Versos de Chico Buarque vêm à mente na véspera da eleição; o contexto é outro, mas a evocação faz sentido
A competição presidencial não se trava sobre concepções diversas a respeito do rumo da sociedade, mas em torno de trivialidades e, no máximo, questiúnculas gerenciais.
FAZ QUASE exatamente 40 anos que Chico Buarque compôs "Apesar de Você", uma de suas músicas mais marcantes. Avisava os detentores do poder de então que a vida passa e que a escuridão do regime militar um dia se dissiparia.
Os versos vêm à mente nesta véspera de eleição. O contexto é outro, mas a evocação, creio, faz sentido. Não, contudo, na direção esperançosa que inspirava o compositor. E, apresso-me a esclarecer, tampouco desejo fazer alusão ao candidato X ou Y.
"Amanhã há de ser outro dia", prosseguia o refrão de Chico Buarque. O problema está aí. Que amanhã?
A principal disputa eleitoral que se resolverá (é o que a tendência do eleitorado indica) no pleito deste domingo opõe candidatos que, ao longo da campanha, se eximiram de adotar alguma coloração.
Conforme se apontou neste mesmo e em outros espaços, a competição presidencial não se trava sobre concepções diversas a respeito do rumo da sociedade, mas em torno de trivialidades e, no máximo, questiúnculas gerenciais.
A mensagem coletiva que passam ao eleitorado é que vai tudo muito bem -quando basta um olhar ligeiro sobre a sociedade, a economia e as instituições para perceber que as coisas não vão bem de jeito nenhum.
Isso tem pouco ou nada a ver com os oito anos de Lula no poder. Tem a ver com moléstias estruturais que permanecem instaladas com a complacência conjunta de petistas, tucanos, demistas e o que mais venha à mente.
Veja-se, para começar, a qualidade da representação política.
Costuma-se falar em "partidos de aluguel", pequenas agremiações que estão permanentemente à venda. O epíteto oculta coisa muito mais grave, a saber, aquilo que se poderia denominar de partidos de arrendamento, entre os quais o PMDB é o exemplo mais saliente, embora não único.
Alia-se a qualquer um, e qualquer um se alia a ele, como demonstram as coligações estaduais. O preço, idêntico ao dos partidos de aluguel, são cargos na administração.
Não apenas a representação política deixa de fazer sentido, como o Poder Legislativo deixa na prática de existir. De quebra, não há administração pública que resista ao assalto contumaz praticado pelos agentes políticos.
Olhe-se para o lado do Judiciário, e o que é que se enxerga? Um poder paralisado, perdido em seus próprios meandros e que falha miseravelmente na entrega da justiça.
Como é que esse tipo de tema não aparece numa campanha eleitoral, ainda que lateralmente (é complicado e não sensibiliza marqueteiros, mas mesmo assim)?
Por outro lado, deve-se talvez considerar que a evolução da sociedade moderna induz nas pessoas um acanhamento das perspectivas. Os horizontes vão se estreitando aos limites da existência pessoal ou familiar. A visão de sociedade, de futuro, de aspiração coletiva, desaparece.
Para além desse âmbito, o que parece existir são forças inexoráveis que operam numa esfera situada além da capacidade de compreensão das pessoas. Resta-lhes obedecer, porque, se não obedecerem, serão esmagadas.
Até outro dia.
Texto de CLAUDIO WEBER ABRAMO, diretor-executivo da Transparência Brasil na Folha de São Paulo de 02/10/10
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