Jogando na confusão
Proposta de novo partido vem distorcer ainda mais um quadro político marcado pelo oportunismo e pela inautenticidade ideológica
Oportunismo político e rigidez jurídica se combinam curiosamente no Brasil. Sinal recente dessa mistura são as movimentações do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, do DEM, no sentido de criar um novo partido político.
Aliado do tucano José Serra, o prefeito despontou como uma liderança importante no quadro político estadual. O futuro eleitoral de Kassab, entretanto, se vê estreitado pelo acúmulo de nomes rivais no PSDB, numa eventual eleição para o governo de São Paulo, e pela dificuldade de seu próprio partido em firmar raízes e prosperar no cenário paulista.
Com todos os defeitos que se conhece -entre os quais o de congregar as mais ossificadas oligarquias do Nordeste- o DEM foi adquirindo, durante os oito anos do governo Lula, uma identidade própria no Congresso Nacional. Soube desempenhar, com estridência até, um papel de denúncia e contraponto ao padrão chapa-branca que dominou, em torno do PT e do PMDB, a vida política federal nos últimos anos.
Ficar na oposição por mais tempo, todavia, parece ser uma exigência insuportável para muitos. Melhor é fortalecer a já hipertrofiada base de Dilma Rousseff no Legislativo.
Vem dessas circunstâncias o impulso para a criação do novo partido. A novidade decorre de outro fator, o jurídico. Até algum tempo atrás, a troca de siglas era feita sem qualquer cerimônia no Congresso; eleito pela oposição, o deputado ou senador aderia à primeira legenda que passasse por perto, desde que pró-governo.
A Justiça Eleitoral decidiu, entretanto, que parlamentares trânsfugas devem perder o seu mandato. A resolução pretendia fortalecer o sistema partidário, amarrando o político à agremiação pela qual foi eleito.
Mas o PDB de Kassab resulta de um subterfúgio a essa norma. Os políticos que abandonam seu partido para ingressar num outro novo em folha não são punidos por infidelidade. Faça-se, então, uma sigla. Mas ela não nasce para durar: funde-se por inteiro, numa segunda etapa, a um partido já existente -no caso, o PSB, destino antevisto desde o início pelos formuladores da operação.
A distorção, portanto, é tripla. Esvazia-se um partido oposicionista. Cria-se um partido artificial, espécie de catraca, trampolim ou seja lá que nome tenha. Junta-se, por fim, sob uma sigla nominalmente socialista, uma leva de políticos que mantém laços com a indústria e o agronegócio.
Haveria, sem dúvida, espaço para diferentes alternativas políticas para além da cisão, ao mesmo tempo artificial e já clássica, entre PSDB e PT na política brasileira. O PDB faz o contrário, na verdade: busca manter um pé no PSDB paulista e outro na base do governo federal. É o governismo exacerbado, em estado de fusão; ou melhor, de confusão, completa e irrestrita.
Editorial da Folha de São Paulo de 27/02/2011
Nos trilhos do bonde do Kassab
Movimentação para criar partido para o prefeito de São Paulo revela mudanças e confirma vícios da política
A CRIAÇÃO do partido de Gilberto Kassab, ora no DEM, é um caso mais interessante do que parece à primeira vista: um mero truque para burlar a lei que pune a troca de partido com a perda do mandato. O bonde do Kassab é mais do que uma metáfora engraçada.
Em primeiro lugar, o PDB de Kassab, o Partido da Democracia Brasileira, baldearia políticos nominalmente oposicionistas para o trem do governo ou vagões anexos. Trata-se de uma adaptação evolutiva à norma de 2007 que pretendia coibir o troca-troca partidário. Antes, o travestismo político era explícito.
Quando foi eleito em 2002, Lula contava com coalizão de 228 deputados federais. Um ano depois, às vésperas do fim do prazo de troca-troca para quem queria disputar a eleição de 2004, a coalizão inchara para 389 deputados, graças ainda à adesão de PMDB e PP.
Cerca de 25% dos deputados trocariam de partido, o grosso com o objetivo de aderir ao governo. Os futuros coadjuvantes do mensalão petista, PTB e PL, dobrariam de tamanho -o PT terceirizara o inchaço do governismo por meio de partidos de aluguel e de outros negócios. O PSDB perderia 14 deputados; o PFL, hoje DEM, perderia 20.
A norma de 2007 pretendia dar cabo dessa quizumba. Atenuou a mixórdia, decerto, mas a lei não dá conta das forças sociais e políticas que provocam tais mudanças.
Em segundo lugar, esse PDB, aliado do PSB de Eduardo Campos, governador de Pernambuco, seria um veículo para novas lideranças políticas. Os "novos" não querem saber do DEM, pois o partido do velho reacionarismo definha. Mas por que não se juntam ao PSDB ou ao PMDB? Por que precisam de partidos "bi", "flex", meio governo hoje, talvez meio oposição amanhã? As perguntas não são triviais.
Sim, há mudança porque falta cadeira para tanto cacique, porque Kassab quer ser governador batendo-se com o PSDB, porque Campos quer juntar forças para ser vice do presidente do petismo em 2014 etc. Por isso a dispersão de "lideranças" por vários partidos. Mas não só por isso. Também porque a oposição, quase apenas o PSDB, não consegue organizar suas disputas internas, aglutinar lideranças e vem sendo derrotada em termos eleitorais e ideológicos. A oposição ora parece sem futuro nestes tempos de triunfo petista-desenvolvimentista e do Estado de Bem-Estar Tropical.
Por que os "novos" não querem o PMDB, ainda que o bonde do PDB possa baldear alguns passageiros para esse partido? O PMDB tem o inconveniente de estar com o nome cada vez mais sujo na praça. Mas não só. Observe-se que, apesar de ser o maior partido do país durante quase todo o último quarto de século, o PMDB não cria lideranças nacionais sérias ou candidatos presidenciais viáveis. Seus líderes, neocaciques da redemocratização de 1985, são na verdade quase todos candidatos a réu e a cassações.
Em terceiro lugar, o sucesso da criação do PDB deve misturar ainda mais as tintas dos já cinzentos partidos brasileiros. O socialista PSB (rir, rir) será tingido pelo pefelismo-demismo do PDB, agrupamento que será braço direito do petismo ou de uma força que talvez venha a bater o PT em 2014. O PDB-PSB, enfim, é um candidato a PMDB mirim, um veículo novo e por ora mais limpinho de agenciamento fisiológico.
Proposta de novo partido vem distorcer ainda mais um quadro político marcado pelo oportunismo e pela inautenticidade ideológica
Oportunismo político e rigidez jurídica se combinam curiosamente no Brasil. Sinal recente dessa mistura são as movimentações do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, do DEM, no sentido de criar um novo partido político.
Aliado do tucano José Serra, o prefeito despontou como uma liderança importante no quadro político estadual. O futuro eleitoral de Kassab, entretanto, se vê estreitado pelo acúmulo de nomes rivais no PSDB, numa eventual eleição para o governo de São Paulo, e pela dificuldade de seu próprio partido em firmar raízes e prosperar no cenário paulista.
Com todos os defeitos que se conhece -entre os quais o de congregar as mais ossificadas oligarquias do Nordeste- o DEM foi adquirindo, durante os oito anos do governo Lula, uma identidade própria no Congresso Nacional. Soube desempenhar, com estridência até, um papel de denúncia e contraponto ao padrão chapa-branca que dominou, em torno do PT e do PMDB, a vida política federal nos últimos anos.
Ficar na oposição por mais tempo, todavia, parece ser uma exigência insuportável para muitos. Melhor é fortalecer a já hipertrofiada base de Dilma Rousseff no Legislativo.
Vem dessas circunstâncias o impulso para a criação do novo partido. A novidade decorre de outro fator, o jurídico. Até algum tempo atrás, a troca de siglas era feita sem qualquer cerimônia no Congresso; eleito pela oposição, o deputado ou senador aderia à primeira legenda que passasse por perto, desde que pró-governo.
A Justiça Eleitoral decidiu, entretanto, que parlamentares trânsfugas devem perder o seu mandato. A resolução pretendia fortalecer o sistema partidário, amarrando o político à agremiação pela qual foi eleito.
Mas o PDB de Kassab resulta de um subterfúgio a essa norma. Os políticos que abandonam seu partido para ingressar num outro novo em folha não são punidos por infidelidade. Faça-se, então, uma sigla. Mas ela não nasce para durar: funde-se por inteiro, numa segunda etapa, a um partido já existente -no caso, o PSB, destino antevisto desde o início pelos formuladores da operação.
A distorção, portanto, é tripla. Esvazia-se um partido oposicionista. Cria-se um partido artificial, espécie de catraca, trampolim ou seja lá que nome tenha. Junta-se, por fim, sob uma sigla nominalmente socialista, uma leva de políticos que mantém laços com a indústria e o agronegócio.
Haveria, sem dúvida, espaço para diferentes alternativas políticas para além da cisão, ao mesmo tempo artificial e já clássica, entre PSDB e PT na política brasileira. O PDB faz o contrário, na verdade: busca manter um pé no PSDB paulista e outro na base do governo federal. É o governismo exacerbado, em estado de fusão; ou melhor, de confusão, completa e irrestrita.
Editorial da Folha de São Paulo de 27/02/2011
Nos trilhos do bonde do Kassab
Movimentação para criar partido para o prefeito de São Paulo revela mudanças e confirma vícios da política
A CRIAÇÃO do partido de Gilberto Kassab, ora no DEM, é um caso mais interessante do que parece à primeira vista: um mero truque para burlar a lei que pune a troca de partido com a perda do mandato. O bonde do Kassab é mais do que uma metáfora engraçada.
Em primeiro lugar, o PDB de Kassab, o Partido da Democracia Brasileira, baldearia políticos nominalmente oposicionistas para o trem do governo ou vagões anexos. Trata-se de uma adaptação evolutiva à norma de 2007 que pretendia coibir o troca-troca partidário. Antes, o travestismo político era explícito.
Quando foi eleito em 2002, Lula contava com coalizão de 228 deputados federais. Um ano depois, às vésperas do fim do prazo de troca-troca para quem queria disputar a eleição de 2004, a coalizão inchara para 389 deputados, graças ainda à adesão de PMDB e PP.
Cerca de 25% dos deputados trocariam de partido, o grosso com o objetivo de aderir ao governo. Os futuros coadjuvantes do mensalão petista, PTB e PL, dobrariam de tamanho -o PT terceirizara o inchaço do governismo por meio de partidos de aluguel e de outros negócios. O PSDB perderia 14 deputados; o PFL, hoje DEM, perderia 20.
A norma de 2007 pretendia dar cabo dessa quizumba. Atenuou a mixórdia, decerto, mas a lei não dá conta das forças sociais e políticas que provocam tais mudanças.
Em segundo lugar, esse PDB, aliado do PSB de Eduardo Campos, governador de Pernambuco, seria um veículo para novas lideranças políticas. Os "novos" não querem saber do DEM, pois o partido do velho reacionarismo definha. Mas por que não se juntam ao PSDB ou ao PMDB? Por que precisam de partidos "bi", "flex", meio governo hoje, talvez meio oposição amanhã? As perguntas não são triviais.
Sim, há mudança porque falta cadeira para tanto cacique, porque Kassab quer ser governador batendo-se com o PSDB, porque Campos quer juntar forças para ser vice do presidente do petismo em 2014 etc. Por isso a dispersão de "lideranças" por vários partidos. Mas não só por isso. Também porque a oposição, quase apenas o PSDB, não consegue organizar suas disputas internas, aglutinar lideranças e vem sendo derrotada em termos eleitorais e ideológicos. A oposição ora parece sem futuro nestes tempos de triunfo petista-desenvolvimentista e do Estado de Bem-Estar Tropical.
Por que os "novos" não querem o PMDB, ainda que o bonde do PDB possa baldear alguns passageiros para esse partido? O PMDB tem o inconveniente de estar com o nome cada vez mais sujo na praça. Mas não só. Observe-se que, apesar de ser o maior partido do país durante quase todo o último quarto de século, o PMDB não cria lideranças nacionais sérias ou candidatos presidenciais viáveis. Seus líderes, neocaciques da redemocratização de 1985, são na verdade quase todos candidatos a réu e a cassações.
Em terceiro lugar, o sucesso da criação do PDB deve misturar ainda mais as tintas dos já cinzentos partidos brasileiros. O socialista PSB (rir, rir) será tingido pelo pefelismo-demismo do PDB, agrupamento que será braço direito do petismo ou de uma força que talvez venha a bater o PT em 2014. O PDB-PSB, enfim, é um candidato a PMDB mirim, um veículo novo e por ora mais limpinho de agenciamento fisiológico.
Texto de Vinicius Torres Freire na Folha de São Paulo de 27/02/2011
Meu comentário: A maioria dos políticos brasileiros não aguentam viver na oposição, longe dos palácios, só pensam nas mordomias, o PDB será um partido privilegiado, pois terá os favores dos palácios do Planalto e dos Bandeirantes.