quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Não tome vacina

Todos os dias, em ocasiões distintas, as consequências de não ter recebido uma das doses da vacina que evitaria minha contaminação pelo vírus da poliomielite têm um papo com minha consciência, com meu futuro e com minhas emoções.




Não tome você uma vacina, qualquer, não dê a seus filhos a proteção descoberta e trabalhada pela ciência e ganhe para sempre a ausência de um sossego, às vezes, atormentador, chamado refletir a respeito do “e se”.

E se eu pudesse correr, como seriam meus cabelos e como andaria a minha pressa? E se eu pudesse jogar minha filha para o alto, como seria a risada de nós dois? E se eu pudesse ter amado alguém num canto, num encanto de ondas, numa cabana lá longe, no teto ao luar, meu coração teria outra batida, minhas inquietações seriam mais bem assistidas?

Ter contraído paralisia infantil de maneira severa e bastante incapacitante, a ponto de me limitar o andar por toda a existência, fez de mim uma pessoa que, também para sempre, cultivaria a prática de pensar a respeito de como seria uma outra vida possível.



Não tome vacinas e flerte com o risco de ter um corpo desencontrado, por dentro e por fora, daquilo que é a referência de quase todos ao seu redor. Não há pecado nem nada de muito errado nisso, mas prepare-se para ter muita energia e muita companhia para praticar o “eu me amo, eu me gosto, eu sou feliz assim”.

Preciso concordar com o presidente Bolsonaro quando ele diz que ninguém pode ser obrigado a jogar para dentro do próprio organismo um avanço humano que tente garantir-lhe que não sofra dores lancinantes, não passe grande tempo de sua existência tentando amenizar sequelas, não conviva com um tormento mental por seu corpo não responder adequadamente à sua mente.

Preciso concordar que ninguém é obrigado a se vacinar por ser isso também um ato fraterno, um ato de compaixão com os mais vulneráveis, mais expostos, mais dispostos à ação dos organismos desestabilizantes.

Não vacinar, no caso do coronavírus, pode ser atentar contra a própria vida, mas e daí? Se a gente não obrigar as pessoas a se vacinarem, também ninguém vai ter de se preocupar em saber como os pobres irão se imunizar, como a vacina irá chegar aos ermos —foi em um ermo que fui abatido—, como proteger os velhos, os indefesos, os ingênuos, os desprotegidos…

Cada um tem de ter o poder de saber o que é melhor para si, mesmo aqueles cujo “si” se harmoniza, se protege e se resguarda com o “nós”. Tudo tão reluzente, tudo tão livre, tudo tão triste.

Não tome vacina para colaborar com o recrudescimento do climinha egoísta, arrogante e intolerante do mundo.
Esse climinha que faz a quem guarda algum tipo de diferença– física, sensorial, intelectual, de gênero, de tonalidade– penar um pouquinho mais para ser gente.

Direitos individuais não podem jamais se sobrepor ao princípio nato do “serumano” de agir diante da fatalidade alheia, de tentar estender a mão a quem se afoga, de acalorar aquele que treme.

O que a gente faz pelo outro, a ciência já demonstrou, catapulta o cérebro, faz apaziguar a alma e as angústias, engrandece o caminho.

O planeta está em uma situação de desespero extremo, em via de enfrentar novos cenários de um desastre humano em todos os cantos.

Elixires com o potencial de evitar novas ondas de tristeza profunda e devastação mental estão em curso e são promissores. Tomar vacina é opção. Eu não tive. Use bem a sua.

O texto do jornalista Jairo Marques, que é cadeirante desde a infância, está na Folha de São Paulo de 11/11/2020
https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2020/11/10/nao-tome-vacina/ 

domingo, 8 de novembro de 2020

Conviveremos com o coronavírus por muitos meses, senão por anos

A rotina de ir para o escritório que amofinava seus dias agora é um sonho

Quando vejo jovens da classe média alta aglomerados nos bares, sem máscara, sinto um misto de decepção e de desprezo


Você quer sair, encontrar os amigos, jantar fora, beber no bar, viajar para Minas. A rotina de ir para o escritório que amofinava seus dias agora é um sonho, José.

Nós sabíamos que seria difícil manter o afastamento social por muito tempo. Com 15 milhões de pessoas aglomeradas em moradias precárias nas favelas, 46% das quais sem água encanada, como ficar em isolamento?

Todos concordaram que os serviços essenciais não podiam parar. Mas eles são mantidos por quem? Pelos que trabalham em mercados, padarias, farmácias e portarias de prédios, pelos entregadores e seguranças e pelos informais encarregados dos pequenos serviços. Era evidente que a mobilidade obrigatória dos menos desfavorecidos levaria o vírus para a periferia das cidades.

O preço pago pelos que vivem nos bairros distantes tem sido desproporcional. A prevalência da infecção pelo vírus na pobreza da zona sul de São Paulo é quase quatro vezes maior do que na zona centro-oeste, de poder aquisitivo mais alto. Em todas as cidades brasileiras, a mortalidade atingiu níveis mais elevados entre pobres e pretos, como acontece com doenças de caráter epidêmico, desde a Antiguidade.

Quando vejo os mais jovens da classe média alta aglomerados nos bares e restaurantes, sem máscara, sinto um misto de decepção e de desprezo.

Eles se comportam como se o vírus não existisse ou como se não fosse problema deles. Bancam os corajosos para impressionar os amigos, ridicularizam os mais cuidadosos, mas, ao surgir a primeira febrícula, correm para os melhores hospitais da cidade, mortos de medo de morrer, sobrecarregando e pondo em risco os profissionais de saúde que cuidarão deles.




Isso quando não levam o vírus para os pais, para crianças e pessoas vulneráveis da família. Daria tudo para saber o que lhes passa pela consciência quando um ente querido infectado por eles vai parar na UTI.

Quanto à empregada da casa que contraiu o vírus do patrãozinho, o remorso do transmissor é provavelmente nenhum. Ela e os parentes que se arranjem. Não é para isso que existe o SUS?

A exposição irresponsável ao vírus é, antes de tudo, um ato de egocentrismo covarde. O temerário se arrisca não por ser destemido e estar disposto a arcar com as consequências de seus atos, mas por acreditar que os mais jovens serão poupados. Se não se preocupa nem sequer com a própria família, vamos pretender que tenha consideração pela comunidade? Que venha a entender que, assim agindo, participa ativamente da disseminação da epidemia?

Embora alguns médicos ainda acreditem que um antimalárico ou um prosaico vermífugo administrados nas fases iniciais curem a Covid, a fé é de pouca valia nesta hora. Achar que a vacina nos salvará assim que disponível é pensamento mágico, o caminho da imunização em larga escala será longo, penoso e cheio de incertezas. A tal imunidade de rebanho antes da existência de uma ou mais vacinas eficazes não passa de miragem.

A conclusão, José, é que conviveremos com esse coronavírus por muitos meses, senão por anos. Não é pessimismo, olhe o que ocorre na Europa, na Ásia e, especialmente nos Estados Unidos, o exemplo máximo de como a cegueira estúpida de um dirigente pode causar uma tragédia de proporções inimagináveis. Ou é por acaso que os Estados Unidos, o país mais rico do mundo, ostentam o título de campeões mundiais de mortalidade?

Sejamos sensatos, meu amigo, é tarde para chorarmos o leite derramado. De agora em diante temos de concentrar nossos esforços em reduzir a velocidade de disseminação da epidemia. No decorrer deste ano aprendemos que o vírus é transmitido por via respiratória, preferencialmente em lugares fechados, quando as pessoas se aproximam umas das outras. Aprendemos que a higiene das mãos e o uso de máscara são medidas protetoras. Não é pouco, já sabemos o essencial.

Nosso desafio é a adoção de medidas para evitar aglomerações e convencer a população a colocar máscara ao sair de casa. Essa deve ser a ênfase das campanhas de saúde pública e do exemplo que cada um de nós deve dar às crianças, aos que não estudaram e aos ignorantes que frequentaram as melhores escolas.

O uso de máscara é medida simples, protetora, acessível a todas as camadas da sociedade, mas enfrenta o problema da mudança de hábitos, dificuldade maior do comportamento humano.

Texto de Drauzio Varella, médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru” na Folha de São Paulo de 08/11/2020

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/2020/11/a-rotina-de-ir-para-o-escritorio-que-amofinava-seus-dias-agora-e-um-sonho.shtml