Obra de ficção coletiva gera pânico nos pais que não acompanham os vídeos que seus filhos veem
O terceiro filme da série americana, “O Chamado 3” (2017), foi um sucesso comercial moderado, mas tremendamente desancado pela crítica. A franquia parece estar em modo pause por enquanto.
Oficialmente, pelo menos. Desde o ano passado, e mais ainda em fevereiro deste ano, os americanos de idade própria para terem assistido a “O Chamado” estão fascinados por mais uma menina demoníaca de cabelos desgrenhados e que ameaça as crianças: Momo. Como Samara, Momo seria capaz de possuir crianças e adolescentes por meio de telas.
Em uma versão de sua história, ela fascina as crianças com seu rosto chocante e então passa a lhes transmitir instruções cada vez mais mórbidas, culminando em suicídio. Versões posteriores da história avisam que ela aparece no meio de vídeos infantis, incentivando as crianças a se automutilarem. Há adaptações menores que descrevem Momo iniciando o primeiro contato ou rogando sua primeira praga através de mensagens particulares em aplicativos diversos ou chats de voz em games.
Nos últimos meses Momo foi tema de inúmeras reportagens de jornais locais, recebeu cobertura nacional alarmada com o tema de “jogos de suicídio” que viralizaram e chegou a penetrar a consciência de Kim Kardashian West, que aconselhou seus seguidores: “Monitorem o que seus filhos andam assistindo!”
Não há relatos dignos de crédito de crianças que tenham sido realmente influenciadas por qualquer pessoa que as tenha convencido a participar de um “Desafio de Momo” ou levadas a cometer suicídio pela imagem de Momo que se manifestou no meio de um vídeo de Peppa Pig.
Isso não impediu departamentos policiais, administradores escolares e veículos de mídia locais e nacionais pelo mundo afora de divulgar o fenômeno como sendo uma ameaça verificada e iminente, com base em relatos de segunda ou terceira mão de crianças aflitas, relatos esses transmitidos pelos pais das crianças. Também não está claro que qualquer dos alvos imaginados de Momo acredite que ela seja “de verdade”.
Esse pânico foi seguido por uma onda de cobertura em tom mais sério caracterizando Momo e o desafio como um “embuste”, avisando adultos crédulos que eles estavam abrindo a porta a trolls que poderiam chegar a representar elementos do mito só para assustar as pessoas, e que eles próprios estavam expondo crianças a conceitos violentos, desnecessariamente, pelo fato de estarem dando ouvidos à história.
Uma coisa é certa: o “Desafio de Momo” é um pânico moral que está se espalhando por canais novos e poderosos. Também é verdade que Momo é capaz de chamar a atenção das pessoas quase instantaneamente, aparecendo de modo assustador no meio da mídia delas. E, embora Momo realmente esteja perseguindo alguém mais ou menos das maneiras descritas, não está perseguindo as crianças, mas os pais delas.
MEDO, VINGANÇA E VIRALIDADE
O medo de Momo é intenso há anos, mas agora ela tem nome e rosto. Podemos aprender muito sobre Momo rastreando as maneiras como seu mito foi reescrito para adequar-se à sociedade em que se alastra. Um post deixado em setembro pela procuradoria geral do estado de Tabasco, no México, avisou que pessoas estavam entrando em contato com crianças no Facebook e dizendo ser “El Momo”.
Na Argentina e Índia, onde se alastraram relatos não confirmados e de origem pouco substanciada sugerindo que Momo teria levado a suicídios reais no ano passado, o “jogo” teria se proliferado no WhatsApp, aplicativo que é amplamente usado por crianças e adultos nesses países e que, na Índia, foi vinculado de maneira verossímil a assassinatos cometidos por máfias e inspirados por acusações e desinformações que viralizaram.
Consta que a Momo que melhor captou a imaginação do mundo anglófono aparece no meio de vídeos do YouTube, ou mesmo, como avisou Kim Kardashian West em seu post, no subsite para crianças YouTube Kids. Esses sites têm sido temas de reportagens crescentes e dignas de crédito sobre conteúdos violentos e perturbadores que chegariam a crianças e adultos predatórios que utilizam a plataforma.
De fato, desde que viralizou, Momo virou presença constante no YouTube, como objeto de análises, como brincadeira e como troll. Na sexta-feira (15) o YouTube anunciou que está “desmonetizando” (tirando anúncios de) todos os vídeos que contêm Momo, sugerindo que a atenção crescente anda tornando especialmente lucrativos os vídeos postados sobre ela.
E não é apenas o YouTube. Há uma Momo que supostamente assombra o Snapchat. Outra Momo invade vídeos no “Fortnite”, um game altamente popular entre crianças menores. Momo vai encontrar as crianças onde elas estão —ou, pelo menos, onde os pais delas pensam que elas estão.
Crianças e adolescentes vêm escrevendo histórias de terror há anos em vários espaços online, às vezes assinando com pseudônimos ou às vezes em um processo iterativo de grupo. Esses contos são conhecidos coloquialmente como “Creepypasta”, uma iteração do termo “copypasta”, que indica trechos ou blocos de texto ou histórias do tipo “corrente”, frequentemente copiadas e coladas em uma comunidade online dada. Os autores desses posts transmitem essas histórias para assustar uns aos outros, e, como bônus ocasional, às vezes suas histórias viralizam. (O personagem Slender Man —Homem Esguio—, que inspirou muitos games e um longa-metragem, “Slender Man: O Homem Sem Rosto”, foi popularizado por copypasta. A viralidade de Momo certamente se deve em parte a um caso de 2014 em que uma menina foi apunhalada por duas de suas amigas, que disseram mais tarde ter sido influenciadas por Slender Man.)
Momo é o que acontece quando adultos começam a escrever seus próprios textos de copypasta sobre seus próprios maiores medos: o que seus filhos estão fazendo na internet e o que a internet está fazendo a seus filhos.
VOCÊ SABE ONDE ANDAM SEUS FILHOS?
Os espaços onde se acredita que Momo se manifesta mais frequentemente já têm algo em comum: sua tendência a deixar pais ansiosos de qualquer maneira. São 22h –ou, digamos, 7h ou 17h—e os pais sabem, sim, onde estão seus filhos: com a atenção fixa sobre seus celulares ou tablets, fascinados por uma corrente de vídeos do YouTube interminavelmente recomendados, criados por desconhecidos cuja motivação é ganhar dólares com anúncios.
As crianças mais velhas estão batendo papo com seus amigos, ou pessoas que se dizem suas amigas, e passando horas incontáveis conversando entre elas em linguagem que, para seus pais, é praticamente codificada, em um game que parece se constituir em um universo social próprio. É comum que o tempo passado pelas crianças diante de telas seja contrastado com o tempo que elas passam ao ar livre ou praticando alguma outra atividade supostamente mais instrutiva ou enriquecedora. Mas o pânico em torno de Momo é inspirado por ideias muito mais antigas sobre o perigo representado por desconhecidos.
Esse pânico também tem algo em comum com os temores hoje antiquados sobre supostas mensagens satânicas secretamente embutidas em canções de rock, fenômeno esse que também só virou mais comum depois de a cultura mais ampla começar a ter medo dele. O pânico da música satânica é entendido por críticos moralizadores e pais preocupados como sendo algo que corrompe crianças e que é motivado tanto por interesses comerciais quanto por má vontade ou pelo mal propriamente dito.
Hoje, em 2019, o YouTube é visto como onipresente, poderoso e não sujeito a restrições. É um negócio que aparentemente não consegue, por exemplo, combater um problema nazista altamente visível. Vídeos horríveis já penetraram muitas vezes no YouTube Kids. A empresa acaba de anunciar que desabilitou “comentários de dezenas de milhões de vídeos que podem ser sujeitos a comportamento predatório” – ou seja, essencialmente, vídeos que mostram crianças.
Uma ONG pró-vacinas comentou que desistiu há muito tempo de usar o YouTube porque os vídeos do site estão cheios de conteúdos e recomendações contrários à vacinação. Para um pai ou mãe, o fato de o YouTube ao mesmo tempo ser uma das maiores e mais acessíveis centrais de entretenimento para crianças é no mínimo desconcertante.
O YouTube é um raro espaço em que as crianças podem passear livremente em 2019. Também é um espaço totalmente comercializado, e, pela ótica de pais, que é estocado quase exclusivamente com imagens genericamente alarmantes. Um clipe que deixa as crianças em transe e parece programá-las para fazer ou dizer certas coisas? Não é um clipe no meio de um vídeo de Peppa Pig –é o próprio vídeo de Peppa Pig. Um terceiro instruindo um espectador de olhos arregalados sobre como fazer alguma coisa no mundo real? Não é um assassino fazendo-se passar por Momo. É assim que a publicidade funciona no YouTube.
Na semana passada o YouTube disse a jornalistas: “Contrariando notícias publicadas na imprensa, não recebemos qualquer evidência recente de vídeos que transmitam ou promovam o desafio de Momo no YouTube”.
Mas o YouTube não deixa a desejar como fonte de horror psicológico. Telas e tempo passado diante delas são uma fonte de culpa e frustração intermináveis entre pais hoje em dia, e faz sentido que exista a necessidade de transferir esses sentimentos para um rosto, um personagem, alguém ou alguma coisa que tenha motivações fantasticamente perversas, em vez de para os serviços que estão, de fato, espionando para seus próprios fins o que as crianças estão fazendo. É no YouTube que as crianças podem estar assistindo sem supervisão e de repente verem um bando de crianças cantando “baby shark” repetidas vezes, amaldiçoando a elas e seus pais com uma música do tipo que não sai de sua cabeça e que, depois de sete dias, pode levar os pais a até desejar que um tubarão saltasse da tela para devorar a todos.
Uma ex-colega, mãe de uma criança pequena, me disse, falando metade brincando, metade a sério, que Momo é “o rosto de uma mãe que não dorme nem toma banho” há um tempão porque não tem tempo de se afastar de seu filho por um instante. Como todos nós, essa ex-colega não sabe nem consegue entender exatamente o que um serviço como o YouTube –ou o WhatsApp ou o “Fortnite”—quer de nós ou está fazendo a nós ou a qualquer pessoa, muito menos às crianças pequenas, mas não está preparada ou é incapaz de eliminar o YouTube inteiramente de sua vida.
O Desafio de Momo pode não ser real, mas Momo é mais do que apenas um embuste ou um pânico. Ela é uma obra bastante inteligente de ficção coletiva escrita sob o domínio de um pânico bastante estúpido, avatar de um espírito coletivo que não é tanto vingativo quanto cheio de sentimento de culpa, ansioso e impotentemente enfurecido. Ela estará conosco por um bom tempo, ou pelo menos sua franquia estará.
Reportagem THE NEW YORK TIMES na Folha de São Paulo de 19/03/2019
Tradução de Clara Allain
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/03/momo-o-terror-da-internet-so-e-real-para-quem-ajuda-a-espalhar-o-boato.shtml
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