sábado, 7 de agosto de 2021

Lei Maria da Penha completa 15 anos

 'O fundamental não é aumentar a pena, mas preservar a vida da mulher', diz Maria da Penha nos 15 anos da lei que leva seu nome

Maria da Penha Fernandes, 76 anos, dá nome à principal lei de enfrentamento a violência contra a mulher do país, que completa 15 anos em vigor no próximo sábado

Aos 76 anos, Maria da Penha Fernandes é um ícone da luta das mulheres brasileiras por uma vida livre de violência. A farmacêutica cearense foi vítima de dupla tentativa de feminicídio, em 1983, quando ficou paraplégica. O agressor era seu marido. Sua luta por justiça resultou na condenação do Estado brasileiro por omissão e tolerância à violência contra a mulher pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), em 2001, e na criação da lei de proteção à mulher que leva seu nome.

Em vigor desde 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha foi desenhada a partir de um amplo debate e com intensa participação social, especialmente do movimento de mulheres, e adotou uma perspectiva feminista, destacando que garantir a segurança das mulheres significa reconhecer e respeitar seus direitos civis, sociais, culturais e econômicos. No entanto, mesmo depois de 15 anos em vigor, a implementação da lei, considerada uma das melhores do mundo, ainda deixa a desejar, especialmente em seus aspectos educativos e preventivos.

Em entrevista ao GLOBO, Maria da Penha, que dedica sua vida ao combate à violência doméstica, critica o desinvestimento do governo federal na área, diz ser "esdrúxula" a ideia de armar mulheres para protegê-las e enfatiza a importância de se discutir o tema da violência de gênero nas escolas:

— É necessário investir em educação. Só a educação é capaz de desconstruir essa cultura machista, que é a origem da violência contra a mulher.

CELINA: A senhora sofreu violência quando uma sequência de assassinatos de mulheres por seus companheiros tomou conta do noticiário. A imprensa e a opinião pública, no entanto, por muito tempo relativizaram esses crimes, tomando o lado dos agressores. Como se sentiu naquela época? O

MARIA DA PENHA FERNANDES: Eu sofria uma violência psicológica muito grande e minhas filhas sofriam violências físicas, porque ele [o companheiro] não tinha paciência de lidar com criança. Eu comecei a me sentir muito incomodada com aquela situação, mas não existia esse termo "violência doméstica”. Quando acontecia alguma coisa, quando uma mulher era morta, a pergunta que surgia era "o que será que ela fez para merecer isso?". No meu caso, o início da história foi um assalto. Ele simulou um assalto. Quando a polícia descobriu que o assalto não aconteceu foi que começou a minha grande luta por justiça, que demorou 19 anos e seis meses para ter uma resposta.

Nesse período, ele foi submetido a dois julgamentos. No primeiro foi condenado, mas saiu do fórum em liberdade e isso me revoltou muito e resultou na criação de um livro, chamado “Sobrevivi... posso contar”, em que eu descrevo as contradições dele, minha história de vida com ele. Esse livro, que eu considero a carta de alforria das mulheres brasileiras, chegou até a OEA pela ação de duas ONGs brasileiras, o Cladem e o Cejil, que denunciaram junto comigo a tolerância do Estado brasileiro em relação aos casos de violência contra a mulher.

Foi só a partir do meu exemplo que comecei a prestar mais atenção e tomei conhecimento do movimento de mulheres, especialmente do Sudeste, que estavam dando muita visibilidade aos casos que aconteciam na região. Quando o movimento chegou na minha cidade, eu passei a participar das caminhadas, dos encontros. Isso tudo depois da separação. Depois da tentativa de assassinato, eu voltei para a casa dos meus pais com as minhas três filhas. Saí de casa com um documento chamado “separação de corpos”, para que a minha saída não representasse abandono do lar. Quando a senhora decidiu contar sua história e lutar por justiça, imaginou que se tornaria esse símbolo?

Não, nunca. Só imaginava que ficaria registrada a inoperância do poder judiciário, porque ele foi inoperante e machista comigo. Mas a dimensão que o meu livro ganhou foi muito maior e muito mais importante do que eu podia imaginar.

Vamos completar 15 anos de vigência da lei que leva o seu nome. Como avalia esse período? O quanto avançamos e o quanto ainda falta avançar para combater a violência doméstica no Brasil?

A lei que leva o meu nome, uma homenagem simbólica que me foi dada, é considerada pela ONU uma das três melhores do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher. A lei tipifica as formas de violência, dá oportunidade a mulher de ser atendida por políticas públicas essenciais para ela se conscientizar sobre os seus direitos e saber que caminho seguir para sair daquela situação, traz medidas de proteção. É uma lei completa e muito importante, mas muito ainda precisa ser feito, principalmente em relação à educação. É necessário que as pessoas sejam conscientizadas no nível fundamental, médio e universitário sobre os direitos das mulheres. É muito importante que isso seja implementado na educação, porque as crianças que convivem com a violência doméstica aprendem a ser violentas em casa. Elas observam esse comportamento em casa e reproduzem nas suas relações na adolescência e vida adulta.

A senhora vê a Lei Maria da Penha como um marco para mudar a forma como a sociedade brasileira olha para a violência contra a mulher?

Foi um marco. A criação da lei ajudou muito as pessoas a entenderem a violência contra a mulher, inclusive a imprensa, que muitas vezes não noticiava devidamente os fatos, via apenas o lado do agressor. Hoje não tem mais a pergunta que eu ouvi muitas vezes: "o que foi que a senhora fez para merecer esse tiro?" Era uma pergunta muito dolorosa e machista, e eu cheguei a comentar isso com as pessoas que me faziam esse tipo de pergunta. Para um dos repórteres que me perguntou isso, eu disse: "olha, se você está pensando que eu traí o meu marido, esse não foi o fato. Mas quantas mulheres matam seus maridos porque são traídas? Não existe isso. E a dor da traição é a mesma. A pergunta que você fez é uma pergunta machista.” Falei na lata. Ele disse que não era ele perguntando, mas o público que queria saber. E eu disse então que estava respondendo para que ele repassasse ao público.

Recentemente vieram a público os vídeos do DJ Ivis agredindo a esposa. Não faz muito tempo Tatiane Spitzner foi jogada da sacada do seu apartamento no Paraná, mas não sem antes gritar por socorro e não receber auxílio de ninguém. Ainda que tenha havido uma mudança na sociedade, muitas mulheres ainda sofrem violência sob o silêncio de familiares ou vizinhos que preferem "não meter a colher". Por quê?

Esse comportamento é arraigado na nossa cultura machista. A importância da educação está justamente aí. Só a educação é capaz de desconstruir essa cultura. Só assim teremos mais pessoas sensibilizadas em ajudar. Todos nós devemos ajudar uma vítima de violência doméstica. Seja denunciando no 180 ou chamando o 190 para que a polícia chegue no local e salve essa mulher e prenda o marido em flagrante.

A Lei Maria da Penha foi concebida sob a premissa de igualdade de gênero, prezando pelo processo educacional necessário para combater a violência. Como vê a atuação de governantes que empreendem um discurso contrário a discussões sobre gênero nas escolas? É possível combater a violência contra a mulher sem lutar pela igualdade de gênero?

Não é possível. Existe um projeto-piloto no qual os homens que estão presos passam por um curso para identificar o porquê da sua agressividade. A maioria deles diz que aprendeu na infância, que viu seu pai bater na sua mãe, seu avô bater na sua avó. Isso era considerado normal e eles acabam levando isso para a vida adulta. Esse discurso contra a discussão nas escolas não pode existir mais. Precisa haver um investimento em educação porque só a educação destrói a cultura do machismo.

O que é preciso ensinar na escola?

Eu tenho uma experiência pessoal que acho que dá essa dimensão. Os filhos das militantes feministas da minha época aprenderam a respeitar os direitos humanos. Eles são hoje bons maridos e boas esposas. Minha esperança é que a educação faça isso para a sociedade de uma maneira geral, que ensine a importância de se respeitar os direitos humanos das mulheres.

Em março, a partir de uma investigação feita por CELINA, a plataforma de gêneroe diversidade do GLOBO, descobrimos que o gasto com ações de combate à violência contra a mulher em 2020 foi o menor da década. Como vê a atuação do atual governo, em especial do Ministério da Mulher, neste sentido?

Eu lamento, o investimento diminuiu. Era para ter uma Casa da Mulher Brasileira em cada estado, mas infelizmente, isso não aconteceu. Temos poucas funcionando. E sei que algumas já estão começando a falhar no seu atendimento. Aqui no Ceará uma será aberta, mas grande parte do investimento é estadual. Por que não investir para construir uma Casa da Mulher Brasileira em cada estado? Isso facilitaria a vida da mulher ao colocar em um só local todas as políticas públicas que vão atendê-la nessa situação.

Além disso, é necessário que todos os municípios, por menores que sejam, tenham um centro de referência de atendimento à mulher. Assim como tem o Conselho Tutelar, só que no caso da mulher, dentro da unidade de saúde, porque é o local para onde ela corre primeiro para tratar dos seus ferimentos, do corpo ou da alma. Ali ela vai ser atendida por profissionais especializados, passa pelo atendimento psicológico, jurídico e social.

Uma grande parte dos assassinatos de mulheres envolve arma de fogo e o governo federal tem atuado para liberar o uso e o registro de armas no país. Desde 2017, os registros subiram 100%. Como a senhora vê essa atuação do governo?

Isso coloca em risco a vida das mulheres. É um pensamento esdrúxulo você achar que ter uma arma vai proteger a mulher. A mulher não tem a intenção de matar o homem. Não é a arma que vai resolver, mas a implementação de políticas públicas que dêem condição para essa mulher sair com segurança de uma de uma relação abusiva.

Para muitas mulheres, romper a relação não significa estar em segurança. Muitos feminicídios acontecem justamente quando a mulher tenta romper o ciclo de violência. Como protegê-las neste momento mais crítico?

Se o agressor foi preso, é porque a mulher corria risco de vida. Se ele vai ser solto, essa mulher tem que ser informada e protegida. Ela precisa sair de sua casa e ir para um abrigo, que a lei determina que exista. Se esse juiz não faz isso, a vítima corre perigo. A gente já viu isso acontecer, e a mulher foi assassinada no momento em que esse agressor saiu da cadeia. A gente precisa que os órgãos de classe analisem o comportamento do seu corpo de juízes e os capacite periodicamente para que isso não aconteça, para que mulheres que têm medidas protetivas não sejam mortas.

A pandemia fez a violência contra a mulher aumentar, mas dificultou a realização das denúncias. Como avalia as ações empreendidas pelos governos e pela sociedade civil para lidar com este problema?

A sociedade e algumas pessoas que fazem parte de órgãos públicos criaram estratégias para que a mulher pudesse pedir ajuda nesse período. Mas eu penso que o governo federal deveria ter liberado mais casas-abrigo, para que essas mulheres pudessem sair de casa com segurança e serem abrigadas. Isso poderia ter diminuído o número de feminicídios.

Uma lei recente tipificou a violência psicológica, que já estava prevista na Lei Maria da Penha. A maior parte dos projetos que tramitam no Congresso visam alterar a lei nos seus aspectos punitivos. Como a senhora vê essas propostas?

Todas essas mudanças têm focado em criar tipos de pena ou aumentar o tempo na prisão. Mas o fundamental é a lei que já existe ser aplicada. O fundamental não é a gente saber daqui a dez anos que o autor vai ser preso porque cometeu aquele tipo de crime, porque o poder judiciário é muito moroso. O fundamental é preservar a vida da mulher.

O que a senhora espera para os próximos 15 anos de vigência da lei?

Eu sou muito comprometida com a lei que leva o meu nome. Não meço esforços para estar presente na mídia, nos movimentos sociais, e tenho reforçado a importância da educação para que a gente consiga desconstruir o machismo, que é a origem dessa violência. Se não focarmos na educação, ainda vamos nos horrorizar com muitos crimes. Então eu espero mais investimento em educação.

Maria da Penha foi entrevistada por Leda Antunes, n'O Globo de 03/08/2021 https://oglobo.globo.com/sociedade/celina/o-fundamental-nao-aumentar-pena-mas-preservar-vida-da-mulher-diz-maria-da-penha-nos-15-anos-da-lei-que-leva-seu-nome-25133523

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