segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O caso Mariana Ferrer

Acusado de estuprar Mariana Ferrer é absolvido, gera revolta e levanta debate sobre como a violência sexual contra a mulher é tratada na Justiça


A influenciadora Mariana Ferrer relata ter sido dopada e estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha em 15 de dezembro de 2018; O acusado foi indiciado por estupro de vulnerável e absolvido na última quarta-feira (9)

Desde a noite da última quarta-feira (09), o nome de Mariana Ferrer está entre os assuntos mais comentados do Twitter. O motivo é a absolvição pela Justiça do empresário André de Camargo Aranha, a quem a influenciadora acusa de tê-la estuprado em 15 de dezembro de 2018, durante uma festa no famoso Café de La Musique, onde trabalhava como embaixadora, em Florianópolis, Santa Catarina.

O caso veio a público quando a blogueira compartilhou um relato em suas redes sociais, em maio do ano passado. Ela não poupou detalhes, divulgando um vídeo do circuito de segurança em que aparece entrando e saindo do local onde teria sido violentada, prints de mensagens e áudios que enviou a amigas pedindo ajuda e uma foto do vestido que usava naquela noite, manchado de sangue. Ela relata ter sido dopada e diz lembrar apenas de flashes do ocorrido, o que fez com que André fosse indiciado por estupro de vulnerável.

A blogueira contou ainda que registrou boletim de ocorrência e fez exame de corpo delito no dia seguinte ao ocorrido — onde relata ter sido atendida somente por homens — e publicou prints do laudo pericial que confirmou a presença de sêmen na calcinha que usava. Um exame posterior constatou que o esperma encontrado era compatível com o DNA do empresário paulistano, que chegou a afirmar que nunca tinha tido contato físico com ela.

Ao longo do processo, Mariana disse que fotos suas foram manipuladas pela defesa do acusado para desacreditá-la e afirmou que via "clara obstrução das provas e favorecimento do denunciado e dos envolvidos no crime" pela Justiça. Suas denúncias ganharam apoio nas redes sociais, com centenas de usuários publicando a hashtag #justicapormariferrer. No mês passado, a conta da blogueira foi derrubada do Instagram.

Em sentença publicada nesta quarta-feira (9), o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, absolveu André Camargo Aranha. O magistrado acolheu os argumentos da defesa do empresário, liderada pelo advogado criminalista Claudio Gastão da Rosa Filho, e a própria posição do Ministério Público de Santa Catarina, que se manifestou nos autos pela absolvição do réu pela "ausência de provas contundentes para corroborar a versão acusatória".

A decisão gerou revolta entre os apoiadores de Mariana e levantou um debate sobre como o crime de estupro é tratado pela Justiça brasileira.

Incoerências no processo

A assistência de acusação, que representa Mariana Ferrer no processo, falou com exclusividade à CELINA em uma entrevista realizada pelo telefone nesta quinta-feira (10). Para a advogada Jackie Anacleto, o posicionamento do MPSC foi contraditório:

— O MP foi incoerente porque não deu peso para o depoimento da vítima. Mariana afirmou que não queria ter relacionamento sexual com o André Aranha. No entanto, eles acreditam que o ato foi consentido. As provas, desde o início, mostram o contrário. No processo penal, não se pode usar uma prova isolada, mas o MP fez isso com o vídeo. Existe o áudio que ela manda para as amigas e para a mãe no Uber reforçando que foi violentada. Na manifestação sobre a absolvição que o juiz cita “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”, definitivamente não diz respeito ao caso da Ferrer. Não condená-lo é pelo privilégio social e financeiro. Se fosse uma pessoa com menos recursos, teria sido diferente — diz.

A advogada aponta incoerências durante o processo e constrangimentos sofridos pela influenciadora digital. Ela informa que vai haver o recurso de apelação da sentença:

— A Mariana foi dopada. As drogas do sexo possuem complexidade e o exame toxicológico foi divulgado com um lapso temporal — afirma Anacleto, explicando que o exame foi feito em dezembro de 2018 e o resultado divulgado em abril de 2019.

— Além da inconsistência no exame, foi comprovada o rompimento himenal e material genético do empresário nas roupas da vítima. Durante o processo, a defesa do acusado tentou deslegitimar a vítima apresentando fotos dela com decotes e biquínis. Em uma delas, a foto estava manipulada, como se a Mariana estivesse sem blusa, quando na verdade estava de biquíni. Na hora do interrogatório, no final de julho, o advogado da defesa de Aranha, Cláudio Gastão, zombava do fato de Mariana ser virgem. Na sala, só tinham promotores, juízes e defensores públicos homens, o que influenciou o processo — diz.

A defesa do réu e o MP comentaram o caso por meio de nota (leia mais abaixo).

MP se manifestou pela absolvição

A absolvição determinada pelo juiz nesta semana seguiu a posição do próprio Ministério Público. Quando uma denúncia de estupro é registrada na polícia e o inquérito é enviado ao MP, cabe a este órgão apresentar ou não uma ação, pois se trata de uma ação penal pública incondicionada. Ou seja, o MP é o titular da ação. Quando recebeu o inquérito, o MP de Santa Catarina decidiu propor a ação do caso de Mariana, mas ao final do processo, se manifestou pela absolvição.

— Isso não é comum, mas acontece. O MP que apresenta a denúncia, é o titular da ação penal. Mas pode, ao final do processo, se convencer que as provas coletadas em juízo não foram suficientes e aí pede a absolvição — explica a advogada criminal Clara Masiero, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Para a advogada Marina Ganzarolli, que atua em casos de violência contra mulher há mais de 13 anos e é uma das idealizadoras do #MeTooBrasil, esse tipo de conduta do MP é mais comum nos crimes de violência sexual contra a mulher:

— Essa atitude não é comum. No entanto, quando se trata dos crimes contra a dignidade sexual, é recorrente tanto a remissão quanto o arquivamento dos casos. Tem uma série de provas que colaboram com a condenação do acusado no caso Mari Ferrer. A seletividade do sistema penal e o baixíssimo nível de condenações em crimes contra a dignidade sexual são os problemas estruturais. A palavra da vítima tem menor valor para o judiciário — ressalta.

Em nota, o promotor Thiago Carriço de Oliveira, responsável pela manifestação nos autos, afirmou que o MP apresentou a denúncia para buscar a formação de elementos de prova em juízo."Diversas testemunhas foram ouvidas, tendo sido examinado todo material apreendido na casa do acusado, como aparelhos de celular, tablets, computadores, sendo realizadas também perícias, exames de DNA, exames toxicológicos e filmagens em ambientes públicos e privados", disse.

Após analisar todos os elementos, o promotor afirma que não descarta a hipótese de inconsciência alegada por Mariana. "Todavia, os exames toxicológico e de alcoolemia testaram negativo no dia seguinte ao fato. Do mesmo modo, não se identificou nos autos nenhuma prova indicando que o acusado tivesse oferecido ou ministrado bebida ou droga para a vítima. Não há uma testemunha, imagem ou indício neste sentido."

"Do mesmo modo, não foram constatados elementos que comprovassem que o acusado tinha conhecimento da suposta inconsciência da vítima. A prova produzida não permitiu confirmar de maneira segura e incontestável que o acusado teria agido com dolo de estuprar a vítima", disse o promotor, afirmando que "todas as manifestações de inconsciência ou recusa da vítima são posteriores ao fato."

"Pelo que indica a investigação, com base nas provas materiais, exames, perícias e testemunhos, o que poderia ter ocorrido seria a possibilidade daquilo que a lei enquadra como 'erro de tipo essencial', ou seja, o acusado teria se envolvido sim com a vítima, mas sem a intenção ou consciência de que seu ato seria um crime e também não teria como saber, neste caso específico, se ela poderia estar sob efeito de droga ou embriagada, a ponto de não ter discernimento sobre os seus atos."

A pedido da reportagem, a advogada Clara Masiero analisou o posicionamento do MP. Não foi possível ter acesso aos autos ou à sentença completa, porque o processo corre em segredo de Justiça.

— Sem acesso aos autos, o que parece é que o MP não descartou que ela estivesse inconsciente, mas entendeu que não houve prova suficiente de que o acusado sabia disso. E isso precisava ser provado para que houvesse a condenação por estupro de vulnerável. A Justiça só vai punir um crime penal grave como esse se tiver a prova inconteste de que ele agiu de forma reprovável. Se não foi possível provar que houve essa intenção, a Justiça não pode punir — explica.

Em nota, o advogado do réu, Claudio Gastão da Rosa Filho, reforçou a posição do MP:
"O Ministério Público reuniu centenas de provas, dez depoimentos de testemunhas, incluindo oito mulheres, vários exames periciais e todas as evidências mostraram que não houve estupro. Por essa razão, o MP pediu a absolvição, no que foi seguido pelo juiz. Suas afirmações a respeito de um alegado estupro e supostas consequências ocorreram apenas nas redes sociais. Em seu depoimento ao juiz, Mariana diz que não se lembra o que aconteceu. Esse episódio, contaminado por mentiras, impacta negativamente na luta pela dignidade das mulheres. Mariana prestou um desserviço a todos."

O crime de estupro no Brasil

O crime de estupro tem pena de 6 a 10 anos de reclusão. Se for estupro de vulnerável, de 8 a 15 anos. Não há dados nacionais oficialmente compilados que demonstrem quantos casos terminaram com a condenação ou prisão do acusado. Mas há evidências de que poucos casos de fato chegam ao sistema de Justiça. Ao decidir registrar uma denúncia na polícia, Mariana foi uma exceção.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 66.041 casos de estupro foram registrados em 2018 (dado mais recente disponível). Um estudo feito pelo Ipea em 2014, com base nos dados do sistema de saúde, estimou que ocorrem anualmente 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país, dos quais somente 10% são reportados à polícia.

Considerando as estimativas de ocorrência e o número de notificações dos estupros no Brasil, o perito criminal e presidente da Academia Brasileira de Ciências Forenses, Hélio Buchmüller, estimou, em um artigo publicado em 2016, que apenas 1% dos crimes de estupro seriam punidos no país.

Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) referentes ao segundo semestre de 2019, apenas 0,18% das pessoas encarceradas no país respondem por crimes contra a dignidade sexual. Entre os crimes hediondos e equiparados, apenas 2,98% respondem por estupro.

— O que dá para se afirmar é que o crime de estupro, pela forma como ele ocorre, é um crime de difícil produção probatória. É claro que depende muito do contexto. Mas se não tem marca da violência, perícia que comprove a violência sofrida, testemunhas, ou se a palavra da vítima não tem nenhum outro tipo de corroboração, é, de fato, um crime mais difícil de ser demonstrado — afirma a advogada criminalista Clara Masiero.

— Há também uma construção histórica da sociedade que é o julgamento que se faz sobre essa vítima. Existe uma dificuldade em denunciar por causa disso. Há um senso comum de que algumas mulheres, as mulheres “honestas”, como se dizia antigamente, podem ser estupradas, e outras, que não cabem nesse perfil, não — completa a pesquisadora.

Na opinião da advogada Marina Ganzarolli, o caso de Mariana Ferrer destaca os obstáculos no judiciário brasileiro no debate sobre o estupro no país.

— A violência sexual não atingiu uma compreensão de que é um problema de segurança e saúde pública e de todos. A desqualificação da palavra da vítima está penetrada em uma sociedade com dominação machista e patriarcal. Não à toa os casos de violência sexual são subnotificados — diz.

Para Ganzarolli, é é fundamental que o sistema penal atue integrando táticas de enfrentamento à violência contra mulher:

— A agressão sexual, de forma majoritária, é feita entre quatro paredes. É a palavra da vítima contra a do agressor. O relato da Mariana é o que se espera. Não é consistente. É um discurso traumático. Se o promotor ou juiz não estão formados para o enfrentamento à violência baseada no gênero e formados a neurobiologia do trauma, tendemos a irresponsabilidade — completa Marina, que reflete sobre o estigma atribuído às sobreviventes de violência sexual: — Além disso, temos o problema da compreensão do judiciário brasileiro sobre o que é consentimento. Não é porque a mulher não gritou que ela disse sim. Nesse sentido, a revitimização causa mais trauma do que o próprio evento— diz.

Reportagem de Leda Antunes e Gabriela Oliva no blog Celina d'O Globo

https://oglobo.globo.com/celina/acusado-de-estuprar-mariana-ferrer-absolvido-gera-revolta-levanta-debate-sobre-como-violencia-sexual-contra-mulher-tratada-na-justica-24633120

Covid-19 veio para ficar, e precisamos nos preparar para conviver com o vírus

O infectologista Esper Kallás reflete sobre o que nos espera após a onda pandêmica do novo coronavírus


[RESUMO] Em reflexão sobre o que nos espera após a onda inicial de pandemia, infectologista avalia que o vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, irá circular por um longo tempo, uma vez que outros tipos de coronavírus saltaram de animais para humanos há mais de cem anos e ainda estão entre nós. Diante das dúvidas a respeito de vacinas a curto prazo e da imunização em larga escala, e na ausência de remédios comprovadamente eficazes, será necessário concentrar esforços no entendimento da doença e no encontro de outros métodos de tratamento.

Diante do sofrimento e do impacto global sem precedentes em nossa história moderna, desde as grandes guerras da primeira metade do século passado, a pergunta que todos fazemos é: o que acontecerá depois da onda de pandemia da Covid-19?

Apesar de parecer exercício de futurologia, é possível formular algumas previsões sobre o que virá adiante, com base no que foi aprendido até o momento.

Muito provavelmente, o novo coronavírus veio para ficar

COMO OS HUMANOS ENFRENTAM OS CORONAVÍRUS

Outros coronavírus, que causam resfriado comum, já convivem com os humanos há muito tempo. São quatro, denominados de HCoV: dois do gênero alfa, chamados HCoV-NL63 e HCoV-229E, e dois do gênero beta, HCoV-OC43 e HCoV-HKU1. São também do gênero beta os três coronavírus que mais recentemente causaram epidemias ou pandemias: Sars-CoV-1, Mers-CoV e Sars-CoV-2, este último a causa da atual pandemia.

Esses sete coronavírus capazes de nos infectar “saltaram” de animais silvestres para humanos em algum momento da história. Isso aconteceu com o Sars-CoV-1 em 2002, com o Mers-CoV em 2012 e com o Sars-CoV-2, como sabemos, agora, em novembro de 2019. Já sobre os outros HCoV, conhecemos muito pouco.

O HCoV-OC43, por exemplo, parece ter feito seu “salto” ainda no século 19. Aparentemente, está entre nós há cerca de cem anos. Poderia ter causado uma pandemia, tal como vemos hoje com o novo coronavírus? Não podemos responder sim ou não, mas devemos levar em consideração que o conhecimento científico àquela época era, comparativamente, bastante limitado.

Os vírus foram descobertos em 1876 —o vírus do mosaico do tabaco, que infecta plantas, foi o primeiro. Em 1881, foi identificado, pela primeira vez, um vírus capaz de nos causar alguma doença —o da febre amarela. Além disso, àquela altura, a média etária da população era baixa, e a medicina moderna ainda estava em fase embrionária. O próprio termômetro clínico só seria colocado em uso no início do século 20.

Diante dessa realidade, é possível que uma pandemia causada pelos coronavírus conhecidos tenha passado totalmente despercebida, assim como por outros que podem não ter deixado rastros.

Hoje, sabemos que os quatro coronavírus que causam resfriado comum, os HCoV, o fazem principalmente em crianças. São responsáveis por até aproximadamente 30% dos casos de infecções respiratórias durante o ano, com pico nos meses mais frios.

Soa como um paradoxo quando os comparamos com o novo coronavírus, que causa doença bem mais grave em idosos e praticamente não acomete as crianças. Qual seria o motivo dessa aparente contradição na “preferência” entre os coronavírus?

Há uma hipótese de que esses quatro HCoV teriam cursado caminhos parecidos ao do Sars-CoV-2. Em resumo, foram introduzidos na população também a partir de animais silvestres. Tal como ocorre agora com o novo coronavírus, os HCoV causaram suas próprias epidemias no passado. Levaram ao acúmulo de pessoas com defesa à medida que se espalharam, por períodos que não conhecemos com precisão.

A partir de então, novas infecções pelos HCoV se concentram, em sua maioria, naqueles que ainda não tinham imunidade: a medida que vão nascendo, as crianças que não foram expostas a uma epidemia anterior.

Tendo em vista que os coronavírus acometem principalmente crianças, causando, na grande maioria das vezes, apenas sintomas leves — fato bem-documentado com o Sars-CoV-2 nesta pandemia de Covid-19—, e considerando que os HCoV circulam entre nós há muitos anos, é muito provável que o novo coronavírus percorra o mesmo caminho que os HCoV e, assim, passe a conviver com a humanidade, a partir de agora, infectando bebês e crianças das futuras gerações.

Adultos e idosos, hoje o grupo majoritariamente acometido pela Covid-19, serão menos frequentemente atingidos no futuro, seja porque muitos já faleceram em decorrência da forma grave da doença ou porque sobreviveram e estão imunizados. Tal como ocorreu anteriormente com os HCoV, restará ao Sars-CoV-2 infectar as crianças do futuro, com o leve resfriado comum aos infectados desta faixa etária.

Em outros termos, é possível que todos esses coronavírus estejam repetindo o mesmo caminho: causam a morte dos pacientes mais vulneráveis e selecionam sobreviventes que conseguiram construir sua imunidade, restando infectar as crianças das gerações futuras, que crescerão como adultos imunes à doença.

É possível que todos esses coronavírus tenham começado com uma única e grande onda pandêmica, evoluindo como germes inofensivos para as gerações futuras. Parece plausível, mas não podemos aguardar anos para confirmar uma teoria, sob o preço de acumular um enorme e inaceitável número de mortos.

Embora não frequentemente, os HCoV podem infectar pessoas mais de uma vez. Há estudos científicos bem conduzidos que acompanharam um número grande de pessoas e conseguiram isolar o material genético do mesmo tipo de vírus com intervalos de meses, ou até por mais de um ano. A boa notícia é que a infecção repetida parece não resultar em doença: o vírus transita temporariamente pelas vias respiratórias, sem causar mal maior.

Relatos de reinfecção pelo Sars-CoV-2 começaram a ser confirmados nas últimas semanas. Por enquanto, são eventos raros e sem impacto significativo na pandemia. Contudo, a implicação de tais eventos vai além e será posta a seguir.

IMUNIDADE POPULACIONAL

Logo que o Sars-CoV-2 foi descrito, pouco se sabia sobre a resposta imune que os humanos comumente apresentam contra essa família de vírus. Os estudos se limitavam a observações esparsas sobre os coronavírus comuns, contando apenas com impulsos recentes por duas epidemias causadas por dois outros coronavírus, o Sars-CoV-1 e o Mers-CoV.

Alguns protótipos de vacinas foram testados, mas acabaram abandonados diante da redução na circulação desses dois vírus. Sem saber, perdeu-se uma preciosa oportunidade de preparação para o que estava por vir: a pandemia de Covid-19.

Há duas maneiras de considerar o que representa uma defesa imune contra os coronavírus. A primeira diz respeito à proteção completa e total contra a infecção: a imunidade esterilizante, a qual não permitiria que o vírus sequer conseguisse se multiplicar. Com ela, o organismo já teria uma linha de frente pronta, capaz de neutralizar o germe à entrada no corpo, sem admitir a instalação da sua infecção.

Na segunda alternativa, considera-se alguma proteção contra a doença, diante da qual o vírus poderia até se multiplicar, mas o sistema imune o eliminaria assim que o percebesse, impedindo a doença de se desenvolver.

Ainda não sabemos qual é o marcador biológico que indica a real imunidade contra os coronavírus. Em outras palavras, ainda precisamos definir o marcador de proteção para dizer se um indivíduo está, de fato, protegido ou não —e isso se estende à infecção pelo Sars-CoV-2 e ao desenvolvimento da Covid-19.

Há indícios de que a formação de anticorpos, moléculas capazes de grudar na superfície do vírus, denotam proteção. Entretanto, existem diferentes tipos de anticorpos, sendo os mais desejados pelos cientistas aqueles que grudam e também neutralizam o Sars-CoV-2.

Denominados de anticorpos neutralizantes, eles já vêm sendo produzidos artificialmente em maior escala como forma de tentar tratar a Covid-19. Experimentos em animais mostraram que anticorpos neutralizantes reduzem a capacidade de multiplicação do vírus nas vias respiratórias, limitando a chance de aparecimento da doença.

Uma das principais características dos coronavírus é sua preferência por se multiplicar na camada mais superficial do sistema respiratório, infectando as células da mucosa, desde a cavidade nasal até as ramificações terminais dos pulmões.

Podem também chegar a terminações nervosas próximas ao sistema respiratório, como os nervos relacionados ao olfato e ao paladar. Não à toa, a anosmia (incapacidade de sentir cheiros) e a ageusia (perda do paladar) são sintomas comuns em pessoas acometidas pela Covid-19. Com menor frequência, os coronavírus podem ainda chegar a outros órgãos.

O sistema de defesa de uma pessoa que já foi infectada pelo Sars-CoV-2 teria uma vantagem: por já ter “visto” o vírus, pode construir uma linha de defesa para um eventual reencontro. Tudo indica que a grande maioria de pessoas que passaram pela Covid-19 estão protegidas: um estudo em Nova York apontou que mais de 98% desses pacientes apresentaram anticorpos contra o Sars-CoV-2 detectáveis em até três meses, enquanto outro estudo conduzido na Islândia apontou 91% em até quatro meses.

Quanto tempo, exatamente, dura a imunidade contra o Sars-CoV-2? Difícil dizer, uma vez que esse vírus nos ronda há menos de um ano, sem ainda nos oferecer tempo suficiente para dar esta resposta. Todavia, reinfecções já foram descritas em casos envolvendo os HCoV, enquanto os primeiros relatos similares começam agora a aparecer com o Sars-CoV-2.

Isso mostra que ao menos uma parcela da população não conseguirá desenvolver a imunidade esterilizante por longo tempo e, assim, abrirá espaço para que o vírus continue circulando na população —mais um indício de que o novo coronavírus veio para ficar.

Essa característica, junto ao fato de um grande contingente de infectados não ter sintomas, explica porque será muito mais difícil erradicar o Sars-CoV-2, como se conseguiu com o vírus da varíola.

VACINAS

Há imensa expectativa de descoberta de uma vacina segura e eficaz, capaz de conter a pandemia de Covid-19. Motivações econômicas e políticas se somam às pressões da sociedade, para que esse processo aconteça com celeridade.

Nessa corrida contra o tempo, muitas são as questões a serem consideradas. Qual é a forma mais rápida de descobrir uma vacina? Qual o meio mais seguro? Quais estratégias têm mais chances de funcionar? Qual é a capacidade de produção de vacinas para atender mais de 7 bilhões de pessoas? Quais os grupos prioritários para a aplicação dos primeiros lotes produzidos?

Políticos, chefes de Estado e autoridades de todos os cantos do mundo projetam prazos e esperanças. Embora saibamos que as vacinas figurem entre as descobertas científicas mais importantes para a ampliação do tempo de vida do homem moderno, também sabemos que todas apresentarão algumas limitações. Uma vacina contra a Covid-19 precisa ser analisada com o devido rigor científico, não como uma panaceia.

É verdade que jamais se viu uma corrida tão intensa à procura de uma vacina eficaz. São aproximadamente 200 produtos em desenvolvimento, dos quais 35 já estão em fase de testes em humanos, de acordo com levantamento da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Tal feito, em si, representa um grande experimento. Todos esses produtos têm a mesma finalidade: simular a infecção sem causar a doença que o germe original costuma provocar —é isto o que uma vacina faz.

Para alcançar a imunização desejada, as vacinas podem utilizar diferentes abordagens. Dentre as estratégias estudadas contra o Sars-CoV-2, algumas são tão inovadoras que nem sequer chegaram às fases finais de desenvolvimento contra qualquer outro germe. Outras baseiam-se em métodos mais tradicionais —por exemplo, utilizando vírus enfraquecido ou atenuado, como é o caso das excelentes vacinas contra o sarampo, a rubéola e a febre amarela.

As vacinas de vírus atenuados (enfraquecidos) são consideradas boas, pois os vírus ainda têm capacidade de multiplicação após sua administração, gerando um estímulo para o sistema imune. Por outro lado, sua produção exige checagens de segurança mais rigorosas, as quais, naturalmente, demandam mais tempo.

Em outra classe de vacinas, são utilizados vírus mortos, como é o caso da vacina da gripe. Essa abordagem, reconhecidamente, sofre outro tipo de problema: sua capacidade de estimular o sistema imune é um pouco mais limitada. Também por isso, é preciso que a vacinação da gripe seja repetida todos os anos. A proteção oferecida por essa vacina é comparativamente menos duradoura, ainda mais diante da diversidade do vírus contra o qual ela atua.

Além das vacinas de vírus “inteiro”, atenuado ou morto, são estudadas formas alternativas de imunização, que apresentam apenas a superfície viral ao sistema de defesa. Dessa forma, ele conseguiria fazer a leitura e memorização dessa informação, montando a proteção necessária contra germes inteiros.

A grande maioria dessas novas vacinas tem apostado em uma proteína específica, disposta na parte externa do vírus, conhecida como spike. Supõe-se que, se o organismo for capaz de reconhecer essa proteína, haverá proteção contra o Sars-CoV-2.

Será, entretanto, que uma resposta exclusiva contra a spike é suficiente para nos proteger da Covid-19? Ou seria preciso que outras partes da superfície do vírus estivessem representadas nessa vacinação? Somente os resultados dos testes trarão essas respostas.

Algumas estratégias consistem em produzir a spike, ou pedaços dela, para vacinar as pessoas. Outra seria colocar a informação genética da spike dentro de algum vírus inofensivo, conhecido como vetor. As duas estão em desenvolvimento, com vários estudos já cursando a fase final. Há, contudo, muito poucas vacinas licenciadas contra outros germes que usam essas estratégias e, portanto, a experiência é limitada.

Outra abordagem bastante inovadora inclui vacinas que utilizam material genético, DNA ou RNA. São consideradas seguras e, portanto, permitiriam um passo mais acelerado em seu desenvolvimento, com rápido início de testes em humanos.

Quanto tempo irá durar a proteção? Teremos que vacinar mais de uma vez na vida? Ainda é cedo para responder. Somente o acompanhamento a longo prazo nos dirá se basta uma ou se precisaremos de mais vacinações ao longo da vida.

E O FUTURO?

O SARS-CoV-2 está trilhando o caminho que o tornará o quinto coronavírus com o qual teremos de conviver. Suas características —a capacidade de transmissão e os artifícios que utiliza para escapar da resposta imune— parecem garantir que esse convívio se dará por um longo período.

Qual a solução para que possamos retornar ao cenário mais próximo àquele em que vivíamos antes da atual pandemia?

Descobrir uma ou várias vacinas eficazes pode ajudar, desde que consideradas as devidas limitações. Ainda não sabemos se a vacinação levará à imunidade esterilizante, que impediria a circulação do vírus caso todos fossem vacinados. Ainda assim, a eficácia parcial, especialmente em idosos, os mais vulneráveis à Covid-19 em sua forma mais grave, é tida como certa.

Uma alternativa que deve ser explorada é o uso combinado de diferentes vacinas contra a Covid-19. Infelizmente, a excessiva politização e os interesses econômicos envolvidos na corrida pelo licenciamento das vacinas têm dificultado melhores entendimentos para tais colaborações. Combinar vacinas com características diversas poderia potencializar o efeito e levar a um maior nível de proteção, especialmente em idosos.

Uma solução mais imediata seria descobrir um remédio eficaz, com efeito antiviral potente, que impeça a progressão para formas graves da doença logo durante o aparecimento dos primeiros sintomas.
Enquanto isso, continuam as buscas por medicações ou anticorpos neutralizantes produzidos em laboratório que preencham tais requisitos.

Infelizmente, a hidroxicloroquina não se mostrou capaz de cumprir esse papel. Uma pletora de estudos clínicos já apontou que ela não apresenta qualquer eficácia no tratamento ou prevenção da Covid-19.

Deve-se, portanto, preparar a sociedade para conviver com esse novo vírus. Por isso, precisamos concentrar esforços no entendimento da epidemiologia, da resposta imune e dos mecanismos da doença, bem como no encontro de formas mais eficazes de tratamento e no desenvolvimento de vacinas que reduzam o impacto do vírus na saúde pública. Afinal, o novo coronavírus parece ter vindo para ficar.

Agradecimentos a Fabiana Gabas Kallas, Lucas Mandacaru Bosco e Euclides Ayres Castilho pela rigorosa e valiosa revisão e contribuições.

Texto de Esper Kallás, médico infectologista, professor titular da Faculdade de Medicina da USP na Folha de São Paulo de 11/09/2020

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/09/covid-19-veio-para-ficar-e-precisamos-nos-preparar-para-conviver-com-o-virus.shtml

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Sem sintomas, brasileira carregou coronavírus por cinco meses

Sem sintomas, brasileira carregou coronavírus por cinco meses, caso mais longo de infecção já documentado
Em trabalho pioneiro, cientistas da UFRJ acompanharam o caso de uma mulher que permaneceu 152 dias com o Sars-CoV-2 Testes de Covid-19 sendo realizados no Laboratório de Virologia Molecular do CCS-UFRJ Foto: Fabio Motta / Agência O Globo
A persistência do coronavírus no organismo de algumas pessoas é muito maior do que se pensava. Num trabalho pioneiro, cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) acompanharam e documentaram o caso de uma mulher que permaneceu 152 dias infectada com o Sars-CoV-2 com capacidade de se multiplicar, isto é, potencialmente contagioso.
Essa é a mais longa persistência de coronavírus já documentada no mundo e evidencia o importante papel dos assintomáticos na propagação da pandemia.
O trabalho é dos grupos dos cientistas Luciana Costa, Amilcar Tanuri e Teresinha Marta Castineiras, professores do Instituto de Microbiologia, do Instituto de Biologia e da Faculdade de Medicina da UFRJ. Ele reforça a hipótese de que os assintomáticos são os pilares de sustentação da disseminação do Sars-CoV-2.
A mulher, identificada apenas como a Paciente Número 3, é uma profissional de saúde do Rio de Janeiro que adoeceu em março, sem maior gravidade. Ficou três semanas com sintomas leves e não precisou ser internada. Depois, os sintomas se foram, mas não o coronavírus.
O caso é o mais longo, mas não é isolado. Essa descoberta faz parte do trabalho da força-tarefa de estudo do coronavírus realizado pela UFRJ e coordenado pela professora Teresinha Marta, que desde março testou por RT-PCR (molecular) mais de 3.000 pessoas (o número de casos aumenta a cada dia), em sua maioria profissionais de saúde do estado do Rio de Janeiro.
Luciana Costa destaca que 40% das pessoas testadas continuaram a ser positivas 14 dias após o aparecimento dos sintomas, o período padrão de negativação pelo Ministério da Saúde. Isto é, quando a pessoa deixa de transmitir o vírus e poderia sair do isolamento e voltar a trabalhar.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) estipulam um prazo ainda menor, de 10 dias estando assintomáticas por três dias consecutivos.
Em cerca de 60% das pessoas infectadas, o coronavírus deixa de se replicar nas vias aéreas superiores após 10 dias. Por isso, não pode ser mais transmitido. O coronavírus não faz viremia, ele não circula no sangue. Porém, cientistas supõem que possa se esconder em outras partes do corpo, que funcionem como reservatórios.
Em algumas pessoas, por motivos ainda desconhecidos, ele poderia deixar seu esconderijo e voltar a se multiplicar em boca e nariz, sendo de novo transmissível. O grande problema e o que faz o vírus insidioso é que a pessoa pode não manifestar sintomas, não saber que está contagiosa e mais uma vez e propagar a Covid-19.
A Paciente N° 3 faz parte de um detalhamento do estudo com os profissionais de saúde. Luciana Costa e seu grupo selecionaram 50 pessoas que retornaram mais de duas vezes para fazer a testagem e investigaram seus casos em minúcias.
A Paciente N° 3 faz parte de um detalhamento do estudo com os profissionais de saúde. Luciana Costa e seu grupo selecionaram 50 pessoas que retornaram mais de duas vezes para fazer a testagem e investigaram seus casos em minúcias.
Os pesquisadores da UFRJ agora pesquisam se as 42 pessoas que não tiveram vírus capazes de se multiplicar desenvolveram os chamados anticorpos neutralizantes, os únicos capazes de destruir o coronavírus. A questão é que esses testes são demorados e artesanais. Não podem ser realizados em grande escala.
— Por isso, consideramos que profissionais de saúde só devem retornar ao trabalho após negativarem em exames moleculares de PCR. E para a população, em geral, a segurança só virá com uma vacina. Antes disso, é máscara e distanciamento social — frisa Costa.
A história da Paciente Nº 3 revela uma faceta importante dos mecanismos que mantêm viva a pandemia. Ela foi testada em março, ao procurar o posto da UFRJ com sintomas. Estes permaneceram por três semanas. Assim como o coronavírus.
A mulher continuou a se testar, e a cada sete dias era colhida uma amostra. Por dois meses, ela foi ao laboratório e continuou positiva. Luciana conta que a mulher começou a ficar angustiada com a situação e ficou um tempo sem aparecer no laboratório.
Ao longo desse período, ela pode ter transmitido o vírus, e isso ainda está sendo determinado. Ela voltou a procurar o laboratório por temer estar ainda infectada. Sua suspeita foi comprovada. O vírus estava presente em suas vias aéreas superiores e ativo.
A Paciente N° 3 é um caso evidente de persistência do vírus. Ela não foi reinfectada. Essa possibilidade foi afastada porque a sequência genética do coronavírus era a mesma em todas as amostras. Ela tampouco desenvolveu anticorpos neutralizantes, mas não adoeceu de novo. Uma hipótese é que tenha sido protegida diretamente por células do sistema imunológico.
— Essa mulher viveu cinco meses com o coronavírus. O caso dela foi descoberto porque é uma profissional de saúde, mais atenta para o risco de transmissão e desde cedo participou do estudo. Mas suspeitamos que a persistência não é rara. Pode haver muita gente assim, e isso ajuda a explicar por que a circulação do coronavírus continua a se manter — salienta Costa.
Se muita gente adoecesse, seria difícil para o vírus continuar a circular em grande escala.
— Uma das características que faz o Sars-CoV-2 perigoso é que ele circula em muita gente sem sintomas, que nem sabe que está infectada. E são essas pessoas que o levam adiante com eficiência. Os doentes são evidentes e nem saem tanto de casa. Mas os assintomáticos são a forma invisível de o coronavírus se espalhar — frisa a Costa.