2024 pela Femama (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama) com o Datafolha e a AstraZeneca mostrou que 1 em cada 10 mulheres com diagnóstico de câncer de mama é abandonada pelo parceiro após a confirmação da doença. A pesquisa analisou as respostas de 240 pacientes em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba e Goiânia.

Em janeiro daquele ano, Janaína havia ido ao ginecologista e sua saúde estava perfeita. "Ele fez papanicolau, exame de toque, disse que eu estava ótima e perguntou quando eu teria o segundo filho. Saí de lá confiante e guardei as guias para a ultrassonografia da mama e o transvaginal no porta-luvas do carro", conta.

No mês seguinte ela começou a sentir náuseas. Fez vários exames, todos com resultados normais.

"Fiquei angustiada. Era como se uma voz tivesse falado ao meu ouvido e me feito lembrar dos exames no porta-luvas. Marquei a ultrassonografia para o dia seguinte. Morava em Londrina, no Paraná. Durante o exame, a médica me olhou com uma cara estranha e de choro. O tumor era horrível e não tinha característica benigna. Ela me perguntou se eu sabia do nódulo. Respondi que não", lembra.

Janaína conta que, assustada, telefonou ao então marido, que a repreendeu. "Ele disse: 'Pare de procurar doença. Pode sair daí. Eu rasgo o meu CRM e deixo de ser médico. Você não tem doença nenhuma'."

O diagnóstico de câncer foi confirmado poucos dias depois. O esposo então acionou outro colega médico, que recomendou urgência. Janaína saiu de casa com a roupa do corpo e duas malas, dela e do filho, rumo a São Paulo. Hospedou-se na casa dos pais.

A consulta com o oncologista estava marcada para o dia seguinte. Como o plano de saúde só atendia em Londrina, os exames foram pagos pela família. Em uma semana, a despesa chegou perto de R$ 10 mil.

A influenciadora descobriu que o tumor era agressivo e poderia causar metástase rapidamente. Ela conta que o marido então começou a se distanciar.

"[Eu dizia] 'Câncer não passa, não. O que aconteceu? Preciso de você'. Em resposta, ele disse umas três vezes que não iria dar certo", lembra Janaína. "Eu tinha que ser forte porque minha família estava em choque. Meu filho estava com 4 para 5 anos. Recebi o resultado do subtipo do tumor numa quinta-feira, e ele foi embora no sábado seguinte. Nunca mais voltou."

Janaína respondeu bem ao tratamento e está em remissão. Parte desse sucesso ela atribui ao reencontro com um namorado que teve aos 18 anos. Foram 16 sessões de quimioterapia e a recomendação de mastectomia bilateral preventiva. Nesse período ela também descobriu uma mutação genética associada ao risco de vários tipos de câncer.

"Um tempo após a químio, na máquina de ressonância, o médico disse que eu precisava sair do equipamento porque estava grávida. Meu 'milagrinho' já fez quatro anos. Aos 35 anos, por causa da mutação genética, tive que retirar os ovários de maneira preventiva e entrei em menopausa."

A professora Fernanda da Silva (nome fictício), 35, moradora em Estrela, no Rio Grande do Sul, conta que passou por situação parecida. Quando recebeu o diagnóstico de câncer na mama direita, em 2019, a doença já estava em estágio avançado.

Fernanda vivia com o companheiro havia cinco anos e tinha uma filha de dois anos. Contrariado por ter que faltar ao trabalho, o parceiro a acompanhou ao oncologista, que explicou como seria o tratamento e a quimioterapia. Na primeira sessão, o casal permaneceu no hospital o dia inteiro. Ao chegar em casa, o homem disse que não aguentaria aquela situação.

A professora conta que saiu de casa com a filha e foi amparada pelas amigas, que se tornaram sua família. Atualmente também tem outro companheiro.

Além da quimioterapia, Fernanda passou por radioterapia e cirurgia. E seu tratamento continua, uma vez que a doença foi descoberta em estágio avançado.

O estresse tem efeitos danosos no funcionamento metabólico, e o abandono pode piorar o estado de saúde dos pacientes, o prognóstico e as respostas ao tratamento, com possibilidade de mais efeitos colaterais, segundo a psiquiatra Lorena Caleffi, membro do Conselho Científico da Femama.

Há ainda as consequências emocionais geradas por sentimentos de tristeza, desespero e desamparo. "Quem vai me levar ao hospital, ajudar a ir às consultas e se responsabilizar por mim numa internação, se for necessário? Sempre precisa ter um caminhar junto", diz Caleffi.

Também podem ocorrer crises de depressão, ansiedade e insônia, bem como redução da autoestima. Tudo isso, segundo a psiquiatra, aumentam o desânimo das pacientes e podem levar à desistência de seguir com o tratamento.

"Para que eu vou fazer todo esse tratamento se eu sou uma pessoa com quem não vale a pena ficar junto? Estou doente, com câncer, vou ficar mutilada [se houver indicação cirúrgica] e quem está ao meu lado, que deveria me admirar e apoiar, acha que não vale a pena. A paciente pode ter este tipo de questionamento", afirma.



De acordo com a médica, é importante que entes queridos estejam disponíveis e sejam proativos. "Ligue, mesmo que a pessoa diga que está cansada e quer dormir. Vá até ela e faça algo. Pode ser um lanche, comprar um doce. Vá e fique junto. Dizer 'conta comigo para o que precisar' não vai funcionar, porque a pessoa terá dificuldade para pedir ajuda", aconselha.

Por fim, preste atenção a sintomas de depressão. A doença não aparece de um dia para o outro, vem aos poucos, e mesmo a paciente pode não se dar conta.

"Perguntar é o melhor caminho, porque abre a porta para quem não está bem poder desabafar e buscar ajuda. 'Ah, teve um diagnóstico de câncer, é claro que estará deprimida'. Não, não é. Depressão é outra doença que precisa ser tratada", finaliza Lorena Caleffi.

Reportagem de Patrícia Pasquini e Karime Xavier na Folha de São Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2025/10/mulheres-contam-como-superaram-abandono-dos-parceiros-apos-diagnostico-de-cancer-de-mama.shtml

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

A presença de alguns opioides no Brasil ainda é mal documentada

Dr. Drauzio Varella alerta

Ao chegar no país, o crack encontrou jovens desprevenidos
Campanhas devem alertar sobre o risco dessas substâncias

Obtido a partir da papoula, o ópio teria surgido na Mesopotâmia há mais de 5.000 anos. No século 19, os ingleses promoveram duas guerras contra a Chinapara assegurar a si o direito infame de comercializá-lo no território chinês, como parte de uma estratégia de dominação colonial.

No início dos anos 1900, os alemães extraíram o princípio ativo: a morfina, largamente empregada com os feridos das guerras mundiais e na medicina moderna para tratamento de dores rebeldes. É um analgésico potente, de baixo custo e com toxicidade bem conhecida, qualidades importantes no uso clínico.


Em 1897, foi sintetizado outro derivado: a heroína, nome dado pela sensação de euforia e poder provocada por ela. Em 1927, o laboratório alemão Merck lançou-a no comércio, indicada como analgésico para crianças e adultos.

Na Europa e nos Estados Unidos a disseminação do uso recreativo nos grandes centros urbanos criou um problema grave de saúde pública. As propriedades viciantes da heroína guardam relação com a abstinência. As crises provocam quadros de ansiedade incontrolável que impedem o dependente de executar as tarefas diárias. Como acontece com outras drogas psicoativas, o uso continuado leva à tolerância, fase em que o usuário já nem sente prazer, mas chega ao desespero quando falta a dose seguinte.

Nos programas de tratamento da dependência, os médicos prescrevem outro derivado do ópio, a metadona, com a finalidade de aplacar os sintomas da abstinência de heroína e tirar o dependente das garras do traficante. Na verdade, substituem um opioide por outro.


A tolerância, que leva ao aumento progressivo das doses em busca de uma euforia cada vez mais difícil de obter, é a principal responsável pelas mortes por overdose.

A oxicodona, opioide sintetizado na Alemanha em 1916, começou a ser comercializada nos Estados Unidos com o nome de Oxycontin, a partir de 1995. A Purdue Pharma empregou estratégias de marketing tão agressivas que acabou processada em decorrência da epidemia de óbitos por overdose que assola cidades americanas.

O que já vinha mal, piorou muito em 2013, quando o mercado americano foi invadido por um opioide usado em anestesia nos hospitais: o fentanil, cerca de cem vezes mais potente do que a morfina.

Com a droga produzida em laboratórios clandestinos na Ásia, principalmente na China e na Índia, o tráfico se beneficiou dos baixos custos de fabricação, da facilidade de transporte, da enorme margem de lucro e da rede de traficantes mexicanos que dominam as rotas junto à fronteira com os Estados Unidos —os maiores consumidores mundiais de drogas ilícitas.

Ao contrário da heroína, consumida especialmente por pessoas que se concentram em áreas marginais das cidades grandes, o fentanil penetrou fundo na sociedade americana. A facilidade de distribuição e a potência farmacológica provocaram a tragédia que abala o país: as mortes por overdose que se disseminaram entre adolescentes e jovens de classe média, das pequenas cidades do interior. Foram 110 mil óbitos durante o ano de 2023; cerca de 80% causados pelo fentanil, medicamento em que as doses usuais estão muito próximas da dose letal.

Como resultado do aumento da disponibilidade do antídoto naloxone e das campanhas educativas nos meios de comunicação, a epidemia de overdoses começou a dar sinais de arrefecer, a partir de 2024.

A revista Time publicou um artigo em que analisa os novos opioides que começam a entrar nos Estados Unidos: "múltiplos análogos ou variações de opioides conhecidos como nitazenos têm sido detectados em uma dúzia de estados". "Alguns têm potência semelhante à do fentanil, outros são menos prevalentes, mas exponencialmente mais potentes."

A presença desses opioides no Brasil ainda é mal documentada. Até aqui, mesmo as apreensões de fentanil têm sido modestas quando comparadas às de crack e cocaína. É o momento certo para campanhas educativas alertarem sobre o risco de parada respiratória que essas drogas trazem. Esse não é um problema exclusivo de americanos e europeus, num mundo globalizado ele nos interessa de perto.

Nos anos 1980, apesar do tempo que tivemos para alertar nossas crianças, de que chegaria aqui a epidemia de crack que assolava as áreas mais pobres das cidades americanas, nada fizemos. Quando o crack invadiu o país, encontrou nossos jovens desprevenidos, sem noção do inferno em que se transformaria suas vidas.

"Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também", escreveu Lima Barreto.

Texto de Drauzio Varella na Folha de São Paulo
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/2025/10/a-presenca-de-alguns-opioides-no-brasil-e-mal-documentada.shtml