domingo, 20 de dezembro de 2020

Bolsoraro reeleito? A boiada passa

Presidente pode estar levando a preço de custo a sua reeleição em 2022
O presidente Jair Bolsonaro pode estar levando a preço de custo, ou praticamente de graça, a sua reeleição em 2022. É isso que vai acontecer, se a situação dos próximos dois anos permanecer a mesma dos dois últimos – período em que os partidos de oposição, as elites centristas, a mídia e quem mais quer Bolsonaro fora da presidência da República parecem ter feito tudo o que podiam para ajudar seu inimigo número 1 a ficar na cadeira de onde querem que ele saia. Em primeiro lugar, não conseguem se unir em torno de um programa mínimo e menos ainda de um nome para concorrer de verdade com o presidente. Além disso, insistem na obsessão de denunciar o adversário por desastres que ele não cometeu – enquanto deixam passar, intacta, a boiada inteira dos erros, fracassos e disparates que seu governo de fato tem cometido.

É a história de sempre – quando o sujeito é cobrado por dívidas que não tem, ou que a maioria acha que não tem, acaba ficando livre de pagar o que realmente deve. Resultado: quanto mais os ataques contra Bolsonaro vão se aproximando da histeria, mais ele prospera em seus índices de aprovação popular. O presidente, por exemplo, acaba de ser denunciado na imprensa, mais uma vez, como um “genocida” que pratica atos de “descaso homicida” e “estupidez assassina” por conta da covid-19; é acusado, todos os dias, de ser o responsável pela morte de “180 mil pessoas”. É isso, e coisa pior, que vem sendo repetido por seus adversários desde o começo da epidemia. Exatamente no mesmo momento informa-se que o índice de aprovação do presidente acaba de subir para 37% – o mais alto de todo o seu governo.

É no que dá, aparentemente, fazer denúncias de gravidade terminal, como assassinato em massa, e não mostrar com clareza a relação de causa e efeito entre a acusação e o fato. Em vez de prejudicar, a denúncia ajuda. Obviamente, pelo que mostram os números, a maioria das pessoas não está acreditando que Bolsonaro matou alguém, muito menos 180 mil pessoas – quem matou, no olhar da opinião pública, foi o vírus. Mais: se alguém matou alguém, foram os governadores e prefeitos que receberam da Justiça a exclusividade na gestão da epidemia. Quando se juntam as palavras “covid” e “Bolsonaro”, a primeira reação da mídia é falar em “genocídio”; na opinião pública, a primeira ideia que ocorre é o auxílio emergencial de R$ 600 por mês.

Nada disso, pelo jeito, impressiona a oposição; em vez de fazer oposição de verdade, a começar pelo trabalho de demonstrar para a população por que seu governo seria melhor que este, os inimigos de Bolsonaro insistem em apostar tudo na covid. Ou, então, em outras miragens como a perseguição dos índios, o massacre dos gays e os incêndios no Pantanal; dá muita primeira página, mas não dá voto, porque só acreditam nessas coisas, no fundo, quem já está decidido a acreditar nelas. O fato é que, dez meses depois das primeiras mortes da epidemia, Bolsonaro tem uma aprovação muito maior do que tinha no começo. Num ano de desastre absoluto para qualquer governo, 2020 foi uma beleza para ele.

Texto de J. R. Guzzo n'O Estado de S.Paulo de 20/12/2020

domingo, 13 de dezembro de 2020

Sleeping Giants é formado por casal de 22 anos do interior do Paraná

Grupo calcula ter retirado R$ 1,5 milhão em anúncios de sites de fake news 

Sleeping Giants é formado por casal de 22 anos do interior do Paraná - 12/12/2020 - Mônica Bergamo - Folha (uol.com.br)

Aberto há sete meses, o perfil Sleeping Giants Brasil (SGB) tem causado um tsunami em sites da extrema direita ao forçar uma debandada de empresas anunciantes. A situação ocorre quando o SGB publica, em seu Twitter ou em seu Instagram, um alerta para uma determinada empresa, informando que ela está anunciando em sites de fake news.

Seja por discordarem do conteúdo, seja pelo constrangimento público criado, as empresas retiram seus anúncios, desmonetizando os sites. Até este domingo (13), o grupo operava de forma anônima, sob a justificativa de que recebem ameaças de morte diárias. Resolveram, no entanto, revelar sua identidade nesta entrevista.

O grupo foi fundado por apenas duas pessoas, um casal de 22 anos de Ponta Grossa, no interior do Paraná. Leonardo de Carvalho Leal e Mayara Stelle moram com os pais e são namorados desde os 15 anos. Ele era motorista de Uber até que teve o carro batido no início do ano. Ela era vendedora de maquiagens até que a epidemia da Covid-19 fechou os salões de beleza em Ponta Grossa.

Estudantes de direito do sétimo período de uma faculdade estadual da cidade, ambos vivem hoje do auxílio emergencial que o governo concede a milhões de brasileiros. Dizem que não há ninguém por trás deles e que não recebem nada pelo trabalho.

O Rede Liberdade, grupo de advogados e jornalistas que atua em casos de violação de direitos e liberdade de expressão, apoia os dois prestando assessoria jurídica e de comunicação sem cobrar nada.

O Sleeping Giants nasceu nos Estados Unidos, desmonetizando o site de extrema direita de Steve Bannon, chefe da campanha vitoriosa de Donald Trump em 2016.

Lendo sobre o assunto para o trabalho de conclusão de curso da faculdade, Leonardo e Mayara resolveram abrir o Sleeping Giants Brasil numa manhã de maio de 2020. Horas depois já tinham 20 mil seguidores e foram oficializados como representantes brasileiros dos Sleeping Giants pelo criador do perfil americano, Matt Rivitz.

O primeiro alvo do grupo, o Jornal da Cidade Online, sofreu a retirada de anúncios de 250 empresas, cada uma exposta publicamente pelo SGB por anunciar ali.

Até hoje, eles calculam ter retirado de três sites de notícias e dois canais o equivalente a R$ 1,5 milhão. Segundo eles, 700 empresas já seguiram seus alertas e retiraram os anúncios de sites duvidosos. O SGB tem 410 mil seguidores no Twitter e 170 mil no Instagram.

O Jornal da Cidade Online entrou com ação, que foi atendida, pedindo que o Twitter revele seus dados. É por isso que vocês resolveram sair do anonimato?

Leal: Não iam entregar nossos dados agora, eles iriam ficar em sigilo de Justiça. Mas a gente acredita que é o momento de mostrar o rosto para nossos seguidores, antes que um site de fake news descubra quem a gente é. Esperamos que se identifiquem com a gente, tanto as empresas que responderam quanto os seguidores que apoiaram.

Stelle: Vir a público está sendo uma questão. Ainda não é um consenso entre nós e nossas famílias. Muita gente tem essa curiosidade de saber quem está por trás do perfil, porque acham que são pessoas superpreparadas, que temos um grande mecanismo por trás. E somos nós dois, duas pessoas comuns. Temos alguns colaboradores, alguns seguidores que se oferecem para fazer design ou imagens para nossas postagens.

Matt Rivitz ajuda vocês de alguma forma?


Stelle: Quando ele entrou em contato conosco, quis saber mais sobre o que a gente queria fazer no Brasil antes de autorizar esse trabalho. Ele deu algumas dicas, como “use o VPN, não se mostre para as pessoas, tente permanecer no anonimato”. Foram essas coisas básicas. A gente não tem mais contato com ele, mesmo porque nenhum de nós fala inglês.

Qualquer um pode criar o perfil Sleeping Giants 2, por exemplo?

Leal: Sim, a gente fez desse jeito. Criamos a conta com esse nome e estamos aqui até hoje. Ainda é difícil para a gente, porque nunca trabalhamos com internet. A Mayara nem usava Twitter. Estamos nos acostumando com tudo isso ainda. A gente não se vê como ativista.

Como vocês se veem?


Leal: O Sleeping surgiu no meio de um estudo para um TCC sobre fake news. Ele apareceu como uma resposta. Pois todo mundo sabe qual é o problema, é o discurso de ódio, que domina o debate na internet, mas ninguém sabe qual é a resposta para isso. Quando a gente leu uma matéria do El País, pensou: “Putz, essa é uma resposta muito boa, muito fácil”. E todo mundo comprou muito rápido, mas nunca tivemos treinamento, nunca fizemos nada parecido.

O Matt falou para gente duas coisas principais: uma delas é nunca falar sobre política. O Sleeping não é um movimento de política, é um movimento de consumidores. Esse é um dos nossos valores. E a outra é a questão do anonimato e da segurança. Quando revelaram a identidade dele nos Estados Unidos, hackeando não se sabe como, colocaram o endereço em todos os sites de fake news e ele recebeu ameaças de morte sem parar, contra ele, a mulher, o filho de 15 anos, até para a sinagoga dele chegou ameaça.

Como estão se preparando para sair do anonimato?

Stelle: Tivemos que nos distanciar das famílias para mantê-los seguros. Minha família é muito distante da internet, são pessoas mais velhas, é difícil até explicar o que nós estamos fazendo. Então optamos por sair do anonimato longe deles. Neste momento estamos na casa de um amigo, em São Paulo.

Já sofreram muitas ameaças?

Leal: É bizarro porque se espera muito de nós, de uma estrutura, que ajudaria a nos preparar quanto a isso. A partir do momento que o Sleeping está tirando dinheiro dessas milícias digitais, que utilizam isso como uma forma de trabalho remunerado, a gente acaba virando alvo. Há sete meses, um motorista de Uber e uma vendedora de maquiagens começaram a receber ameaças de morte e agora têm que sair de casa para se revelar, têm que ter uma conversa super difícil com as famílias, dizer que você criou um perfil no Twitter, que muitas pessoas apoiam, que tem 700 empresas respaldando, e mesmo assim... A gente está arriscando a nossa vida dando essa entrevista, está arriscando a vida por conta do projeto e também está arriscando nossas famílias por conta disso.

Stelle: Já vimos pessoas oferecendo dinheiro pela nossa cabeça. As pessoas escrevem nos nossos perfis “Se matem”. Até esse momento, nenhuma ameaça foi levada à polícia, mas a partir dessa saída de anonimato, a gente pretende, sim, responsabilizar todo mundo que ameaçou.

Como estudantes de direito, o que dizem de a Constituição Federal assegurar a liberdade de manifestação do pensamento, mas vedar o anonimato?

Leal: O Sleeping foi criado às 5h de uma segunda-feira, num laptop sem bateria e, sete meses depois, a gente desmonetizou mais de R$ 1,5 milhão. Diferente de jornalistas, que estão acostumados a colocar a cara, nós não temos estrutura. A gente só está começando, temos 22 anos.

Como vocês definem os sites que vão desmonetizar?

Stelle: A gente olha, primeiramente, pelo alcance. O Jornal da Cidade Online, que foi o primeiro escolhido para desmonetização, foi também porque tinha grande histórico de notícias desmentidas em relação à pandemia. Acreditamos que a desinformação em relação à pandemia seja umas das principais fake news a ser desmentidas nesse momento. Quanto aos outros, fizemos uma pesquisa bem aprofundada, o número de processos judiciais, o número de notícias desmentidas pela grande imprensa.

Vale dizer que a gente não está aqui para cancelar. O SG não promove a cultura do cancelamento, o SG não promove a censura. Estamos aqui para alertar a empresa. A decisão de manter um anúncio ou retirar, e de banir um usuário por violação dos termos de uso ou não banir, pertence à empresa. Nós só avisamos.

Leal: E as empresas geralmente agradecem. Quando você joga um anúncio numa plataforma de mídia programática [Facebook ou Google, por exemplo, que vão distribuir aqueles anúncios de acordo com o perfil dos usuários], você acaba anunciando em 2.000, 3.000 sites. Então, não tem como a empresa controlar isso. A gente alerta a empresa e ela tem a liberdade de querer ou não aparecer nesse site. Elas gastam tanto dinheiro, constroem uma marca, que carrega os valores dessa empresa, e que muitas vezes não condizem com o site.

Quem desmonetizaram até agora?

Leal: Até aqui, a gente só desmonetizou três sites, porque é um trabalho de formiguinha, você vai tirando uma empresa por vez. Em ordem, foram Jornal da Cidade Online, Conexão Política e Brasil Sem Medo. Além disso, a gente desmonetizou o canal do Olavo de Carvalho no YouTube e o grupo paramilitar 300 do Brasil, da Sara Winter. Só no Jornal da Cidade Online, foram 250 empresas.

Todos esses sites são de direita. Isso é uma coincidência ou vocês são de esquerda?

Stelle: A gente não olha se o site é de esquerda ou de direita. Infelizmente, sabemos que o discurso de ódio está presente em todos os espectros políticos. O que acontece é que, nesse momento, não dá para negar que a extrema direita tem um alcance de desinformação muito maior que a esquerda. Mas as fake news estão, sim, presente em sites de esquerda. Tivemos um caso agora do Porta dos Fundos, que é conhecido como um canal de esquerda, e fez um vídeo claramente misógino.

Leal: Achamos que tínhamos que alertar o Porta dos Fundos sobre o erro que eles fizeram. Assim fizemos e logo depois eles excluíram o vídeo. Então, o Sleeping não é movimento de cancelamento. A qualquer momento você pode retificar um erro, como fez o Porta dos Fundos ao excluir a esquete, que era supermachista.

Stelle: A questão é que o alcance dos sites de direita é muito grande. O Jornal da Cidade Online, por exemplo, tinha ou tem 40 milhões de acessos por mês. É um número assustador, considerando que eles propagavam desinformação sobre a pandemia.

Leal: O Jornal da Cidade Online é a página de notícias do Facebook que tem maior engajamento sobre o coronavírus. Mais do que a Globo, do que a Folha, do que o Estadão. Quanto mais acesso o site tem, mais dinheiro ele vai ganhar. Então, os dois critérios são muito objetivos: a quantidade de conteúdo fake e o alcance que esse conteúdo tem.

Existe uma coisa que é mentira, tipo “detergente cura coronavírus”. Agora, como definir o discurso do ódio? Para muita gente, o que o Olavo de Carvalho diz não é um discurso de ódio. Ao contrário, ele é o único cara que fala a verdade sobre o Brasil. Então, a gente pode estar diante de uma divergência de pontos de vista. Qual é o corte para isso?

Stelle: O discurso de ódio é uma coisa subjetiva, mas ele busca reprimir ou intimidar uma pessoa sobre determinadas características inerentes a ela. Promove racismo, misoginia, machismo, xenofobia, sinofobia. É um discurso que intimida uma minoria. O Sleeping não quer calar ninguém. Somos completamente a favor da liberdade de expressão, inclusive usamos ela para alertar as empresas. O Olavo tem todo o direito de falar e de ter seu espaço para suas ideias. O Sleeping só alerta as empresas, e elas decidem se querem tirar o anúncio daquele conteúdo ou não.

Mas não acham que criam um constrangimento público para as empresas?

Leal: Não. Se estivessem constrangidas não agradeceriam publicamente o nosso alerta. As próprias empresas também são alvo de fake news. O próprio Olavo propagou uma que dizia que a Pepsi adoçava o refrigerante com fetos abortados. Quanto dinheiro a Pepsi está gastando para conseguir uma imagem, uma marca com muita história, e vem essa história “se você toma a Pepsi, você é um abortista terceirizado”.

Por isso que as empresas são nossas aliadas. A Band já foi alvo de fake news também, que dizia que ela tinha sido comprada pelo Partido Comunista chinês. A gente achou a Natura patrocinando conteúdo que era contra a própria propaganda dela. Gastaram para fazer uma propaganda de Dia das Mães, se não me engano, e estava anunciando em uma matéria machista que criticava a propaganda da Natura [por ser feminista]. A gente não constrange ninguém. A gente pergunta. As empresas têm o direito de saber para quem estão dando dinheiro.

Fazendo uma provocação, não acham que estão intimidando, por exemplo, o Olavo de Carvalho?


Leal: O Olavo de Carvalho tem um discurso que diz que a Globo ou a Folha devem ser fechadas e aí o Brasil viraria um lugar legal. Ele tem uma frase que diz que a imprensa deve ser tratada igual cachorro, a pontapés. Que estar na presença de jornalistas é estar na presença da pior espécie do mundo. Isso é um discurso de ódio, que visa quem você é, direcionado a essa minoria.

Mas ele tem o direito de achar que os jornalistas são isso aí.

Leal: Sim, mas as empresas têm o direito de não querer pagar por esse conteúdo.

Stelle: Não podemos tolerar a intolerância, digamos assim. Até onde vai o direito do Olavo de ofender as pessoas e ganhar dinheiro com isso? O SG não está promovendo nenhum ataque ao Olavo. Nós só perguntamos às empresas que estão vinculadas a ele se elas querem continuar pagando aquele conteúdo.

Vocês trabalham por meio do Twitter e do Instagram. Essas empresas são as responsáveis por destinar o dinheiro dos anúncios para o site x ou y. E elas ganham dinheiro ao fazerem essa ponte. Por que as big tech não estão entre os alvos de vocês?

Stelle: Esse debate é muito atual. Nós somos muito novos na internet e fizemos uma escolha de focar nos donos do dinheiro. Acredito que haja gente mais capacitada e experiente para iniciar esse debate nesse momento.

Vocês têm um poder imenso nas mãos hoje. Não há o risco de vocês atacarem alguém simplesmente por não gostaram dele?

Stelle: Nós não escolhemos nenhum alvo. O único alvo é a desinformação e o ódio. Se alguém publica isso, achamos completamente justo ela ser desmonetizada. Não é questão pessoal. Se a pessoa parar de escrever fake news, apagar o que já escreveu e pedir desculpas, deixa de ser uma pessoa que pode ser escolhida pelo Sleeping Giants Brasil.

O que acham de empresas brasileiras que trabalham com ditaduras que desrespeitam os direitos humanos?

Leal: Nesse momento não temos estrutura. A saída do anonimato pode abrir inúmera portas e no futuro podemos trabalhar em outras áreas, como essa.

Elogiar a ditadura militar é discurso de ódio ou liberdade de expressão?

Leal: Elogiar a ditadura é opinião, mas dizer que ela não existiu é fake news. Se tiver um site promovendo a ditadura militar, nós vamos atuar. No caso do grupo paramilitar da Sara Winter, ela iria receber R$ 80 mil por meio de um crowdfunding. Nós fomos até a empresa de crowdfunding e alertamos que a campanha dela estava em desacordo com seus termos de uso, que não admitia discurso de ódio, por exemplo. A empresa cancelou a campanha e não repassou o dinheiro.

É a mesma situação do Olavo de Carvalho em relação ao PayPal e ao PagSeguro, certo? Vocês pressionaram para essas plataformas de pagamento cancelarem as contas dele. Essas contas eram usadas para ele receber o pagamento por suas aulas online, certo?


Stelle: Sim. O PayPal cancelou a conta dele em agosto. A PagSeguro publicou nota em que dizia que era contrária à fake news e ao discurso de ódio, mas que estava impedida de realizar o bloqueio de um usuário: “Instituições de pagamentos devem garantir acesso não discriminatório aos seus serviços e liberdade de escolha dos usuários finais”.

Leal: Os termos de uso dizem que é terminantemente proibido que seus clientes usem “linguagem ou imagem ou transmitir ou propagar mensagem ou material que denotem ou promovam o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, ou que incitem à violência ou ao ódio”. Acreditamos que a PagSeguro está muito acima do Olavo de Carvalho e vai cancelar sua conta.​


De Mônica Bergamo e Ivan Finotti na Folha de São Paulo de 13/12/2020  
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/12/sleeping-giants-sai-do-anonimato-em-entrevista-a-folha.shtml

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Não tome vacina

Todos os dias, em ocasiões distintas, as consequências de não ter recebido uma das doses da vacina que evitaria minha contaminação pelo vírus da poliomielite têm um papo com minha consciência, com meu futuro e com minhas emoções.




Não tome você uma vacina, qualquer, não dê a seus filhos a proteção descoberta e trabalhada pela ciência e ganhe para sempre a ausência de um sossego, às vezes, atormentador, chamado refletir a respeito do “e se”.

E se eu pudesse correr, como seriam meus cabelos e como andaria a minha pressa? E se eu pudesse jogar minha filha para o alto, como seria a risada de nós dois? E se eu pudesse ter amado alguém num canto, num encanto de ondas, numa cabana lá longe, no teto ao luar, meu coração teria outra batida, minhas inquietações seriam mais bem assistidas?

Ter contraído paralisia infantil de maneira severa e bastante incapacitante, a ponto de me limitar o andar por toda a existência, fez de mim uma pessoa que, também para sempre, cultivaria a prática de pensar a respeito de como seria uma outra vida possível.



Não tome vacinas e flerte com o risco de ter um corpo desencontrado, por dentro e por fora, daquilo que é a referência de quase todos ao seu redor. Não há pecado nem nada de muito errado nisso, mas prepare-se para ter muita energia e muita companhia para praticar o “eu me amo, eu me gosto, eu sou feliz assim”.

Preciso concordar com o presidente Bolsonaro quando ele diz que ninguém pode ser obrigado a jogar para dentro do próprio organismo um avanço humano que tente garantir-lhe que não sofra dores lancinantes, não passe grande tempo de sua existência tentando amenizar sequelas, não conviva com um tormento mental por seu corpo não responder adequadamente à sua mente.

Preciso concordar que ninguém é obrigado a se vacinar por ser isso também um ato fraterno, um ato de compaixão com os mais vulneráveis, mais expostos, mais dispostos à ação dos organismos desestabilizantes.

Não vacinar, no caso do coronavírus, pode ser atentar contra a própria vida, mas e daí? Se a gente não obrigar as pessoas a se vacinarem, também ninguém vai ter de se preocupar em saber como os pobres irão se imunizar, como a vacina irá chegar aos ermos —foi em um ermo que fui abatido—, como proteger os velhos, os indefesos, os ingênuos, os desprotegidos…

Cada um tem de ter o poder de saber o que é melhor para si, mesmo aqueles cujo “si” se harmoniza, se protege e se resguarda com o “nós”. Tudo tão reluzente, tudo tão livre, tudo tão triste.

Não tome vacina para colaborar com o recrudescimento do climinha egoísta, arrogante e intolerante do mundo.
Esse climinha que faz a quem guarda algum tipo de diferença– física, sensorial, intelectual, de gênero, de tonalidade– penar um pouquinho mais para ser gente.

Direitos individuais não podem jamais se sobrepor ao princípio nato do “serumano” de agir diante da fatalidade alheia, de tentar estender a mão a quem se afoga, de acalorar aquele que treme.

O que a gente faz pelo outro, a ciência já demonstrou, catapulta o cérebro, faz apaziguar a alma e as angústias, engrandece o caminho.

O planeta está em uma situação de desespero extremo, em via de enfrentar novos cenários de um desastre humano em todos os cantos.

Elixires com o potencial de evitar novas ondas de tristeza profunda e devastação mental estão em curso e são promissores. Tomar vacina é opção. Eu não tive. Use bem a sua.

O texto do jornalista Jairo Marques, que é cadeirante desde a infância, está na Folha de São Paulo de 11/11/2020
https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2020/11/10/nao-tome-vacina/ 

domingo, 8 de novembro de 2020

Conviveremos com o coronavírus por muitos meses, senão por anos

A rotina de ir para o escritório que amofinava seus dias agora é um sonho

Quando vejo jovens da classe média alta aglomerados nos bares, sem máscara, sinto um misto de decepção e de desprezo


Você quer sair, encontrar os amigos, jantar fora, beber no bar, viajar para Minas. A rotina de ir para o escritório que amofinava seus dias agora é um sonho, José.

Nós sabíamos que seria difícil manter o afastamento social por muito tempo. Com 15 milhões de pessoas aglomeradas em moradias precárias nas favelas, 46% das quais sem água encanada, como ficar em isolamento?

Todos concordaram que os serviços essenciais não podiam parar. Mas eles são mantidos por quem? Pelos que trabalham em mercados, padarias, farmácias e portarias de prédios, pelos entregadores e seguranças e pelos informais encarregados dos pequenos serviços. Era evidente que a mobilidade obrigatória dos menos desfavorecidos levaria o vírus para a periferia das cidades.

O preço pago pelos que vivem nos bairros distantes tem sido desproporcional. A prevalência da infecção pelo vírus na pobreza da zona sul de São Paulo é quase quatro vezes maior do que na zona centro-oeste, de poder aquisitivo mais alto. Em todas as cidades brasileiras, a mortalidade atingiu níveis mais elevados entre pobres e pretos, como acontece com doenças de caráter epidêmico, desde a Antiguidade.

Quando vejo os mais jovens da classe média alta aglomerados nos bares e restaurantes, sem máscara, sinto um misto de decepção e de desprezo.

Eles se comportam como se o vírus não existisse ou como se não fosse problema deles. Bancam os corajosos para impressionar os amigos, ridicularizam os mais cuidadosos, mas, ao surgir a primeira febrícula, correm para os melhores hospitais da cidade, mortos de medo de morrer, sobrecarregando e pondo em risco os profissionais de saúde que cuidarão deles.




Isso quando não levam o vírus para os pais, para crianças e pessoas vulneráveis da família. Daria tudo para saber o que lhes passa pela consciência quando um ente querido infectado por eles vai parar na UTI.

Quanto à empregada da casa que contraiu o vírus do patrãozinho, o remorso do transmissor é provavelmente nenhum. Ela e os parentes que se arranjem. Não é para isso que existe o SUS?

A exposição irresponsável ao vírus é, antes de tudo, um ato de egocentrismo covarde. O temerário se arrisca não por ser destemido e estar disposto a arcar com as consequências de seus atos, mas por acreditar que os mais jovens serão poupados. Se não se preocupa nem sequer com a própria família, vamos pretender que tenha consideração pela comunidade? Que venha a entender que, assim agindo, participa ativamente da disseminação da epidemia?

Embora alguns médicos ainda acreditem que um antimalárico ou um prosaico vermífugo administrados nas fases iniciais curem a Covid, a fé é de pouca valia nesta hora. Achar que a vacina nos salvará assim que disponível é pensamento mágico, o caminho da imunização em larga escala será longo, penoso e cheio de incertezas. A tal imunidade de rebanho antes da existência de uma ou mais vacinas eficazes não passa de miragem.

A conclusão, José, é que conviveremos com esse coronavírus por muitos meses, senão por anos. Não é pessimismo, olhe o que ocorre na Europa, na Ásia e, especialmente nos Estados Unidos, o exemplo máximo de como a cegueira estúpida de um dirigente pode causar uma tragédia de proporções inimagináveis. Ou é por acaso que os Estados Unidos, o país mais rico do mundo, ostentam o título de campeões mundiais de mortalidade?

Sejamos sensatos, meu amigo, é tarde para chorarmos o leite derramado. De agora em diante temos de concentrar nossos esforços em reduzir a velocidade de disseminação da epidemia. No decorrer deste ano aprendemos que o vírus é transmitido por via respiratória, preferencialmente em lugares fechados, quando as pessoas se aproximam umas das outras. Aprendemos que a higiene das mãos e o uso de máscara são medidas protetoras. Não é pouco, já sabemos o essencial.

Nosso desafio é a adoção de medidas para evitar aglomerações e convencer a população a colocar máscara ao sair de casa. Essa deve ser a ênfase das campanhas de saúde pública e do exemplo que cada um de nós deve dar às crianças, aos que não estudaram e aos ignorantes que frequentaram as melhores escolas.

O uso de máscara é medida simples, protetora, acessível a todas as camadas da sociedade, mas enfrenta o problema da mudança de hábitos, dificuldade maior do comportamento humano.

Texto de Drauzio Varella, médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru” na Folha de São Paulo de 08/11/2020

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/2020/11/a-rotina-de-ir-para-o-escritorio-que-amofinava-seus-dias-agora-e-um-sonho.shtml

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O caso Mariana Ferrer

Acusado de estuprar Mariana Ferrer é absolvido, gera revolta e levanta debate sobre como a violência sexual contra a mulher é tratada na Justiça


A influenciadora Mariana Ferrer relata ter sido dopada e estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha em 15 de dezembro de 2018; O acusado foi indiciado por estupro de vulnerável e absolvido na última quarta-feira (9)

Desde a noite da última quarta-feira (09), o nome de Mariana Ferrer está entre os assuntos mais comentados do Twitter. O motivo é a absolvição pela Justiça do empresário André de Camargo Aranha, a quem a influenciadora acusa de tê-la estuprado em 15 de dezembro de 2018, durante uma festa no famoso Café de La Musique, onde trabalhava como embaixadora, em Florianópolis, Santa Catarina.

O caso veio a público quando a blogueira compartilhou um relato em suas redes sociais, em maio do ano passado. Ela não poupou detalhes, divulgando um vídeo do circuito de segurança em que aparece entrando e saindo do local onde teria sido violentada, prints de mensagens e áudios que enviou a amigas pedindo ajuda e uma foto do vestido que usava naquela noite, manchado de sangue. Ela relata ter sido dopada e diz lembrar apenas de flashes do ocorrido, o que fez com que André fosse indiciado por estupro de vulnerável.

A blogueira contou ainda que registrou boletim de ocorrência e fez exame de corpo delito no dia seguinte ao ocorrido — onde relata ter sido atendida somente por homens — e publicou prints do laudo pericial que confirmou a presença de sêmen na calcinha que usava. Um exame posterior constatou que o esperma encontrado era compatível com o DNA do empresário paulistano, que chegou a afirmar que nunca tinha tido contato físico com ela.

Ao longo do processo, Mariana disse que fotos suas foram manipuladas pela defesa do acusado para desacreditá-la e afirmou que via "clara obstrução das provas e favorecimento do denunciado e dos envolvidos no crime" pela Justiça. Suas denúncias ganharam apoio nas redes sociais, com centenas de usuários publicando a hashtag #justicapormariferrer. No mês passado, a conta da blogueira foi derrubada do Instagram.

Em sentença publicada nesta quarta-feira (9), o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, absolveu André Camargo Aranha. O magistrado acolheu os argumentos da defesa do empresário, liderada pelo advogado criminalista Claudio Gastão da Rosa Filho, e a própria posição do Ministério Público de Santa Catarina, que se manifestou nos autos pela absolvição do réu pela "ausência de provas contundentes para corroborar a versão acusatória".

A decisão gerou revolta entre os apoiadores de Mariana e levantou um debate sobre como o crime de estupro é tratado pela Justiça brasileira.

Incoerências no processo

A assistência de acusação, que representa Mariana Ferrer no processo, falou com exclusividade à CELINA em uma entrevista realizada pelo telefone nesta quinta-feira (10). Para a advogada Jackie Anacleto, o posicionamento do MPSC foi contraditório:

— O MP foi incoerente porque não deu peso para o depoimento da vítima. Mariana afirmou que não queria ter relacionamento sexual com o André Aranha. No entanto, eles acreditam que o ato foi consentido. As provas, desde o início, mostram o contrário. No processo penal, não se pode usar uma prova isolada, mas o MP fez isso com o vídeo. Existe o áudio que ela manda para as amigas e para a mãe no Uber reforçando que foi violentada. Na manifestação sobre a absolvição que o juiz cita “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”, definitivamente não diz respeito ao caso da Ferrer. Não condená-lo é pelo privilégio social e financeiro. Se fosse uma pessoa com menos recursos, teria sido diferente — diz.

A advogada aponta incoerências durante o processo e constrangimentos sofridos pela influenciadora digital. Ela informa que vai haver o recurso de apelação da sentença:

— A Mariana foi dopada. As drogas do sexo possuem complexidade e o exame toxicológico foi divulgado com um lapso temporal — afirma Anacleto, explicando que o exame foi feito em dezembro de 2018 e o resultado divulgado em abril de 2019.

— Além da inconsistência no exame, foi comprovada o rompimento himenal e material genético do empresário nas roupas da vítima. Durante o processo, a defesa do acusado tentou deslegitimar a vítima apresentando fotos dela com decotes e biquínis. Em uma delas, a foto estava manipulada, como se a Mariana estivesse sem blusa, quando na verdade estava de biquíni. Na hora do interrogatório, no final de julho, o advogado da defesa de Aranha, Cláudio Gastão, zombava do fato de Mariana ser virgem. Na sala, só tinham promotores, juízes e defensores públicos homens, o que influenciou o processo — diz.

A defesa do réu e o MP comentaram o caso por meio de nota (leia mais abaixo).

MP se manifestou pela absolvição

A absolvição determinada pelo juiz nesta semana seguiu a posição do próprio Ministério Público. Quando uma denúncia de estupro é registrada na polícia e o inquérito é enviado ao MP, cabe a este órgão apresentar ou não uma ação, pois se trata de uma ação penal pública incondicionada. Ou seja, o MP é o titular da ação. Quando recebeu o inquérito, o MP de Santa Catarina decidiu propor a ação do caso de Mariana, mas ao final do processo, se manifestou pela absolvição.

— Isso não é comum, mas acontece. O MP que apresenta a denúncia, é o titular da ação penal. Mas pode, ao final do processo, se convencer que as provas coletadas em juízo não foram suficientes e aí pede a absolvição — explica a advogada criminal Clara Masiero, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Para a advogada Marina Ganzarolli, que atua em casos de violência contra mulher há mais de 13 anos e é uma das idealizadoras do #MeTooBrasil, esse tipo de conduta do MP é mais comum nos crimes de violência sexual contra a mulher:

— Essa atitude não é comum. No entanto, quando se trata dos crimes contra a dignidade sexual, é recorrente tanto a remissão quanto o arquivamento dos casos. Tem uma série de provas que colaboram com a condenação do acusado no caso Mari Ferrer. A seletividade do sistema penal e o baixíssimo nível de condenações em crimes contra a dignidade sexual são os problemas estruturais. A palavra da vítima tem menor valor para o judiciário — ressalta.

Em nota, o promotor Thiago Carriço de Oliveira, responsável pela manifestação nos autos, afirmou que o MP apresentou a denúncia para buscar a formação de elementos de prova em juízo."Diversas testemunhas foram ouvidas, tendo sido examinado todo material apreendido na casa do acusado, como aparelhos de celular, tablets, computadores, sendo realizadas também perícias, exames de DNA, exames toxicológicos e filmagens em ambientes públicos e privados", disse.

Após analisar todos os elementos, o promotor afirma que não descarta a hipótese de inconsciência alegada por Mariana. "Todavia, os exames toxicológico e de alcoolemia testaram negativo no dia seguinte ao fato. Do mesmo modo, não se identificou nos autos nenhuma prova indicando que o acusado tivesse oferecido ou ministrado bebida ou droga para a vítima. Não há uma testemunha, imagem ou indício neste sentido."

"Do mesmo modo, não foram constatados elementos que comprovassem que o acusado tinha conhecimento da suposta inconsciência da vítima. A prova produzida não permitiu confirmar de maneira segura e incontestável que o acusado teria agido com dolo de estuprar a vítima", disse o promotor, afirmando que "todas as manifestações de inconsciência ou recusa da vítima são posteriores ao fato."

"Pelo que indica a investigação, com base nas provas materiais, exames, perícias e testemunhos, o que poderia ter ocorrido seria a possibilidade daquilo que a lei enquadra como 'erro de tipo essencial', ou seja, o acusado teria se envolvido sim com a vítima, mas sem a intenção ou consciência de que seu ato seria um crime e também não teria como saber, neste caso específico, se ela poderia estar sob efeito de droga ou embriagada, a ponto de não ter discernimento sobre os seus atos."

A pedido da reportagem, a advogada Clara Masiero analisou o posicionamento do MP. Não foi possível ter acesso aos autos ou à sentença completa, porque o processo corre em segredo de Justiça.

— Sem acesso aos autos, o que parece é que o MP não descartou que ela estivesse inconsciente, mas entendeu que não houve prova suficiente de que o acusado sabia disso. E isso precisava ser provado para que houvesse a condenação por estupro de vulnerável. A Justiça só vai punir um crime penal grave como esse se tiver a prova inconteste de que ele agiu de forma reprovável. Se não foi possível provar que houve essa intenção, a Justiça não pode punir — explica.

Em nota, o advogado do réu, Claudio Gastão da Rosa Filho, reforçou a posição do MP:
"O Ministério Público reuniu centenas de provas, dez depoimentos de testemunhas, incluindo oito mulheres, vários exames periciais e todas as evidências mostraram que não houve estupro. Por essa razão, o MP pediu a absolvição, no que foi seguido pelo juiz. Suas afirmações a respeito de um alegado estupro e supostas consequências ocorreram apenas nas redes sociais. Em seu depoimento ao juiz, Mariana diz que não se lembra o que aconteceu. Esse episódio, contaminado por mentiras, impacta negativamente na luta pela dignidade das mulheres. Mariana prestou um desserviço a todos."

O crime de estupro no Brasil

O crime de estupro tem pena de 6 a 10 anos de reclusão. Se for estupro de vulnerável, de 8 a 15 anos. Não há dados nacionais oficialmente compilados que demonstrem quantos casos terminaram com a condenação ou prisão do acusado. Mas há evidências de que poucos casos de fato chegam ao sistema de Justiça. Ao decidir registrar uma denúncia na polícia, Mariana foi uma exceção.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 66.041 casos de estupro foram registrados em 2018 (dado mais recente disponível). Um estudo feito pelo Ipea em 2014, com base nos dados do sistema de saúde, estimou que ocorrem anualmente 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país, dos quais somente 10% são reportados à polícia.

Considerando as estimativas de ocorrência e o número de notificações dos estupros no Brasil, o perito criminal e presidente da Academia Brasileira de Ciências Forenses, Hélio Buchmüller, estimou, em um artigo publicado em 2016, que apenas 1% dos crimes de estupro seriam punidos no país.

Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) referentes ao segundo semestre de 2019, apenas 0,18% das pessoas encarceradas no país respondem por crimes contra a dignidade sexual. Entre os crimes hediondos e equiparados, apenas 2,98% respondem por estupro.

— O que dá para se afirmar é que o crime de estupro, pela forma como ele ocorre, é um crime de difícil produção probatória. É claro que depende muito do contexto. Mas se não tem marca da violência, perícia que comprove a violência sofrida, testemunhas, ou se a palavra da vítima não tem nenhum outro tipo de corroboração, é, de fato, um crime mais difícil de ser demonstrado — afirma a advogada criminalista Clara Masiero.

— Há também uma construção histórica da sociedade que é o julgamento que se faz sobre essa vítima. Existe uma dificuldade em denunciar por causa disso. Há um senso comum de que algumas mulheres, as mulheres “honestas”, como se dizia antigamente, podem ser estupradas, e outras, que não cabem nesse perfil, não — completa a pesquisadora.

Na opinião da advogada Marina Ganzarolli, o caso de Mariana Ferrer destaca os obstáculos no judiciário brasileiro no debate sobre o estupro no país.

— A violência sexual não atingiu uma compreensão de que é um problema de segurança e saúde pública e de todos. A desqualificação da palavra da vítima está penetrada em uma sociedade com dominação machista e patriarcal. Não à toa os casos de violência sexual são subnotificados — diz.

Para Ganzarolli, é é fundamental que o sistema penal atue integrando táticas de enfrentamento à violência contra mulher:

— A agressão sexual, de forma majoritária, é feita entre quatro paredes. É a palavra da vítima contra a do agressor. O relato da Mariana é o que se espera. Não é consistente. É um discurso traumático. Se o promotor ou juiz não estão formados para o enfrentamento à violência baseada no gênero e formados a neurobiologia do trauma, tendemos a irresponsabilidade — completa Marina, que reflete sobre o estigma atribuído às sobreviventes de violência sexual: — Além disso, temos o problema da compreensão do judiciário brasileiro sobre o que é consentimento. Não é porque a mulher não gritou que ela disse sim. Nesse sentido, a revitimização causa mais trauma do que o próprio evento— diz.

Reportagem de Leda Antunes e Gabriela Oliva no blog Celina d'O Globo

https://oglobo.globo.com/celina/acusado-de-estuprar-mariana-ferrer-absolvido-gera-revolta-levanta-debate-sobre-como-violencia-sexual-contra-mulher-tratada-na-justica-24633120

Covid-19 veio para ficar, e precisamos nos preparar para conviver com o vírus

O infectologista Esper Kallás reflete sobre o que nos espera após a onda pandêmica do novo coronavírus


[RESUMO] Em reflexão sobre o que nos espera após a onda inicial de pandemia, infectologista avalia que o vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, irá circular por um longo tempo, uma vez que outros tipos de coronavírus saltaram de animais para humanos há mais de cem anos e ainda estão entre nós. Diante das dúvidas a respeito de vacinas a curto prazo e da imunização em larga escala, e na ausência de remédios comprovadamente eficazes, será necessário concentrar esforços no entendimento da doença e no encontro de outros métodos de tratamento.

Diante do sofrimento e do impacto global sem precedentes em nossa história moderna, desde as grandes guerras da primeira metade do século passado, a pergunta que todos fazemos é: o que acontecerá depois da onda de pandemia da Covid-19?

Apesar de parecer exercício de futurologia, é possível formular algumas previsões sobre o que virá adiante, com base no que foi aprendido até o momento.

Muito provavelmente, o novo coronavírus veio para ficar

COMO OS HUMANOS ENFRENTAM OS CORONAVÍRUS

Outros coronavírus, que causam resfriado comum, já convivem com os humanos há muito tempo. São quatro, denominados de HCoV: dois do gênero alfa, chamados HCoV-NL63 e HCoV-229E, e dois do gênero beta, HCoV-OC43 e HCoV-HKU1. São também do gênero beta os três coronavírus que mais recentemente causaram epidemias ou pandemias: Sars-CoV-1, Mers-CoV e Sars-CoV-2, este último a causa da atual pandemia.

Esses sete coronavírus capazes de nos infectar “saltaram” de animais silvestres para humanos em algum momento da história. Isso aconteceu com o Sars-CoV-1 em 2002, com o Mers-CoV em 2012 e com o Sars-CoV-2, como sabemos, agora, em novembro de 2019. Já sobre os outros HCoV, conhecemos muito pouco.

O HCoV-OC43, por exemplo, parece ter feito seu “salto” ainda no século 19. Aparentemente, está entre nós há cerca de cem anos. Poderia ter causado uma pandemia, tal como vemos hoje com o novo coronavírus? Não podemos responder sim ou não, mas devemos levar em consideração que o conhecimento científico àquela época era, comparativamente, bastante limitado.

Os vírus foram descobertos em 1876 —o vírus do mosaico do tabaco, que infecta plantas, foi o primeiro. Em 1881, foi identificado, pela primeira vez, um vírus capaz de nos causar alguma doença —o da febre amarela. Além disso, àquela altura, a média etária da população era baixa, e a medicina moderna ainda estava em fase embrionária. O próprio termômetro clínico só seria colocado em uso no início do século 20.

Diante dessa realidade, é possível que uma pandemia causada pelos coronavírus conhecidos tenha passado totalmente despercebida, assim como por outros que podem não ter deixado rastros.

Hoje, sabemos que os quatro coronavírus que causam resfriado comum, os HCoV, o fazem principalmente em crianças. São responsáveis por até aproximadamente 30% dos casos de infecções respiratórias durante o ano, com pico nos meses mais frios.

Soa como um paradoxo quando os comparamos com o novo coronavírus, que causa doença bem mais grave em idosos e praticamente não acomete as crianças. Qual seria o motivo dessa aparente contradição na “preferência” entre os coronavírus?

Há uma hipótese de que esses quatro HCoV teriam cursado caminhos parecidos ao do Sars-CoV-2. Em resumo, foram introduzidos na população também a partir de animais silvestres. Tal como ocorre agora com o novo coronavírus, os HCoV causaram suas próprias epidemias no passado. Levaram ao acúmulo de pessoas com defesa à medida que se espalharam, por períodos que não conhecemos com precisão.

A partir de então, novas infecções pelos HCoV se concentram, em sua maioria, naqueles que ainda não tinham imunidade: a medida que vão nascendo, as crianças que não foram expostas a uma epidemia anterior.

Tendo em vista que os coronavírus acometem principalmente crianças, causando, na grande maioria das vezes, apenas sintomas leves — fato bem-documentado com o Sars-CoV-2 nesta pandemia de Covid-19—, e considerando que os HCoV circulam entre nós há muitos anos, é muito provável que o novo coronavírus percorra o mesmo caminho que os HCoV e, assim, passe a conviver com a humanidade, a partir de agora, infectando bebês e crianças das futuras gerações.

Adultos e idosos, hoje o grupo majoritariamente acometido pela Covid-19, serão menos frequentemente atingidos no futuro, seja porque muitos já faleceram em decorrência da forma grave da doença ou porque sobreviveram e estão imunizados. Tal como ocorreu anteriormente com os HCoV, restará ao Sars-CoV-2 infectar as crianças do futuro, com o leve resfriado comum aos infectados desta faixa etária.

Em outros termos, é possível que todos esses coronavírus estejam repetindo o mesmo caminho: causam a morte dos pacientes mais vulneráveis e selecionam sobreviventes que conseguiram construir sua imunidade, restando infectar as crianças das gerações futuras, que crescerão como adultos imunes à doença.

É possível que todos esses coronavírus tenham começado com uma única e grande onda pandêmica, evoluindo como germes inofensivos para as gerações futuras. Parece plausível, mas não podemos aguardar anos para confirmar uma teoria, sob o preço de acumular um enorme e inaceitável número de mortos.

Embora não frequentemente, os HCoV podem infectar pessoas mais de uma vez. Há estudos científicos bem conduzidos que acompanharam um número grande de pessoas e conseguiram isolar o material genético do mesmo tipo de vírus com intervalos de meses, ou até por mais de um ano. A boa notícia é que a infecção repetida parece não resultar em doença: o vírus transita temporariamente pelas vias respiratórias, sem causar mal maior.

Relatos de reinfecção pelo Sars-CoV-2 começaram a ser confirmados nas últimas semanas. Por enquanto, são eventos raros e sem impacto significativo na pandemia. Contudo, a implicação de tais eventos vai além e será posta a seguir.

IMUNIDADE POPULACIONAL

Logo que o Sars-CoV-2 foi descrito, pouco se sabia sobre a resposta imune que os humanos comumente apresentam contra essa família de vírus. Os estudos se limitavam a observações esparsas sobre os coronavírus comuns, contando apenas com impulsos recentes por duas epidemias causadas por dois outros coronavírus, o Sars-CoV-1 e o Mers-CoV.

Alguns protótipos de vacinas foram testados, mas acabaram abandonados diante da redução na circulação desses dois vírus. Sem saber, perdeu-se uma preciosa oportunidade de preparação para o que estava por vir: a pandemia de Covid-19.

Há duas maneiras de considerar o que representa uma defesa imune contra os coronavírus. A primeira diz respeito à proteção completa e total contra a infecção: a imunidade esterilizante, a qual não permitiria que o vírus sequer conseguisse se multiplicar. Com ela, o organismo já teria uma linha de frente pronta, capaz de neutralizar o germe à entrada no corpo, sem admitir a instalação da sua infecção.

Na segunda alternativa, considera-se alguma proteção contra a doença, diante da qual o vírus poderia até se multiplicar, mas o sistema imune o eliminaria assim que o percebesse, impedindo a doença de se desenvolver.

Ainda não sabemos qual é o marcador biológico que indica a real imunidade contra os coronavírus. Em outras palavras, ainda precisamos definir o marcador de proteção para dizer se um indivíduo está, de fato, protegido ou não —e isso se estende à infecção pelo Sars-CoV-2 e ao desenvolvimento da Covid-19.

Há indícios de que a formação de anticorpos, moléculas capazes de grudar na superfície do vírus, denotam proteção. Entretanto, existem diferentes tipos de anticorpos, sendo os mais desejados pelos cientistas aqueles que grudam e também neutralizam o Sars-CoV-2.

Denominados de anticorpos neutralizantes, eles já vêm sendo produzidos artificialmente em maior escala como forma de tentar tratar a Covid-19. Experimentos em animais mostraram que anticorpos neutralizantes reduzem a capacidade de multiplicação do vírus nas vias respiratórias, limitando a chance de aparecimento da doença.

Uma das principais características dos coronavírus é sua preferência por se multiplicar na camada mais superficial do sistema respiratório, infectando as células da mucosa, desde a cavidade nasal até as ramificações terminais dos pulmões.

Podem também chegar a terminações nervosas próximas ao sistema respiratório, como os nervos relacionados ao olfato e ao paladar. Não à toa, a anosmia (incapacidade de sentir cheiros) e a ageusia (perda do paladar) são sintomas comuns em pessoas acometidas pela Covid-19. Com menor frequência, os coronavírus podem ainda chegar a outros órgãos.

O sistema de defesa de uma pessoa que já foi infectada pelo Sars-CoV-2 teria uma vantagem: por já ter “visto” o vírus, pode construir uma linha de defesa para um eventual reencontro. Tudo indica que a grande maioria de pessoas que passaram pela Covid-19 estão protegidas: um estudo em Nova York apontou que mais de 98% desses pacientes apresentaram anticorpos contra o Sars-CoV-2 detectáveis em até três meses, enquanto outro estudo conduzido na Islândia apontou 91% em até quatro meses.

Quanto tempo, exatamente, dura a imunidade contra o Sars-CoV-2? Difícil dizer, uma vez que esse vírus nos ronda há menos de um ano, sem ainda nos oferecer tempo suficiente para dar esta resposta. Todavia, reinfecções já foram descritas em casos envolvendo os HCoV, enquanto os primeiros relatos similares começam agora a aparecer com o Sars-CoV-2.

Isso mostra que ao menos uma parcela da população não conseguirá desenvolver a imunidade esterilizante por longo tempo e, assim, abrirá espaço para que o vírus continue circulando na população —mais um indício de que o novo coronavírus veio para ficar.

Essa característica, junto ao fato de um grande contingente de infectados não ter sintomas, explica porque será muito mais difícil erradicar o Sars-CoV-2, como se conseguiu com o vírus da varíola.

VACINAS

Há imensa expectativa de descoberta de uma vacina segura e eficaz, capaz de conter a pandemia de Covid-19. Motivações econômicas e políticas se somam às pressões da sociedade, para que esse processo aconteça com celeridade.

Nessa corrida contra o tempo, muitas são as questões a serem consideradas. Qual é a forma mais rápida de descobrir uma vacina? Qual o meio mais seguro? Quais estratégias têm mais chances de funcionar? Qual é a capacidade de produção de vacinas para atender mais de 7 bilhões de pessoas? Quais os grupos prioritários para a aplicação dos primeiros lotes produzidos?

Políticos, chefes de Estado e autoridades de todos os cantos do mundo projetam prazos e esperanças. Embora saibamos que as vacinas figurem entre as descobertas científicas mais importantes para a ampliação do tempo de vida do homem moderno, também sabemos que todas apresentarão algumas limitações. Uma vacina contra a Covid-19 precisa ser analisada com o devido rigor científico, não como uma panaceia.

É verdade que jamais se viu uma corrida tão intensa à procura de uma vacina eficaz. São aproximadamente 200 produtos em desenvolvimento, dos quais 35 já estão em fase de testes em humanos, de acordo com levantamento da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Tal feito, em si, representa um grande experimento. Todos esses produtos têm a mesma finalidade: simular a infecção sem causar a doença que o germe original costuma provocar —é isto o que uma vacina faz.

Para alcançar a imunização desejada, as vacinas podem utilizar diferentes abordagens. Dentre as estratégias estudadas contra o Sars-CoV-2, algumas são tão inovadoras que nem sequer chegaram às fases finais de desenvolvimento contra qualquer outro germe. Outras baseiam-se em métodos mais tradicionais —por exemplo, utilizando vírus enfraquecido ou atenuado, como é o caso das excelentes vacinas contra o sarampo, a rubéola e a febre amarela.

As vacinas de vírus atenuados (enfraquecidos) são consideradas boas, pois os vírus ainda têm capacidade de multiplicação após sua administração, gerando um estímulo para o sistema imune. Por outro lado, sua produção exige checagens de segurança mais rigorosas, as quais, naturalmente, demandam mais tempo.

Em outra classe de vacinas, são utilizados vírus mortos, como é o caso da vacina da gripe. Essa abordagem, reconhecidamente, sofre outro tipo de problema: sua capacidade de estimular o sistema imune é um pouco mais limitada. Também por isso, é preciso que a vacinação da gripe seja repetida todos os anos. A proteção oferecida por essa vacina é comparativamente menos duradoura, ainda mais diante da diversidade do vírus contra o qual ela atua.

Além das vacinas de vírus “inteiro”, atenuado ou morto, são estudadas formas alternativas de imunização, que apresentam apenas a superfície viral ao sistema de defesa. Dessa forma, ele conseguiria fazer a leitura e memorização dessa informação, montando a proteção necessária contra germes inteiros.

A grande maioria dessas novas vacinas tem apostado em uma proteína específica, disposta na parte externa do vírus, conhecida como spike. Supõe-se que, se o organismo for capaz de reconhecer essa proteína, haverá proteção contra o Sars-CoV-2.

Será, entretanto, que uma resposta exclusiva contra a spike é suficiente para nos proteger da Covid-19? Ou seria preciso que outras partes da superfície do vírus estivessem representadas nessa vacinação? Somente os resultados dos testes trarão essas respostas.

Algumas estratégias consistem em produzir a spike, ou pedaços dela, para vacinar as pessoas. Outra seria colocar a informação genética da spike dentro de algum vírus inofensivo, conhecido como vetor. As duas estão em desenvolvimento, com vários estudos já cursando a fase final. Há, contudo, muito poucas vacinas licenciadas contra outros germes que usam essas estratégias e, portanto, a experiência é limitada.

Outra abordagem bastante inovadora inclui vacinas que utilizam material genético, DNA ou RNA. São consideradas seguras e, portanto, permitiriam um passo mais acelerado em seu desenvolvimento, com rápido início de testes em humanos.

Quanto tempo irá durar a proteção? Teremos que vacinar mais de uma vez na vida? Ainda é cedo para responder. Somente o acompanhamento a longo prazo nos dirá se basta uma ou se precisaremos de mais vacinações ao longo da vida.

E O FUTURO?

O SARS-CoV-2 está trilhando o caminho que o tornará o quinto coronavírus com o qual teremos de conviver. Suas características —a capacidade de transmissão e os artifícios que utiliza para escapar da resposta imune— parecem garantir que esse convívio se dará por um longo período.

Qual a solução para que possamos retornar ao cenário mais próximo àquele em que vivíamos antes da atual pandemia?

Descobrir uma ou várias vacinas eficazes pode ajudar, desde que consideradas as devidas limitações. Ainda não sabemos se a vacinação levará à imunidade esterilizante, que impediria a circulação do vírus caso todos fossem vacinados. Ainda assim, a eficácia parcial, especialmente em idosos, os mais vulneráveis à Covid-19 em sua forma mais grave, é tida como certa.

Uma alternativa que deve ser explorada é o uso combinado de diferentes vacinas contra a Covid-19. Infelizmente, a excessiva politização e os interesses econômicos envolvidos na corrida pelo licenciamento das vacinas têm dificultado melhores entendimentos para tais colaborações. Combinar vacinas com características diversas poderia potencializar o efeito e levar a um maior nível de proteção, especialmente em idosos.

Uma solução mais imediata seria descobrir um remédio eficaz, com efeito antiviral potente, que impeça a progressão para formas graves da doença logo durante o aparecimento dos primeiros sintomas.
Enquanto isso, continuam as buscas por medicações ou anticorpos neutralizantes produzidos em laboratório que preencham tais requisitos.

Infelizmente, a hidroxicloroquina não se mostrou capaz de cumprir esse papel. Uma pletora de estudos clínicos já apontou que ela não apresenta qualquer eficácia no tratamento ou prevenção da Covid-19.

Deve-se, portanto, preparar a sociedade para conviver com esse novo vírus. Por isso, precisamos concentrar esforços no entendimento da epidemiologia, da resposta imune e dos mecanismos da doença, bem como no encontro de formas mais eficazes de tratamento e no desenvolvimento de vacinas que reduzam o impacto do vírus na saúde pública. Afinal, o novo coronavírus parece ter vindo para ficar.

Agradecimentos a Fabiana Gabas Kallas, Lucas Mandacaru Bosco e Euclides Ayres Castilho pela rigorosa e valiosa revisão e contribuições.

Texto de Esper Kallás, médico infectologista, professor titular da Faculdade de Medicina da USP na Folha de São Paulo de 11/09/2020

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/09/covid-19-veio-para-ficar-e-precisamos-nos-preparar-para-conviver-com-o-virus.shtml

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Sem sintomas, brasileira carregou coronavírus por cinco meses

Sem sintomas, brasileira carregou coronavírus por cinco meses, caso mais longo de infecção já documentado
Em trabalho pioneiro, cientistas da UFRJ acompanharam o caso de uma mulher que permaneceu 152 dias com o Sars-CoV-2 Testes de Covid-19 sendo realizados no Laboratório de Virologia Molecular do CCS-UFRJ Foto: Fabio Motta / Agência O Globo
A persistência do coronavírus no organismo de algumas pessoas é muito maior do que se pensava. Num trabalho pioneiro, cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) acompanharam e documentaram o caso de uma mulher que permaneceu 152 dias infectada com o Sars-CoV-2 com capacidade de se multiplicar, isto é, potencialmente contagioso.
Essa é a mais longa persistência de coronavírus já documentada no mundo e evidencia o importante papel dos assintomáticos na propagação da pandemia.
O trabalho é dos grupos dos cientistas Luciana Costa, Amilcar Tanuri e Teresinha Marta Castineiras, professores do Instituto de Microbiologia, do Instituto de Biologia e da Faculdade de Medicina da UFRJ. Ele reforça a hipótese de que os assintomáticos são os pilares de sustentação da disseminação do Sars-CoV-2.
A mulher, identificada apenas como a Paciente Número 3, é uma profissional de saúde do Rio de Janeiro que adoeceu em março, sem maior gravidade. Ficou três semanas com sintomas leves e não precisou ser internada. Depois, os sintomas se foram, mas não o coronavírus.
O caso é o mais longo, mas não é isolado. Essa descoberta faz parte do trabalho da força-tarefa de estudo do coronavírus realizado pela UFRJ e coordenado pela professora Teresinha Marta, que desde março testou por RT-PCR (molecular) mais de 3.000 pessoas (o número de casos aumenta a cada dia), em sua maioria profissionais de saúde do estado do Rio de Janeiro.
Luciana Costa destaca que 40% das pessoas testadas continuaram a ser positivas 14 dias após o aparecimento dos sintomas, o período padrão de negativação pelo Ministério da Saúde. Isto é, quando a pessoa deixa de transmitir o vírus e poderia sair do isolamento e voltar a trabalhar.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) estipulam um prazo ainda menor, de 10 dias estando assintomáticas por três dias consecutivos.
Em cerca de 60% das pessoas infectadas, o coronavírus deixa de se replicar nas vias aéreas superiores após 10 dias. Por isso, não pode ser mais transmitido. O coronavírus não faz viremia, ele não circula no sangue. Porém, cientistas supõem que possa se esconder em outras partes do corpo, que funcionem como reservatórios.
Em algumas pessoas, por motivos ainda desconhecidos, ele poderia deixar seu esconderijo e voltar a se multiplicar em boca e nariz, sendo de novo transmissível. O grande problema e o que faz o vírus insidioso é que a pessoa pode não manifestar sintomas, não saber que está contagiosa e mais uma vez e propagar a Covid-19.
A Paciente N° 3 faz parte de um detalhamento do estudo com os profissionais de saúde. Luciana Costa e seu grupo selecionaram 50 pessoas que retornaram mais de duas vezes para fazer a testagem e investigaram seus casos em minúcias.
A Paciente N° 3 faz parte de um detalhamento do estudo com os profissionais de saúde. Luciana Costa e seu grupo selecionaram 50 pessoas que retornaram mais de duas vezes para fazer a testagem e investigaram seus casos em minúcias.
Os pesquisadores da UFRJ agora pesquisam se as 42 pessoas que não tiveram vírus capazes de se multiplicar desenvolveram os chamados anticorpos neutralizantes, os únicos capazes de destruir o coronavírus. A questão é que esses testes são demorados e artesanais. Não podem ser realizados em grande escala.
— Por isso, consideramos que profissionais de saúde só devem retornar ao trabalho após negativarem em exames moleculares de PCR. E para a população, em geral, a segurança só virá com uma vacina. Antes disso, é máscara e distanciamento social — frisa Costa.
A história da Paciente Nº 3 revela uma faceta importante dos mecanismos que mantêm viva a pandemia. Ela foi testada em março, ao procurar o posto da UFRJ com sintomas. Estes permaneceram por três semanas. Assim como o coronavírus.
A mulher continuou a se testar, e a cada sete dias era colhida uma amostra. Por dois meses, ela foi ao laboratório e continuou positiva. Luciana conta que a mulher começou a ficar angustiada com a situação e ficou um tempo sem aparecer no laboratório.
Ao longo desse período, ela pode ter transmitido o vírus, e isso ainda está sendo determinado. Ela voltou a procurar o laboratório por temer estar ainda infectada. Sua suspeita foi comprovada. O vírus estava presente em suas vias aéreas superiores e ativo.
A Paciente N° 3 é um caso evidente de persistência do vírus. Ela não foi reinfectada. Essa possibilidade foi afastada porque a sequência genética do coronavírus era a mesma em todas as amostras. Ela tampouco desenvolveu anticorpos neutralizantes, mas não adoeceu de novo. Uma hipótese é que tenha sido protegida diretamente por células do sistema imunológico.
— Essa mulher viveu cinco meses com o coronavírus. O caso dela foi descoberto porque é uma profissional de saúde, mais atenta para o risco de transmissão e desde cedo participou do estudo. Mas suspeitamos que a persistência não é rara. Pode haver muita gente assim, e isso ajuda a explicar por que a circulação do coronavírus continua a se manter — salienta Costa.
Se muita gente adoecesse, seria difícil para o vírus continuar a circular em grande escala.
— Uma das características que faz o Sars-CoV-2 perigoso é que ele circula em muita gente sem sintomas, que nem sabe que está infectada. E são essas pessoas que o levam adiante com eficiência. Os doentes são evidentes e nem saem tanto de casa. Mas os assintomáticos são a forma invisível de o coronavírus se espalhar — frisa a Costa.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

"Libertação sexual": QUANDO A DOMINAÇÃO MASCULINA SE REINVENTOU


Por Francine Sporenda entrevista Richard Poulin, traduzida por Mirian Giannella

Richard Poulin é Professor Emérito de Sociologia (Universidade de Ottawa) e Professor Associado do Instituto de Pesquisa e Estudos Feministas (UQAM). É autor de livros sobre indústrias sexuais, questões étnico-nacionais, violência assassina, bem como socialismo e marxismo. Ele dirige "M publisher" e acaba de publicar "A Culture of Aggression, Masculinities, Sex Industries, Serial and Mass Murders" (1).

F.: Você diz que o capitalismo recuperou o sexo. Nesta sexualidade mercantilizada, a injunção para gozar é "agora uma condição de saúde e equilíbrio mental". Antes, o prazer era proibido às mulheres, agora tornou-se obrigatório. Quais são as consequências dessa unjunção para as mulheres — e elas ganharam na troca?

RP - Fala-se de "revolução sexual" e de "libertação sexual", mas acho que em retrospectiva devemos falar sobre "liberalização sexual". Para quê? A liberdade sexual (obtida através da pílula anticoncepcional) certamente permitiu a dissociação da sexualidade e da reprodução e permitiu tirar esse peso que sempre caiu sobre as mulheres: o terror da gravidez indesejada. Também tornou mais fácil para os homens acessar corpos femininos. Mulheres jovens que não davam, especialmente as dos círculos militantes, eram desaprovadas, consideradas conservadoras ou reacionárias, puritanas, reprimidas, etc. Então a pressão era enorme. E o homem que não conseguia seduzir facilmente mulheres se sentia mal, inadequado, incapaz.



Então, muito rapidamente, o dever de desempenho se impos ao mesmo tempo que o diktat da juventude, da magreza anoréxica e da feminilidade exarcebada. A moda unissex deu lugar a uma sexualização fixa de atributos. A dominação masculina foi renovada avançando "mascarada, sob a bandeira da liberdade sexual" (Anne-Marie Sohn). E a liberalização sexual causou uma explosão na mercantilização do sexo.

Existe essa injunção de gozar para as mulheres, e torna-se possível na medida em que descobrimos que elas têm o chamado "ponto G". Essa descoberta leva a uma otimização do desempenho no coito e à obrigação de múltiplos prazeres. Além disso, capacita as mulheres para o seu gozo e, no mesmo movimento, descapacita (novamente) os homens. Dessa forma, abre caminho para um "regramento sexual" renovado. A injunção para gozar é agora uma condição de saúde e equilíbrio mental. Em suma, as mulheres que não encontram seu "ponto G" devem se sentir culpadas por não terem sucesso em ter um orgasmo vaginal em vez de um orgasmo clitoridiano. E também sabemos que hoje em dia muitas mulheres jovens, na faixa dos 30 e 20 anos que vão ao ginecologista reclamam de dor durante a relação sexual: não funciona como deveria, elas têm muita dificuldade em assumir essa ideia que elas devem realizar: a de que não apenas elas devem fazer o parceiro gozar, mas elas também devem gozar absolutamente. E parece cada vez mais difícil e complicado para um número delas ser capaz de chegar ao orgasmo, ainda mais se se tem que ser necessariamente vaginal.

Mas essa injunção para gozar anda de mãos dadas com outra: a de ser bela, de prestar atenção ao corpo, de esta à escuta do outro e de seu corpo, que o corpo deve ser atraente para o outro, de usar todos os meios para fazê-lo. Também deve assistir pornô para entender o que dá prazer aos homens, o prazer dos homens estando ligado à sua própria objetificação: tornar-se um objeto de desejo é algo que parece ser extremamente importante. Revistas femininas transmitem isso de forma espantosa, assim como revistas para adolescentes. Então há um bombardeio constante sobre mulheres e jovens adolescentes, sobre o que deveriam ser. Como resultado, a cirurgia estética, especialmente para implantes mamários, aumentou significativamente. Temos os números para os Estados Unidos e Espanha, mas imagino que os números são semelhantes para o Canadá e a França. Dizem que você deve estar bem em seu corpo, mas para estar bem em seu corpo, você tem que transformar seu corpo. E essas transformações são ditadas pelos desejos dos homens: por exemplo, ter seios maiores. Assim, a pressão sobre as mulheres - sobre o corpo das mulheres e seu psicológico - é enorme. Também existe para os homens, mas muito menos. A depilação em homens está em ascensão, mas a depilação total em mulheres é imperativa. Fiz uma pesquisa com alunas sobre o uso de pornografia, e um estudo para complementar a pesquisa sobre transformações corporais. Houve uma correlação muito forte entre a idade do incío do uso da pornografia e as transformações corporais. Transformações que poderiam ser temporárias, como a depilação, mas também poderiam ser permanentes, como a tatuagem. Descobrimos que quanto mais jovens começaram a usar pornografia, mais a depilação era uma norma, mais tatuagens havia, mais piercings, etc. Assim, a imagem do corpo feminino pornificado tornou-se um modelo de feminilidade.



F.: Então, em última análise, a sexualidade, de uma forma ou de outra, continua sendo a maneira fundamental de policiar as mulheres?

R.P.: Sim, e quando eu falo sobre a mercantilização do sexo, não é apenas que as indústrias do sexo estão comercializando os corpos de mulheres (e crianças), é também a ideia de que, para ficar bem na fita, você tem que adotar padrões que são os da indústria da pornografia. A depilação de pelos púbicos vem da chamada "guerra capilar" que ocorreu entre a Playboy, Penthouse e outras revistas desse tipo. No início da década de 1990, os púbis femininos não eram depilados em imagens pornográficas. Esta guerra levou a um excesso de licitude, temos que mostrar tudo, e o pelo era um obstáculo que impedia de ver os órgãos sexuais. Foi quando começamos a podar e raspá-los, e daí até a depilação total. Hoje você tem a parte superior do corpo corrigida por cirurgia plástica com implantes de mama que muitas vezes são enormes, até mesmo disformes, e a parte inferior do corpo depilada. É uma infantilização pornográfica dessa parte do corpo das mulheres - como se a mulher em cena fosse de idade pré-púbere, tivesse que permanecer uma garotinha - e, para a parte superior do corpo, há, pelo contrário, uma amplificação dos órgãos da feminilidade.

F.: Você cita o aviso da feminista Diana Russell de 1974 de que "se a libertação sexual não é acompanhada por uma libertação dos papéis sexuais tradicionais, pode resultar em uma opressão ainda maior das mulheres do que antes". Foi isso que aconteceu, e que análise política você faz do conceito de "libertação sexual"? Houve um alinhamento para mulheres com objetivos sexuais masculinos, ou seja, mais acesso sexual aos corpos das mulheres?

R.P.: Sim, ainda podemos dizer que a pílula desempenhou um papel porque quando estava disponível, foi dito que as mulheres poderiam fazer sexo com todos os homens que quisessem sem ter esse medo de engravidar. Então foi uma liberação nesse nível. Mas ao mesmo tempo veio a injunção de que a mulher tinha que fazer sexo com vários homens...




F.: As mulheres não tinham mais nenhuma razão para negar-se aos homens, isso abriu acesso sexual quase ilimitado a eles?

R.P.: Sim, o acesso dos homens às mulheres tornou-se muito maior. E os homens se aproveitaram disso enormemente. As mulheres se beneficiaram? Eu não tenho certeza. Não posso falar por elas, mas deu aos homens um maior acesso às mulheres. Esse maior acesso às mulheres foi acompanhado por uma explosão de pornografia e prostituição. Isso é paradoxal, porque poderia ter sido assumido que um maior acesso às mulheres teria reduzido a indústria da prostituição, o contrário aconteceu. Assim, para os homens, o acesso aos corpos das mulheres foi multiplicado não só no namoro, mas no sexo pago. Isso me faz pensar que não vimos libertação sexual, mas liberalização sexual: por volta dos anos 1990 houve uma explosão da mercantilização e objetificação dos corpos das mulheres em todo o mundo.

F.: O que você acha da tese feminista de que o crescimento da pornografia (juntamente com o retorno da religião fundamentalista) constitui uma "vingança simbólica dos homens diante do desenvolvimento da afirmação e autonomia das mulheres"? E que a pornografia permitiria que os homens recuperassem o terreno perdido como resultado dos avanços feministas?

R.P.: Na minha pesquisa sobre pornografia nos anos 1980, antes da Internet, entrevistei um dos homens que publicaram a revista pornô canadense Rustler. Ele disse que o que fez a revista vender melhor foram fotos de mulheres ajoelhadas na frente de um homem fazendo sexo oral nele. Para ele, era o próprio símbolo do fato de que as mulheres eram submissas aos homens, e que se os homens gostavam dessas fotos, era uma espécie de vingança contra o movimento feminista. Essa foi a explicação dele, e acho que tem um passado de verdade. A pornografia tornou-se um meio simbólico para os homens reduzirem as mulheres a um status menor do que eles. O movimento feminista tem afirmado a autonomia e a igualdade das mulheres, mas a pornografia diz que a igualdade é impossível. Essa inferioridade pornográfica levanta a questão das relações de gênero, mas também levanta a questão do racismo. O status dos negros na pornografia é um status animal: um homem negro é um garanhão. Essa animalização, que é uma forma de inferiorização, também se aplica às mulheres no cotidiano. Na França, o sexo de uma mulher é chamado de chatte, de gata. Essas comparações com animais são legião quando se trata de mulheres e negros, porque um animal não pode ser igual a um homem. Um homem branco tem o poder e o direito de treinar um animal, assim como ele tem o poder de treinar uma mulher ou um homem negro. Há toda uma imaginação masculina de inferiorização e subjugação de mulheres, negros e asiáticos etc. E só homens brancos escapam dessa animalização.

F.: Ouvi clientes de prostituição dizerem que se eles usavam prostitutas, era porque as mulheres tinham se tornado impossíveis, muito exigentes, arrogantes etc., e que na prostituição eles encontravam mulheres submissas, a serviço dos homens, de tal forma que nunca deveriam ter parado de ser...

R.P.: Nós sempre tentamos legitimar o que fazemos por todos os tipos de meios ou pretextos, e isso, do ponto de vista dos homens, nunca é nossa culpa. Este é um elemento básico da tradição judaico-cristã com a expulsão do paraíso terrestre: é culpa de Eva se alguém foi expulso do paraíso, Adão é completamente inocente, ele não entendeu o que estava acontecendo. Por definição, é Eva quem é responsável pela queda humana. E este é sempre o caso: para os homens, são sempre as mulheres que são responsáveis por suas próprias ações, nunca eles mesmos. Os homens são infantis... Uma criança diz: "A culpa não é minha, é dos outros." Acho que esses homens estão frustrados, na medida em que, o que procuram na prostituição, nunca conseguem. Então, se eles não têm, a culpa é das mulheres. Pesquisas de "clientes" de prostituição e prostitutas mostram que esses homens funcionam como aqueles indivíduos que absolutamente querem obter o modelo mais recente do i-phone, mesmo que o deles ainda funcione muito bem. Portanto, há um frenesi de consumo permanente porque estamos insatisfeitos com o produto que temos, pois estamos insatisfeitos com a relação com a mulher prostituída e achamos que da próxima vez será melhor. Nunca é melhor, então envolve uma fuga pra frente que leva a um chamado constante para o consumo.

F.: Quais são as consequências da pornografia nas relações de gênero? Como pode a noção de amor heterossexual, especialmente amor "romântico", sobreviver em uma sociedade onde a pornografia onipresente dá uma imagem tão degradada de mulheres (e homens)?

R.P.: A pornografia não é a única questão, é além de outros fatores sociais, mas usuários de pornografia, pornófilos, estão sofrendo com os efeitos desse consumo em suas vidas sexuais. Esses efeitos foram documentados: esses homens desenvolvem disfunção sexual erétil e têm dificuldade em ejacular com uma "mulher real". Há também incitação à violência sexual: nos Estados Unidos, várias pesquisas mostraram que, entre os jovens usuários de pornografia, a ideia de que podem agir e estuprar é muito forte. Outra das consequências da pornografia entre muitos jovens — porque o consumo de pornografia começa cedo— são os complexos corporais. Obviamente, quando você contrata um garanhão, é porque ele tem qualidades físicas, como ser capaz de fazer sexo sob demanda na frente das câmeras, e tem um pênis maior que a média. Os jovens que olham isso e comparam com seus próprios corpos, lhes dá complexos sobre seu físico. Isto é para garotos. Mas para as mulheres, as consequências são que elas se acostumam a comportamentos degradantes. Deixe-me dar um exemplo: em entrevistas com mulheres jovens, surgiu uma prática usada com muita frequência, foi a ejaculação facial. Algumas das jovens que entrevistamos concordaram em receber esperma em seus rostos, mesmo que achassem degradante, para agradar ao namorado. Os caras pensaram que não era um problema e até mesmo que era emocionante. Assim, induz comportamentos onde a degradação do outro se torna um simples jogo sexual normal.




F.: A ampla disseminação da pornografia e a normalização da prostituição mudam radicalmente a relação entre homens e mulheres, em todas as sociedades... Veja o que está acontecendo na Alemanha.

R.P.: Na Alemanha, cerca de dois terços dos homens pagaram por sexo, no Canadá é cerca de 11%, na França é cerca de 12,5%. É óbvio que, em uma sociedade como na Alemanha, a visão das mulheres que os homens têm deve ser diferente da de uma sociedade como a minha ou a sua. Isso induz uma visão das mulheres como estando disponíveis para os homens, e se traduz na reação dessa garota que eu falei que pensou que a ejaculação facial, no final, não era tão degradante. Mas há uma distinção entre pornografia e prostituição: a pornografia é muito mais universal do que a prostituição. Na Alemanha, França ou Canadá, a pornografia é quase universal, e também mulheres a usam, não são mais apenas homens. A pornografia tem maior influência no imaginário coletivo e nas relações sociais de sexo do que a prostituição.

F.: Eu tenderia a pensar que a pornografia é um incentivo para a prostituição, e um manual de instruções para fazê-lo: pornografia é teoria, e prostituição é prática, a implementação de práticas sexuais propostas pela pornografia

R. P: Você está certa, a pornografia pode até ser definida como propaganda em favor da prostituição.

F.: Pornografia seria performática?

R. P: Isso mesmo. Veja, por exemplo, o resistente. Muitas vezes em uma cena vemos o sexo do hardy, mas nunca seu rosto, e seu comportamento é o de uma máquina. Por outro lado, os rostos das mulheres são mostrados, porque mostrar seu "prazer" é imperativo. Além disso, a pornografia é uma das poucas áreas onde "atrizes" ganham mais do que "atores". Porque são elas que estão no centro da pornografia, não os homens. Na verdade, podemos substituir os homens por um vibrador, por animais, qualquer coisa.

F.: Você diz em seu livro que pornografia é um incentivo para agir, você cita estudos estatísticos sobre isso.

R.P.: Não apenas no ato, a pornografia incentiva a violência sexual, incentiva a objetificação, a mercantilização, é por isso que estou falando de pornografia como propaganda para prostituição. E não há limites. Publiquei algumas figuras sobre o assunto em um livro anterior, Early Sexualization and Pornography (Paris, La Dispute, 2009). Esses dados são irregulares, apesar da onipresença da pornografia em nossas sociedades. Por quê? Simplesmente porque há muito pouca pesquisa acadêmica sobre pornografia, como se o assunto fosse tabu, era uma questão de liberdade de expressão, e qualquer ataque a ela, inclusive através de pesquisas, seria repreensível, uma vez que ataca a primeira de nossas liberdades! No entanto, quando ouvimos as pessoas que trabalham no social, aprendemos mais sobre a influência da pornografia. Por exemplo, ao lidar com abusadores sexuais há menos de 15 anos, palestrantes do Centro de Psicologia Forense de Montreal, que supervisiona menores abusadores sexuais, ligam o precocidade dos agressores ao consumo pornográfico e à sexualização pública.

F.: Você aponta em seu livro que a violência contra as mulheres (como o assassinato em massa) não são atos impulsivos e que reduzir as motivações desses atos a fatores puramente psicológicos e individuais - uma infância infeliz, um pai ausente, "loucura" ou a famosa "mãe castradora" - obscurece os significados sociais de tal violência. Quais são os significados sociais dessa violência?



R.P.: Assassinatos em massa (três ou mais vítimas) que não ocorrem na família, aqueles que ocorrem em escolas, em locais públicos, no trabalho, etc., são todos assassinatos masculinos. São homens que matam estranhos ou que estão fora de seu círculo íntimo. Se usarmos só a psicologia para explicar o ato do assassino, escondemos o fato de que é uma masculinidade que está em movimento, e isso é violento. Há assassinatos em massa por mulheres, mas isso acontece na família, e geralmente é a mulher que mata seus filhos, por todos os tipos de razões. Isso está acontecendo com menos frequência do que nas décadas de 1930 e 1940, quando aconteceu com mais regularidade. Era uma época de grande pobreza, mulheres que estavam sozinhas separadas de seus filhos porque a vida era muito difícil. Hoje, na família, geralmente é o homem que mata a esposa e os filhos, ou apenas as crianças. São sempre as mesmas razões dadas: geralmente é quando o homem percebe que sua esposa quer deixá-lo que ele toma medidas (74% dos casos). E se analisarmos como um "crime passional" ou a loucura de um homem que não aceita ser deixado, perdemos o ponto: que são os homens que matam mulheres e crianças. Porque essas mulheres e crianças são percebidas como propriedade, e é inaceitável que seus direitos a essas pessoas lhes sejam tirados. Esse discurso é ouvido regularmente, mas é ignorado porque preferimos estudar a psicologia desses assassinos, apresentá-los como desequilibrados, invocamos conceitos freudianos, é a "mãe castradora", o "pai ausente" que são fornecidos como explicação. No entanto, nem todos os homens que têm um "pai ausente" e uma "mãe castradora" tornam-se assassinos. Então deve haver outros fatores além destes.

Enquanto esses assassinatos são explicados pela patologia dos assassinos ("eles perderam a cabeça"), eu os analiso a partir das características das vítimas. Essa perspectiva radicalmente nova nos estudos universitários revela a dinâmica machista e racista, muitas vezes ignorada, nesse tipo de crime. Quando a mídia lida com os assassinatos de mulheres, geralmente se refere ao evento como um "drama familiar" ou um "crime passional", expressões que obscurecem a violência masculina. Quando se fala em assassinatos em escolas, a mídia regularmente se refere a "crianças que matam outras crianças" quando na realidade são meninos (100%) que matam. Assim, os discursos que instalam a violência apenas do lado da psicologia dos assassinos ("nenhum indício apontou tal ato de loucura") têm pouco interesse nos significados sociais machistas e racistas da referida violência. Eles se recusam a nomear essa violência, que é masculina, e, portanto, escondem-na.

F.: Finalmente, você acha que há um ponto de partida biológico para a violência masculina, como as feministas essencialistas pensam?

R.P.: Como sociólogo, eu atiraria no mesmo no pé e diria que sim! Isso tiraria a oportunidade de fazer meu trabalho. Acho que é mais uma questão de socialização. Eu tinha um colega que tinha feito trabalho de campo na Amazônia no Wawana. Todos os comportamentos que conhecemos aqui, em nossa sociedade, eles não os conhecem lá: sem competição, sem competição entre homens, homens vão caçar na floresta pela manhã e voltam à noite depois de passar horas. Se eles ficam na floresta por tanto tempo, é para permitir que os caçadores menos bons voltem também com presas. Não havia nada competitivo entre os homens, nem havia monogamia, então não havia ciúmes. Sem propriedade privada, um não quer ter o que o outro tem porque é compartilhado. Então é uma sociedade completamente diferente. É o que acontece nas sociedades matrilineares, na ausência de propriedade privada, e torna comportamentos diametralmente opostos ao que conhecemos em nossas sociedades. Portanto, a explicação biológica é irrelevante. Outra diferença interessante foi que quando esse colega lhes fez a pergunta "quem é o mais bonito?", os homens se recusaram a responder. Mas no final, insistindo, este colega conseguiu uma resposta. Os homens disseram: "Nós somos os mais bonitos." Nessa cultura, os homens são vistos como mais bonitos do que as mulheres, porque na natureza, pássaros e animais machos são muitas vezes mais coloridos, mais ornamentados do que as fêmeas, e é por isso que eles pensavam (ao contrário de nós) que não eram as mulheres o "sexo bonito", mas os homens.

F.: Há culturas como a dos Masai, onde são os homens que se enfeitam, que se pintam, que desfilam...

R.P.: É realmente a socialização que explica a violência de algumas sociedades. Só porque você tem um pênis não significa que está condenado à dominação de um sexo sobre o outro.

(1) https://ressourcesprostitution.wordpress.com/2014/12/02/le-phenomene-de-la-prostitution-y-compris-de-la-prostitution-sacree-est-concomitant-a-celui-de-la-degradation-du-statut-des-femmes-dans-les-societes/