quarta-feira, 31 de julho de 2019

ONU cobra que governos imponham limites para produção de bio-combustíveis

Jamil Chade correspondente internacional da rádio Bandeirantes informa que ONU vai cobrar que governos imponham limites para produção de bio-combustíveis
Em 24 de janeiro de 2007 este blog já alertava para o perigo iminente:

"Os tanques famintos dos automóveis seriam saciados com bio-combústivel, mas de onde virá o bio-combústivel?"
Em 07 de dezembro de 2007, voltei a alertar:
"No início de 2006 eu escrevi que encher o tanque dos automóveis com alimentos é loucura, alguns dias depois o Fidel Castro também alertou, mais tarde a ONU também alertou e agora que os preços dos alimentos subiram, podemos já sentir o início da crise nos alimentos que esta loucura ainda vai provocar" 

O corte de cabelo fatal

BOLSONARO SABOTOU O ACORDO MERCOSUL UNIÃO EUROPÉIA

O corte de cabelo fatal
Ao humilhar superministro francês, Bolsonaro arrisca sabotar acordo Mercosul-UE
O governo do presidente francês Emmanuel Macron é ideologicamente a favor do tratado com o Mercosul. Ele permite consolidar a aliança comercial da União Europeia, confrontada à ascensão nacionalista. O acordo também ajuda a vencer resistências internas ao projeto político de Macron, que tem na inserção internacional da França a sua principal agenda programática.

A França tem um longo histórico de pragmatismo nas relações internacionais. Raramente hesitou em colaborar com regimes autoritários no oriente médio e na África subsaariana para assegurar os seus interesses estratégicos.

Numa reviravolta inesperada, Macron se prepara para receber um dos seus maiores desafetos, Vladimir Putin, dias antes do G7 de Biarritz, marcado para 28 de agosto. Visivelmente, o presidente francês chegou à conclusão que a defesa da democracia liberal não pode interferir nos negócios.

Verdadeira instituição ambulante, o ex-socialista Jean Yves Le Drian é um dos raros superministros de Macron com autoridade política incontestável.

A sua vinda a Brasília tinha tudo para selar uma aliança entre dois governos ideologicamente antagonistas.

Bolsonaro optou por humilhar Le Drian, cancelando o encontro bilateral na última hora e surgindo logo depois, numa live, cortando o cabelo.

Diante de tal comportamento niilista, o governo francês não terá escolha senão abandonar a tentativa de aproximação com o Brasil.

Ao sentar na cadeira giratória, Bolsonaro sabotou um acordo costurado durante décadas e alienou apoio de governos europeus e latino americanos. Esse episódio será certamente lembrado como um dos momentos mais absurdos da história da diplomacia nacional.

Texto de Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra) na Folha de São Paulo de 31/07/2019
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/07/o-corte-de-cabelo-fatal.shtml

sábado, 27 de julho de 2019

Estudos ligam uso inadequado de redes sociais a depressão entre adolescentes

Hipótese é de que algoritmos que repetem determinados conteúdos podem reforçar quadros depressivos entre usuários; para especialistas, multiplicação de imagens que sugerem vidas perfeitas pode tirar sossego dos jovens
A barriga dói na expectativa da primeira curtida. E, se alguém com menos seguidores consegue “bombar” nas redes sociais, logo vem a sensação de fracasso como um aperto no peito. Parece ficção científica, mas é de verdade: a vida digital descontrolada tem causado efeitos no bem-estar de adolescentes e jovens. Enquanto eles começam a descobrir as emoções a que são expostos na internet, cientistas de todo o mundo estão atrás de evidências para entender como e por que estar nas redes sociais pode alterar o equilíbrio mental de quem já cresceu conectado.

“O Instagram era vinculado diretamente a minha autoestima, imagem e valor. Se não recebia muitos likes, começava a questionar o que fiz de errado”, diz a influenciadora digital Daniela Zogaib do Nascimento, de 25 anos. O Photoshop turbinava as fotos para os 78 mil seguidores, mas nunca era suficiente.

“Estamos todos nos comparando e nos sentindo mal porque tem sempre alguém acima que nos gera incômodo”, diz ela, que evitava até encontros presenciais com medo de frustrar quem a conhecia só pelas telas. Acuada, resolveu reagir: apareceu sem maquiagem ou filtros e relatou em um vídeo a pressão virtual. “Quando você está nessa teia, não consegue pensar como pessoa normal.”

Para especialistas, a multiplicação de imagens que sugerem vidas perfeitas, como as que Daniela acessava, pode tirar o sossego de adolescentes e jovens. “Acreditamos que o tempo de tela em que há comparação social, como fotos de colegas exibindo corpos perfeitos, tem correlação com sintomas de depressão na adolescência”, disse ao Estado Elroy Boers, do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Montreal, no Canadá. Boers é autor de estudo publicado neste mês no periódico Jama Pediatrics, que relacionou aumento de tempo nas redes sociais e na televisão a sintomas de depressão.

Durante quatro anos, 3,8 mil jovens de 12 a 16 anos preencheram questionários sobre o tempo em que permaneciam em frente a diferentes tipos de telas e sintomas de depressão. De acordo com Boers, além do fenômeno de comparação, outra hipótese é a de que algoritmos das redes (que permitem que conteúdos semelhantes aos já acessados sejam entregues aos usuários) podem reforçar quadros depressivos. O estudo não identificou elo entre videogames e depressão.

A pesquisa canadense se soma a outras que dão pistas sobre essa relação. No início do ano, estudo publicado na revista Lancet deu número aos riscos. Com base em dados de 10 mil adolescentes de 14 anos, o levantamento revelou que, entre os que passam mais de cinco horas por dia nas redes sociais, o porcentual de sintomas de depressão cresce 50% para meninas e 35% para meninos. Mesmo entre os que passam três horas há elevação de sintomas, de 26% para elas e 21% para eles.

Especialistas têm se preocupado com os dados, mas são cautelosos ao buscar relações de causa e efeito. Sabe-se que a depressão depende de muitos fatores e, portanto, atribuir o distúrbio apenas à rede social seria reduzi-lo.

“Há fatores predisponentes, como famílias desestruturadas, histórico, baixa autoestima. Mas, na medida em que jovens entram na rede social, isso puxaria o gatilho da predisposição. É um novo palco para manifestação dos problemas”, diz Cristiano Nabuco, do grupo de dependências tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). “Hoje, com as redes sociais, temos 5 mil amigos; nosso cérebro entende que estamos sempre muito atrás de muitas outras pessoas."

Twitter e Instagram planejam mudanças
Em meio a uma maior preocupação sobre saúde mental em tempos de internet, o Instagram anunciou neste mês o fim da contagem de curtida em fotos e visualizações de vídeos. A iniciativa é um teste no Brasil. “Não queremos que as pessoas sintam que estão em uma competição”, informou. Um levantamento de 2017 da Sociedade Real para Saúde Pública (RSPH), do Reino Unido, reconheceu a rede como a pior para a saúde mental de jovens.

Depois de perceber que estava em uma “paranoia” no Instagram, o estudante Maurício Oliveira, de 20 anos, suspendeu o acesso por um tempo. Antes, buscou até “compra de likes” para melhorar a performance. “Costumava publicar em horários com pico de acesso e, quando mais novo, cheguei a apagar quando via que não teve engajamento. Gerava a ansiedade.”

Testes como o do Instagram também estão no horizonte de outras empresas. Em sua plataforma de experiências lançada neste ano, o Twitter estuda recurso de esconder botões de likes e retuítes. O controle do tempo gasto nas plataformas já é possível por meio de ferramentas no Facebook e Instagram.

Contra o bullying, outro fator para desequilíbrio emocional dos jovens, o Instagram anunciou, ainda, recurso de alerta de ofensas. No Brasil, as agressões virtuais ganharam contornos trágicos há duas semanas, quando a influenciadora Alinne Araújo, de 24 anos, suicidou-se depois que o noivo terminou o relacionamento, na véspera do casamento. Ao publicar a decisão de casar-se consigo mesma em uma de suas contas, usada justamente para relatar a luta contra a depressão, Alinne recebeu uma chuva de críticas.

Para Rodrigo Martins Leite, coordenador dos ambulatórios do Instituto de Psiquiatria da USP, o caso revela um paradoxo: mesmo super conectados, talvez os jovens estejam mais sozinhos do que nunca. “No início, tinha-se a ideia de que as redes seriam potencializadoras de relações sociais concretas, mas estamos nos estranhando”, diz.

Para se blindar de sensações desagradáveis, o chamado “unfollow terapêutico” virou recomendação médica. E, segundo Leite, buscar contato presencial com pessoas – no lugar de arrobas – continua sendo a melhor saída contra a sensação de isolamento.

Isolamento pode ser indício a pais
1. Mediação. Redes sociais não são nocivas por si só e podem ser úteis para estudos e relacionamentos, mas dependem de mediação. Para Anna Lucia King, doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pais devem ficar atentos ao comportamento dos filhos, como tempo de conexão e teor de conteúdos vistos e publicados.

2. Tempo de tela. É importante garantir que o uso da internet não se sobreponha a momentos de interação presencial com a família e amigos e às atividades físicas. O horário de sono também deve ser preservado.

3. Sinais. Não é simples perceber depressão em crianças. “Dificilmente elas vão falar”, diz Rodrigo Leite, psiquiatra da USP. Isolamento, mudança brusca de humor e troca repentina de amigos podem ligar o sinal amarelo.

4. Apoio. Se for detectado um sofrimento ligado à internet, deve-se buscar ajuda profissional. Em alguns casos, pode ser recomendado deixar de seguir perfis considerados nocivos ou mesmo se afastar de algumas plataformas por um tempo.

'Na verdade, você está preso’
Depoimento de Paula Silva, de 18 anos, estudante:

"Não acho que minha depressão veio da internet, mas a internet colabora. Fico em uma bolha, posso conviver com pessoas que pensam como eu, posso criar um modelo de uma vida que não é real e perder o foco do que acontece. Uma das redes que não uso mais é o Instagram. É impossível ver a foto de alguém com um corpo bonito e não se sentir inferiorizada. Você sente que não tem uma vida boa o suficiente. Eu não precisava de mais de três minutos para sentir que precisava mudar tudo em mim. Minhas fotos tinham de ser em um ângulo perfeito, com luz perfeita, sem nada que alguém pudesse usar para criticar. Cheguei ao ponto de demorar horas para postar. Você tem a sensação de liberdade, de que pode falar o que quiser, mas na verdade está preso."

Reportagem de Júlia Marques e Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo 27 de julho de 2019

https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,estudos-ligam-uso-inadequado-de-redes-sociais-a-depressao-entre-adolescentes,70002942161

segunda-feira, 15 de julho de 2019

CPMF, o zumbi quer voltar

AUTOENGANO
Na semana passada, empresários voltaram a defender a adoção de um imposto sobre transações financeiras.
O nosso sistema tributário certamente tornou-se disfuncional e deve ser reformado. Essa proposta, porém, tem efeitos colaterais indesejáveis.
Nos países desenvolvidos, a principal fonte pagadora de tributos é a geração de renda.
No Brasil, caso a proposta seja aprovada, vai ser diferente. Tributos serão pagos mesmo em transações que não resultem em aumento da renda, como a venda de bens com perda de capital. Um carro comprado por R$ 40 mil e vendido por R$ 30 mil pagará o tributo.
O aumento do número de operações sobre as quais incide a tributação permitirá desonerar a produção, o que sugere que o resultado será o aumento dos lucros. Recomenda-se calma com o andor.
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A desoneração da produção será integralmente compensada pela maior tributação dos consumidores, reduzindo a sua renda. O resultado será a menor demanda por bens e serviços, que implica queda dos preços ou das quantidades vendidas e, portanto, das margens de lucro.
Há mais. Como esse tributo é cumulativo, os bens com cadeias longas de produção, como a indústria, ou os setores com menor margem de lucro, como o varejo, passarão a pagar mais tributos do que as demais atividades. O preço de uma geladeira vai aumentar em comparação ao custo de contratar um decorador.
Os problemas não param. As empresas com frequência precisam tomar empréstimos por alguns dias. Para cada R$ 100 emprestados são cobrados poucas dezenas de centavos.
Caso o tributo sobre movimentações financeiras seja de 2,5%, uma empresa que necessite de R$ 100 terá que tomar emprestado R$ 102,56. Para que o banco receba o que emprestou, a empresa terá que pagar mais de R$ 105.
A taxa de juros irá aumentar cerca de cem vezes para um empréstimo de poucos dias. Vamos ter saudade dos juros do cartão de crédito.
Pode-se isentar a cobrança do imposto nas operações de crédito, mas esse é só um exemplo dos muitos casos que deverão ser excepcionados para evitar a degradação do ambiente de negócios.
Os defensores da proposta argumentam que os informais passarão a pagar tributos, reduzindo a carga sobre o setor formal. No entanto, as transações informais pouco passam pelo sistema financeiro, que tem instrumentos para prevenir a lavagem de dinheiro.
O novo tributo vai incentivar a adoção de mecanismos para minimizar a transferência formal de recursos, como o aumento das transações em dinheiro e os contratos de gaveta.
Como dizia Santa Teresa D’Avila: há mais lágrimas derramadas pelas preces atendidas do que pelas não atendidas.

Texto de Marcos Lisboa, presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
Na Folha de São Paulo de 14/07/2019
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-lisboa/2019/07/autoengano-2.shtml

terça-feira, 9 de julho de 2019

A doença das ideologias

A “nova direita segue o primeiro messias que aparece na paisagem, indiferente a questões de civilidade ou caráter
Conservadores e progressistas precisam uns dos outros para sobreviver
Ilustração de Angelo Abu para João Pereira Coutinho de 9.jul.2019
Haverá uma crise do conservadorismo? A revista The Economist, em edição recente para ler e guardar, acredita que sim.

Acredita bem. Quando olhamos para a Europa, onde estão os partidos conservadores tradicionais? Não estão. Desapareceram na França ou na Itália. Diminuiram de tamanho e influência na Alemanha ou na Espanha. E qual foi a razão para esse eclipse?

O crescimento e a ascensão de uma “nova direita”. Explica a Economist: o conservadorismo tende a ser pragmático, desconfiado das grandes mudanças, antiutópico e avesso a líderes carismáticos ou a cultos de personalidade.

A “nova direita”, pelo contrário, é fortemente ideológica; apresenta uma vocação revolucionária mais própria de jacobinos ou bolcheviques; e segue o primeiro messias que aparece na paisagem, indiferente a questões de civilidade ou caráter. E como foi que essa crise do conservadorismo apareceu? A Economist apresenta duas razões.

Em primeiro lugar, o declínio do conservadorismo tradicional acompanhou o declínio dos “pequenos pelotões” de que falava Edmund Burke, como a religião ou a família.

Em segundo lugar, a crise financeira de 2008 e as aventuras militares no Afeganistão e no Iraque foram o descrédito dos velhos partidos de direita, acusados de cupidez ou irresponsabilidade. Para a revista, a crise do conservadorismo será longa.

Concordo com o diagnóstico. A “nova direita”, ou uma parte substancial dela, foi tomada de assalto pela mais antiga metástase do conservadorismo: o espírito reacionário.

Por espírito reacionário, entenda-se: uma mentalidade radical, muito semelhante à mentalidade revolucionária, e que pretende recusar o presente na sua totalidade (um presente que se percepciona como inapelavelmente corrupto) para construir uma nova ordem política, social ou moral purificada.

A situação não é nova. Como lembra a revista, é até bem velha: a reação à Revolução Francesa não produziu apenas a crítica “liberal” de Burke, mas também as respostas radicais de Joseph de Maistre, para quem a França deveria regressar a 1788. E, já no século 20, o conservadorismo metastizou-se no fascismo e no nazismo (e no franquismo e no salazarismo).

Só discordo da Economist num ponto fundamental: não é apenas o conservadorismo que está em crise. O liberalismo, no sentido progressista do termo, conhece uma crise igual.

Para ficarmos nos países citados pela revista, a esquerda tradicional desapareceu da França ou da Itália, e também perdeu força na Alemanha ou na Espanha.

E, tal como sucede com a “nova direita”, a “nova esquerda” também repudiou a herança da esquerda tradicional. Basta ver como as classes trabalhadoras do Reino Unido, da França ou da Itália, já para não falar dos Estados Unidos, votaram nas eleições mais recentes. Exato: entregaram os seus votos a Nigel Farage, Marine Le Pen, Matteo Salvini ou Donald Trump.

A “nova esquerda”, em gesto tão revolucionário como os revolucionários da “nova direita”, abandonou os seus eleitores e os seus princípios —e tornou-se individualista, narcísica, capturada pelos dramas minoritários (e, por isso, eleitoralmente irrelevantes) da “identidade”.

Não é por acaso que o ensaísta Mark Lilla, depois de dedicar um livro ao pensamento reacionário (“A Mente Naufragada”), escreveu outro sobre a crise da esquerda americana (“O Progressista de Ontem e o do Amanhã”).

Nas palavras de Lilla, a revolução individualista de Ronald Reagan na década de 1980 pôs um ponto final no programa cívico inaugurado pelo New Deal de Franklin Roosevelt. Essa revolução foi tão profunda que desfigurou até a própria esquerda, infectando-a com o vírus do egocentrismo tribalista.

Vivemos uma era de extremos —e, mais importante, uma era em que os extremos se alimentam mutuamente. Isso significa que as crises do conservadorismo e do liberalismo só podem ser ultrapassadas quando as respetivas ideologias regressarem ao seu elemento normal, saudável, racional.

Para os conservadores, isso significa a recusa do utopismo reacionário e a revalorização do realismo e do ceticismo políticos. Para os progressistas, a recusa do tribalismo identitário e o retorno à base social e apoio que a “nova esquerda” desertou.

Ironia: as duas ideologias que nasceram com a modernidade precisam uma da outra para sobreviver.

Texto de João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa. Da Folha de São Paulo de 09/07/2019 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2019/07/a-doenca-das-ideologias.shtml

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Idiotas da autoestima

Os pais sentem culpa por acharem um saco tomar conta dos 'pentelhos'

Vou descrever uma cena e depois vou perguntar o que você acha dela. Cenário: um restaurante bem frequentado da zona oeste de São Paulo.

Uma criança com cerca de cinco anos corre perto da mesa onde se encontra sua família, com uma taça de vidro de vinho vazia nas mãos. A família conversa acaloradamente. O restaurante cheio, as mesas umas ao lado das outras. Sexta-feira à noite. De repente, um ruído de vidro quebrando. A criança, o que era óbvio de se esperar, derrubou a taça no chão.

É razoável imaginar que os pais não perceberam que a criança corria de um lado para o outro com a taça de vidro nas mãos. Às vezes, ainda mais numa sexta-feira à noite, tudo o que você quer é relaxar, e não ficar vigiando o “pentelho”. Com o ruído da taça se espatifando no chão, os pais se levantam e correm até a criança. Pedaços de vidros se espalham pelo chão, caindo, inclusive, nas mesas em volta, nos pratos das pessoas, e mesmo nos cabelos das mulheres próximas ao incidente. Vou propor duas reações possíveis que os pais tiveram e você “vota”.


Reação A. Os pais correm a acudir a criança para ver se tudo estava bem com ela e, em seguida, passam a pedir desculpas às pessoas próximas, mortos de vergonha pelo ocorrido. Em seguida, buscam ajuda dos garçons para limpar a área atingida pelos cacos minúsculos de vidro.

Reação B. Os pais correm a acudir a criança para ver se tudo está bem com ela, enchem a criança de beijos, dizem que não foi nada, que a culpa não foi dela, e voltam para a sua mesa sem se dirigir às pessoas das mesas em volta e sem buscar ajuda junto aos garçons a fim de garantir que os cacos de vidro não permaneçam, colocando todo mundo ao redor em situação de risco.

Se você votou na reação A, errou. O que aconteceu foi a reação B, por incrível que pareça. Talvez, não tão incrível assim. Afinal de contas, a única preocupação dos pais foi garantir que a criança não se sentisse culpada pelo que aconteceu. A rigor, os culpados foram eles, adultos, responsáveis pelo que uma criança de cinco anos faz.

As avós sempre nos ensinaram que crianças não podem mexer em determinadas coisas.

Mesmo que, num momento de desatenção, você não veja que seu filho brincava com um objeto de vidro (todo mundo pode perder de vista uma criança de vez em quando), na sequência do incidente, após ver se tudo está bem, você deveria vestir o manto da humildade e pedir desculpas aos outros.

Mas as avós estão fora de moda. O que está na moda é uma pedagogia e psicologia da economia da autoestima das crianças. E isso está destruindo a educação, as escolas e as próprias crianças.

Os pais mais jovens hoje fazem dos seus filhos pequenos ditadores, perguntando a eles o tempo todo “o que desejam”. Num movimento de suposta instauração do “direito das crianças” não fazerem o que não querem, os pais fazem dessas crianças adultos insuportáveis, incapazes de lidar com os desafios que qualquer vida normal traz para as pessoas.

Aposto que, em poucos anos, não haverá mais avaliação alguma nas escolas, e essas existirão apenas para reforçar a autoestima dos pequenos mimados de 25 anos. Mas, afinal de contas, qual a causa disso?

Seriam muitas. Muita gente capaz está estudando o fenômeno, tentando entender por que os jovens, hoje em dia, entram na universidade com uma idade mental afetiva de uma criança de dez anos. As escolas são usinas de idiotas da autoestima. Eu arriscaria uma intuição acerca de uma das possíveis causas.

Além do conhecido narcisismo epidêmico do mundo contemporâneo (que faz dos adultos uns retardados mentais em geral), acho que uma das principais causas desse fenômeno é a culpa que os pais sentem por acharem um saco ter que tomar conta do “pentelho” —quase sempre um pentelho único.

Filhos estão fora de moda e diminuem a sensação de felicidade, autonomia e autoestima dos próprios pais (neste caso especifico porque, quando você tem filhos, você é continuamente julgado pelas pessoas à sua volta, principalmente as mães).

O número de mentiras cresceu no mundo contemporâneo. Por exemplo: os pais morrem de medo que seus filhos venham a ser gays, lésbicas ou trans, mas quem confessar é fuzilado imediatamente.

A cultura Instagram transformou todos em idiotas de vidas posadas. A única forma de editar a criação dos filhos é fingir que está sempre tudo bem, e que tanto eles quanto os pais sempre vivem um roteiro de amor perfeito contínuo.

Texto de Luiz Felipe Pondé na Folha de São Paulo de 08/07/2019
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

https://www.facebook.com/jgeraldosilva/posts/10219262530504782