sábado, 22 de dezembro de 2012

O desACORDO ORTOGRÁFICO


Ruy Castro escreve:
Um acordo sobre o qual  ninguém concorda

O governo adiou para 2016 a obrigatoriedade de uso no Brasil do novo "acordo" ortográfico, marcada inicialmente para 1º de janeiro de 2013. Ou seja, de nada serviu a pressa dos nossos jornais e livros para aplicar o "acordo" assim que ele botou a cabeça de fora, em 2009. Com isso, pelos próximos três anos, quem quiser escrever "lingüiça", "qüinqüênio", "idéia", "contra-regra" e "vôo" em vez de "linguiça", "quinquênio", "ideia", "contrarregra" e "voo" poderá fazê-lo sem tirar nota vermelha na escola.

Para mim, nada se alterou. Não aderi ao "acordo" e continuo a produzir textos com os arcaicos tremas, circunflexos e hifens de sempre. Se os artigos saem bonitinhos na nova ortografia, é porque os editores e revisores dos jornais e livros de que participo os "corrigem" por mim. Não que eles também não façam duras restrições ao "acordo". Posso até garantir que não concordam com o fim dos acentos em "pára" (do verbo parar), "pêlo" e "pólo" -sobre o que, aliás, não foram consultados.
Nem eles, nem os professores, os escrivães, os secretários de reuniões de condomínio, os juízes de futebol (que têm de escrever as súmulas dos jogos que apitam), os autores de róis de roupa em lavanderias e qualquer pessoa que viva de escrever no dia a dia. Segundo sei, nenhum desses profissionais da língua foi ouvido sobre se concordava com os desenxabidos "leem" e "veem" no lugar de "lêem" e "vêem".
Algo me diz que a razão desse adiamento é para tentar convencer os portugueses a aderir ao "acordo" e abrir mão do "c" e do "p" em "facto", "direcção", "óptimo", "Egipto" -letras que influem na sua pronúncia dessas palavras. Mas para que unificar a ortografia se suas pequenas variantes são perfeitamente compreensíveis nos dois lados do Atlântico?
E que "acordo" é esse sobre o qual ninguém concorda?

Hélio Schwartsman escreve:
Capitulação lingüística
A decisão do governo federal de adiar para 2016 a obrigatoriedade do uso da nova ortografia nos faz pensar sobre a utilidade do malfadado acordo de 2008.
Em teoria, todos no Brasil deveriam, a partir de 1º de janeiro, adotar as novas regras. Grande parte das repartições públicas, veículos de comunicação e editoras já o fez, mas, como Portugal e outros países lusófonos relutam em acatar as mudanças, o governo optou pelo adiamento.
Essa reforma nunca me convenceu. O bônus alegado é mínimo e os prejuízos são palpáveis. Nunca foram meia dúzia de consoantes mudas e uns poucos acentos e hifens que dificultaram a intercompreensão, por via escrita, de falantes dos dois lados do Atlântico. Se existem barreiras, elas estão nas diferenças léxicas e nas particularidades semânticas de cada dialeto, que, felizmente, encontram-se fora do alcance de burocratas e reformadores de plantão.
À medida que crescem os indícios de que os portugueses jamais seguirão as novas regras -lá houve sábia reação popular contra o projeto-, fica claro que entramos numa fria. Só quem ganhou foram os editores mais ágeis, que já tinham prontos dicionários, gramáticas e material didático em acordo com a nova ortografia.
O pior é que recuar agora que a reforma já foi em larga medida implantada não reduziria os danos. Boa parte dos que aprenderam pelas normas antigas permanecerá até o fim de seus dias num frustrante limbo ortográfico, no qual se misturam desordenadamente regras de diferentes safras. E o fato de palavras aparecerem sob várias roupagens, sem uma forma muito fixa, dificulta o aprendizado da nova geração, que depende bastante da memória visual.
Na verdade, a própria ideia de legislar sobre o idioma é um contrassenso. Como todo sistema que depende de um acordo tácito entre milhões de falantes, a língua é um fenômeno complexo demais para beneficiar-se de regulação de cima para baixo.

Da Folha de São Paulo de 22/12/2012


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