terça-feira, 3 de maio de 2022

Como afastar o adolescente do celular

O que fazer? O segredo é o comedimento, dirão os mais sábios. O problema é que nos obriga a negociar com os adolescentes, que é algo que exige muita paciência, além de várias caixas de Rivotril 




Um pé de cabra, grande, de preferência com um tamanho assustador. Encaixe entre o aparelho e a mão e empurre sem dó nem piedade. Quando o adolescente ainda estiver atônito, aproveite a ferramenta e acerte em cheio o celular. Várias vezes, até torná-lo um monte de vidro. Por via das dúvidas— é um aparelho que tem parte com o demônio — mergulhe os caquinhos em um balde cheio de água salgada, deixando de molho por meia hora. Pronto, o problema está resolvido.

O quê? O adolescente ficou revoltado? Exige um celular novo? Jogue os classificados no colo dele. De preferência aberto na parte dos anúncios de empregos. Recado dado.

Não se preocupe leitor, muito menos acione a polícia, a cena é apenas um delírio de pai. Desconfio que na vida real a atitude me traria muitos cancelamentos e algumas tretas jurídicas, dessas que fazem o oficial de Justiça bater na porta. Melhor não, ainda que tenha certeza de que seria o que meus próprios pais fariam caso o viciado adolescente fosse eu.

Não sei se outros pais têm esse mesmo problema, mas por aqui as telas se tornaram drogas pesadas. Se deixo o Martín solto, ele instala no sofá a sua cracolândia particular, ou seja, um celular na mão, um laptop no colo e a TV ligada ao fundo.

É o combo de Satanás.

Se você somar o conteúdo de tudo o que ele quer assistir não dá o QI de uma ameba sequelada: é youtuber descerebrado, é TikTok alienante, é joguinho sem pé nem cabeça. Complicado. Quem foi o irresponsável que deu o celular, o laptop, a TV para o menino, perguntará o leitor, já indignado. Sim, fui eu, sou culpado, admito. Gostaria de ser como esses pais-prodígios do Instagram, que postam toda hora os filhos adolescentes assistindo a concertos no Municipal, procurando uma edição rara de “Os Lusíadas” na Biblioteca Nacional ou então debatendo a potência artística de uma exposição no Museu de Arte Moderna.

Não sei se os outros pais, os normais, também ficam divididos na hora de tentar resolver o vício digital dos filhos. É uma decisão difícil. Obrigá-los a viver uma vida mais analógica, fora do submundo on-line, pode formar um ser independente, com uma formação sólida. Sim, mas também pode criar um pária, um eremita mirim, isolado dos colegas conectados.

Disso eu entendo.

Os meus pais eram daqueles que achavam que a TV era a moradia do Tinhoso. Uma fábrica de alienados, diziam. Desenhos, só meia hora por dia, e séries e novelas, nem pensar. Telejogo e Atari? Hahahaha. Cresci sem saber quem eram Silvio Santos, Chacrinha ou Space Invaders, muito menos quem matou Salomão Hayalla. Porém, chamava o Cidadão Kane de tio e jogava xadrez por correspondência. Um legítimo nerd, como decreta o meu filho.

Talvez por isso fico com um pé atrás para cortar o wifi e deixá-lo à margem. O que fazer? O segredo é o comedimento, dirão os mais sábios. Uma hora por dia? Só no fim de semana? O problema é que o comedimento nos obriga a negociar com os adolescentes, que é algo que exige muita paciência, além de várias caixas de Rivotril. Uma batalha durante a semana, uma guerra no finde. É tanta briga que às vezes dá vontade de partir para soluções como a do primeiro parágrafo.

Quem sabe se, em vez de usar um pé de cabra, o que seria um desatino primitivo e selvagem, não tento uma tesoura de grama ou um bisturi?

Texto de Leo Aversa n'O Globo


https://oglobo.globo.com/cultura/como-afastar-adolescente-do-celular-25498275

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