Como presidente da UNIÃO "associação dos moradores de Paraisópolis, ele tenta frear o avanço da covid-19 em uma favela com 100 mil habitantes, onde o trunfo do isolamento – eficaz para conter o vírus – encara a desigualdade brasileira
Em dez anos, Gilson viabilizou mais de R$ 1 bilhão em investimentos em Paraisópolis junto ao poder público. Teve CEU, Etec, um pouco mais de educação, de saúde, de habitação. Conheceu 14 países.
Com a chegada do coronavírus, arregaçou as mangas mais uma vez e montou o “fluxo”. Nas duas últimas semanas, encontrou 840 moradores. Eles se tornaram presidentes e vice-presidentes de rua. Cada dupla cuida de 50 famílias. A ação abrange as 21 mil famílias da ‘cidade’. Cada presidente tem quatro responsabilidades diárias. Manter todos em casa, distribuir as doações que chegam em número insuficiente e, principalmente, acionar as ambulâncias em caso de suspeita de covid-19.
Gilson alugou três ambulâncias. Duas normais e uma UTI. Alugou ao custo de R$ 5 mil por dia. Alugou, mas ainda não pagou. Em um mês, terá gasto R$ 150 mil. Gilson gostaria de ajuda para arcar com esse custo.
A quarta responsabilidade dos presidentes e vice-presidentes de rua é combater fake news. Tem gente em Paraisópolis dizendo que o coronavírus é doença de rico. E Gilson sabe que não é. O organizador de Paraisópolis ainda viabiliza em duas escolas da região uma espécie de centro de acolhimento para as pessoas, da comunidade, que apresentarem os sintomas. Uma maneira de evitar a propagação da doença. Como a China fez. O protocolo de ações está sendo usado em outras comunidades. Gilson menciona a Rocinha no Rio de Janeiro e uma favela em Belo Horizonte.
Ao citar as medidas que adotou, Gilson é duro como a vida o fez. “A favela está se organizando e a classe média vai viver uma experiência que a gente sempre viveu. Vai pegar fila no hospital. E vai morrer. A classe média tem que se organizar também”. Mas ele também sonha. “O que eu quero fazer é ajudar as favelas para que elas sejam agentes de sua transformação. As favelas do Brasil e do mundo”. Seria um belo final feliz.
Reportagem de Daniel Fernandes n'O Estado de S. Paulo de 30 de março de 2020
https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,gilson-rodrigues-tenta-impedir-que-o-coronavirus-devaste-paraisopolis,70003252692
terça-feira, 31 de março de 2020
quarta-feira, 25 de março de 2020
Pronunciamento do presidente foi feito com ajuda de Carlos Bolsonaro e 'gabinete do ódio'
'Gripezinha e resfriadinho'
Cadeia de rádio e TV pegou de surpresa auxiliares do Planalto, que viram retrocesso na posição do presidente; ele vinha dialogando com governadores
O pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro na noite desta terça-feira, 24, pegou de surpresa integrantes do Palácio do Planalto. O discurso, em que pediu o fim do “confinamento em massa” diante da escalada da pandemia do coronavírus, foi preparado no gabinete do presidente com a participação de poucas pessoas e em segredo. O vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), considerado o mais radical do clã, participou da elaboração do texto.
Também estavam presentes, segundo o Estado apurou, integrantes do “gabinete do ódio”, onde atuam assessores responsáveis pelas redes sociais pessoais do presidente e ligados a Carlos.
Até o final da tarde, poucos auxiliares sabiam que Bolsonaro preparava uma declaração em cadeia de rádio e televisão. A decisão de falar à nação foi tomada após as reuniões com os governadores do Sul e do Centro-Oeste. A gravação foi feita à tarde.
O presidente vinha sendo elogiado dentro do próprio governo por se abrir ao diálogo com os governadores e sinalizar uma mudança de postura sobre os efeitos da covid-19, que já matou 46 pessoas no país. O pronunciamento, no entanto, surpreendeu negativamente auxiliares do Planalto que viram um retrocesso na posição de Bolsonaro.
Na fala, o presidente defendeu a reabertura do comércio e das escolas. Segundo ele, a imprensa foi responsável por passar à população uma “sensação de pavor” e potencializou o “cenário de histeria.”
O presidente disse ainda que, caso contraísse o coronavírus, ele não sentiria nenhum efeito por ter "histórico de atleta". Bolsonaro viajou aos Estados Unidos com ao menos 23 pessoas que tiveram diagnóstico positivo para a doença. Há duas semanas, o Estado pede os resultados dos seus exames para covid-19, mas não obtém resposta.
Durante o pronunciamento, Bolsonaro foi alvo de panelaços em ao menos dez capitais. Após o discursos, as críticas ao presidente estiveram entre os assuntos mais comentados do Twitter.
O pronunciamento de Bolsonaro tem semelhanças com a narrativa adotada por seus filhos e apoiadores nas redes sociais. No discurso, há uma referência ao médico Dráuzio Varella, que passou a ser alvo dos bolsonaristas.
“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”, disse Bolsonaro sem citar a TV Globo, onde Dráuzio apresenta quadros sobre saúde no “Fantástico.”
No final de semana, apoiadores do presidente, incluindo seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, postaram um vídeo gravado em janeiro pelo médico falando sobre o coronavírus. Na época, não casos de covid-19 no Brasil. As postagens foram apagadas do Twitter por violar regras da rede social.
O discurso também fez ataques à imprensa e voltou a citar a cloroquina, remédio que ainda não tem a eficácia contra a nova doença, a covid-19.
Reportagem de Jussara Soares d'O Estado de S.Paulo em
24 de março de 2020 | 22h41
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bastidores-pronunciamento-de-bolsonaro-foi-feito-com-ajuda-de-carlos-e-gabinete-do-odio,70003246733
Cadeia de rádio e TV pegou de surpresa auxiliares do Planalto, que viram retrocesso na posição do presidente; ele vinha dialogando com governadores
O pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro na noite desta terça-feira, 24, pegou de surpresa integrantes do Palácio do Planalto. O discurso, em que pediu o fim do “confinamento em massa” diante da escalada da pandemia do coronavírus, foi preparado no gabinete do presidente com a participação de poucas pessoas e em segredo. O vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), considerado o mais radical do clã, participou da elaboração do texto.
Também estavam presentes, segundo o Estado apurou, integrantes do “gabinete do ódio”, onde atuam assessores responsáveis pelas redes sociais pessoais do presidente e ligados a Carlos.
Até o final da tarde, poucos auxiliares sabiam que Bolsonaro preparava uma declaração em cadeia de rádio e televisão. A decisão de falar à nação foi tomada após as reuniões com os governadores do Sul e do Centro-Oeste. A gravação foi feita à tarde.
O presidente vinha sendo elogiado dentro do próprio governo por se abrir ao diálogo com os governadores e sinalizar uma mudança de postura sobre os efeitos da covid-19, que já matou 46 pessoas no país. O pronunciamento, no entanto, surpreendeu negativamente auxiliares do Planalto que viram um retrocesso na posição de Bolsonaro.
Na fala, o presidente defendeu a reabertura do comércio e das escolas. Segundo ele, a imprensa foi responsável por passar à população uma “sensação de pavor” e potencializou o “cenário de histeria.”
O presidente disse ainda que, caso contraísse o coronavírus, ele não sentiria nenhum efeito por ter "histórico de atleta". Bolsonaro viajou aos Estados Unidos com ao menos 23 pessoas que tiveram diagnóstico positivo para a doença. Há duas semanas, o Estado pede os resultados dos seus exames para covid-19, mas não obtém resposta.
Durante o pronunciamento, Bolsonaro foi alvo de panelaços em ao menos dez capitais. Após o discursos, as críticas ao presidente estiveram entre os assuntos mais comentados do Twitter.
O pronunciamento de Bolsonaro tem semelhanças com a narrativa adotada por seus filhos e apoiadores nas redes sociais. No discurso, há uma referência ao médico Dráuzio Varella, que passou a ser alvo dos bolsonaristas.
“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”, disse Bolsonaro sem citar a TV Globo, onde Dráuzio apresenta quadros sobre saúde no “Fantástico.”
No final de semana, apoiadores do presidente, incluindo seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, postaram um vídeo gravado em janeiro pelo médico falando sobre o coronavírus. Na época, não casos de covid-19 no Brasil. As postagens foram apagadas do Twitter por violar regras da rede social.
O discurso também fez ataques à imprensa e voltou a citar a cloroquina, remédio que ainda não tem a eficácia contra a nova doença, a covid-19.
Reportagem de Jussara Soares d'O Estado de S.Paulo em
24 de março de 2020 | 22h41
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bastidores-pronunciamento-de-bolsonaro-foi-feito-com-ajuda-de-carlos-e-gabinete-do-odio,70003246733
sábado, 21 de março de 2020
FECHA TUDO E FICA SEM TRABALHAR?
Concordo com a Érica Gorka, quem vai pagar a conta?
Se está está difícil arranjar emprego para treze milhões, vamos somar mais 5 milhões, ou mais 20 milhões, nesta última hipótese seriam então 33 milhões de desempregados
Na época da grande recessão de 1929 o Brasil era predominantemente rural e as pessoas tinham sua agricultura de subsistência e agora como vamos alimentar toda a família brasileira se o Brasil PARAR?
As pessoas falam em "economia" como se a economia não fosse constituída de seres humanos que precisam se alimentar e alimentar seus filhos
PEDIDO PÚBLICO DE EXPLICAÇÃO AOS PREFEITOS ADEPTOS DO FECHA TUDO E FIQUEM SEM TRABALHAR
Srs. Prefeitos, os Srs. que têm o dever de estar em contato com o governo federal e com especialistas que trabalham com os números, poderiam me explicar como decidiram mandar fechar estabelecimentos comerciais de cidades inteiras, sabendo que a medida só vai ser efetiva se for possível deixar tudo fechado até setembro - quando a curva de transmissão do coronavírus começa a cair?
Se os Srs. pretendem mandar fechar tudo até setembro, poderiam me explicar quem vai pagar todas as contas das pessoas e famílias que ficarem obrigadas a não trabalhar até setembro? Um comerciante ganha em São Paulo em média cerca de R$ 1.500,00 e vocês têm coragem de falar que o governo federal vai oferecer - é para todos mesmo ou somente para alguns? - R$ 200,00 reais por mês? É possível não passar fome com duzentão por mês? Vocês querem aumentar o número de desempregados em 5 milhões, número que facilmente, por efeito cascata, poderá chegar a 20 milhões? O Banco Central baixou os juros e os prefeitos agora pretendem que as pessoas, sem poder trabalhar, se endividem para poder COMER, e depois paguem dívidas com juros escorchantes aos bancos, mesmo desempregadas? (Sim, porque o SPREAD bancário não caiu muito). Como?
PS 1. - É importante lembrar que a maioria das pessoas da iniciativa privada que estão impedidas de trabalhar não ganham o salário estável de servidores públicos que Vossas Senhorias recebem mesmo quando resolvem fazer isolamento em suas casas ou votação "virtual" no nosso lindo Congresso. Vocês gostariam que essas pessoas roubem e saqueiem supermercados para comer? Não acham factível que isso comece a ocorrer se essa situação perdurar?
Ninguém aqui é contra isolamento desde que as pessoas tenham dinheiro para COMER E VIVER em isolamento. Portanto, essas explicações se fazem necessárias neste momento. Gostaria de saber, em suma, de onde virá o dinheiro. Obrigada
PS. 2 - Se não pretendem deixar tudo fechado até setembro, poderiam então informar porque decidiram fechar tudo até meados de abril, desde já causando demissões de 40% de trabalhadores do comércio, se esta medida, levando em conta a curva de transmissão abaixo, não surtirá efeitos práticos relevantes?
Texto de Érica Gorga na página dela no facebook
https://www.facebook.com/profericagorga/posts/3026835467379933
A Érica Gorka se referiu à entrevista em que o ministro saúde, Henrique Mandetta diz que curva de transmissão do coronavírus só terá queda brusca em setembro
Ministro prevê colapso em abril e defende 'segurar a movimentação' das pessoas para frear transmissão
Se está está difícil arranjar emprego para treze milhões, vamos somar mais 5 milhões, ou mais 20 milhões, nesta última hipótese seriam então 33 milhões de desempregados
Na época da grande recessão de 1929 o Brasil era predominantemente rural e as pessoas tinham sua agricultura de subsistência e agora como vamos alimentar toda a família brasileira se o Brasil PARAR?
As pessoas falam em "economia" como se a economia não fosse constituída de seres humanos que precisam se alimentar e alimentar seus filhos
PEDIDO PÚBLICO DE EXPLICAÇÃO AOS PREFEITOS ADEPTOS DO FECHA TUDO E FIQUEM SEM TRABALHAR
Srs. Prefeitos, os Srs. que têm o dever de estar em contato com o governo federal e com especialistas que trabalham com os números, poderiam me explicar como decidiram mandar fechar estabelecimentos comerciais de cidades inteiras, sabendo que a medida só vai ser efetiva se for possível deixar tudo fechado até setembro - quando a curva de transmissão do coronavírus começa a cair?
Se os Srs. pretendem mandar fechar tudo até setembro, poderiam me explicar quem vai pagar todas as contas das pessoas e famílias que ficarem obrigadas a não trabalhar até setembro? Um comerciante ganha em São Paulo em média cerca de R$ 1.500,00 e vocês têm coragem de falar que o governo federal vai oferecer - é para todos mesmo ou somente para alguns? - R$ 200,00 reais por mês? É possível não passar fome com duzentão por mês? Vocês querem aumentar o número de desempregados em 5 milhões, número que facilmente, por efeito cascata, poderá chegar a 20 milhões? O Banco Central baixou os juros e os prefeitos agora pretendem que as pessoas, sem poder trabalhar, se endividem para poder COMER, e depois paguem dívidas com juros escorchantes aos bancos, mesmo desempregadas? (Sim, porque o SPREAD bancário não caiu muito). Como?
PS 1. - É importante lembrar que a maioria das pessoas da iniciativa privada que estão impedidas de trabalhar não ganham o salário estável de servidores públicos que Vossas Senhorias recebem mesmo quando resolvem fazer isolamento em suas casas ou votação "virtual" no nosso lindo Congresso. Vocês gostariam que essas pessoas roubem e saqueiem supermercados para comer? Não acham factível que isso comece a ocorrer se essa situação perdurar?
Ninguém aqui é contra isolamento desde que as pessoas tenham dinheiro para COMER E VIVER em isolamento. Portanto, essas explicações se fazem necessárias neste momento. Gostaria de saber, em suma, de onde virá o dinheiro. Obrigada
PS. 2 - Se não pretendem deixar tudo fechado até setembro, poderiam então informar porque decidiram fechar tudo até meados de abril, desde já causando demissões de 40% de trabalhadores do comércio, se esta medida, levando em conta a curva de transmissão abaixo, não surtirá efeitos práticos relevantes?
Texto de Érica Gorga na página dela no facebook
https://www.facebook.com/profericagorga/posts/3026835467379933
A Érica Gorka se referiu à entrevista em que o ministro saúde, Henrique Mandetta diz que curva de transmissão do coronavírus só terá queda brusca em setembro
Ministro prevê colapso em abril e defende 'segurar a movimentação' das pessoas para frear transmissão
sexta-feira, 20 de março de 2020
O DESTINO DA MULHER E DA MENINA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
PERSPECTIVA HISTÓRICA & TRADIÇÃO, Ideologia & Geografia (TRECHOS)
O peso das tradições judaico-cristãs: Durante séculos, o direito religioso presidiu à vida social e familiar!
Texto de Mirian Giannella
A BÍBLIA E O TALMUD
Na Bíblia, a mulher é a propriedade de um homem: o pai, o marido ou o tutor. E da família… Tem um valor comercial flutuante, não goza do valor moral intrínseco absoluto que atribuímos idealmente ao homem.
Um casamento é, por conseguinte, uma transação comercial e as meninas constituem um capital. Uma antiga tradição semítica situava a idade mínima para o casamento as meninas de três anos e um dia e Moisés Maimonide, um médico que viveu no século XII, reafirmou que uma criança de sexo feminino com a idade de três anos e um dia podia ser noiva por copulação desde que houvesse autorização do pai. Uma menina com mais de 12 anos era considerada muito idosa para se casar.
Durante séculos, a diferença entre compromisso e casamento não foi muito marcada: ambos eram tornados válidos pela copulação. “Já que as relações heterossexuais eram fundadas sobre uma transação comercial (…) a violação era um crime equivalente ao furto, e o pagamento de uma multa e o casamento podiam legitimar.” (Fl. Rush: 1983)
Um princípio bastante específico invalidava as atividades sexuais com crianças abaixo de certa idade, que se aplicava às crianças dos dois sexos: os meninos menores de 9 anos e as meninas com menos de 3 anos não eram considerados como pessoas no plano sexual. Copular com criancinhas não era ilegal, mas “inválido”. Legalmente, a menina permanecia virgem e, por conseguinte, o autor das sevícias não podia nem ser perseguido nem punido.
O PODER DO PAI
Na lei hebraica (herdeira dos códigos babilônicos e assírios) tão constrangedora na vida diária, o que parece surpreendente, é que o poder do pai seja tão grande. Não o poder do homem, mas o do pai! Em nenhum momento, a lei o constrangia: aconselha-o, ou até desaprova-o, mas nunca o submete a esta lei dado que a lei é ele… O poder do pai é total! Tem assim direito de vida e de morte sobre a mulher e seus filhos. Possui o direito de prostituir legitimamente a sua filha no âmbito de uma transação monetária legal. Se ela se prostituir por sua própria iniciativa, ela comete um crime capital que era punido de morte, queimada ou lapidada!… Se tivesse menos de doze anos, esperava-se o seu aniversário para proceder à execução!
“A Bíblia não comporta proibição à prostituição: o único crime que reconhece nesta matéria é o da criança que desafia a autoridade paterna.” (Fl. Rush - 1983, p. 39 à 112)
As leis e costumes fundamentais relativos às relações sexuais são as que duraram mais. Permanecerão inalteradas com a chegada ao poder da Igreja Católica na Europa.
A IGREJA CATÓLICA ROMANA
Durante a era cristã, cavaleiros cristãos, nobres, cruzados e os príncipes da Igreja seqüestravam regularmente mulheres e crianças e os casamentos de crianças serviam correntemente de base nas transações comerciais ou políticas. “O direito Canônico proibia em teoria os casamentos de crianças (12 anos para as meninas, 14 anos para os rapazes), mas as exceções possíveis ao impedimento eram tão freqüentes que a regra oficial perdia seu significado: os Pais da Igreja consideravam que extrema juventude era um estado passageiro, a pequena noiva terminaria por atingir a maioridade… (passagem à idade adulta aos 7 anos!)” (Fl. Rush - 1983, pp 39 à 112)
CASAMENTO VÁLIDO
“O Judaísmo tinha determinado que se podia adquirir uma noiva legalmente quer por contrato, quer comprando-a, quer na copulação. Dado o despeito da Igreja por tudo o que era material, as relações sexuais tornaram-se o elemento determinante de validação. ” (Fl. Rush - 1983, p. 39 - 112)
A partir do século V, o papa Gregório decretou que “qualquer mulher que copulasse com um homem a ele pertenceria, bem como à famíliadele” , mesmo se se tratasse de uma violação, após sequestro, por exemplo. No século XII, o papa Alexandre III declarou que a copulação dava ao casamento um caráter eterno e que este não podia ser dissolvido. Como na tradição hebraica (onde as relações sexuais com uma menina de três anos eram nulas e não existentes), a Igreja considerava que as atividades sexuais com menores de sete anos eram sem consequências. E “o impedimento por afinidade” (ou seja o incesto) não cabia no caso de uma menor de sete anos. “O que é impressionante, é que o Direito Canônico Cristão só se preocupa com o fato de um homem adulto copular com uma criança a partir do momento em que o fato tenha se produzido!” (Fl. Rush - 1983, p. 39 - 112)
No caso de incesto, o problema levantado não era a preocupação com o destino das crianças mas, simplesmente, para saber se “o impedimento de afinidade” era ou não violado.
NA INGLATERRA
O crime de violação evoluiu de um ponto de vista legal a partir do século XIII quando da separação do Direito Civil do Direito Religioso (Tratado de Westminster). Mas foi necessário esperar o século XVI para que a violação de uma criança menor de 10 anos se tornasse CRIME, a de uma menina entre o 10 e 12 anos permaneceria apenas DELITO. A acusação podia ser retida se se pudesse provar a idade da vítima, e na época não existia nenhum procedimento oficial de registro. Esta acusação era fonte de tanta suspeita e embaraço para a denunciante e se traduzia por uma punição tão leve que poucas vítimas utilizavam o procedimento legal. O Direito Canônico conservava ainda toda a sua potência no que se referia às relações sexuais com uma menor de sete anos: a violação destas crianças permanecia sempre sem objeto aos olhos da lei.
O PAI ESPIRITUAL
Grandes eram os privilégios dos quais gozavam os membros do clero…
A partir da idade de 16 anos, o destino de uma menina estava selado: o casamento ou o mosteiro implicavam a renúncia a todos os bens terrestres… Os pais ou os tutores legais pronunciavam os votos invés das crianças! No século XII, tentou-se proibir esta prática pois os conventos estavam lotados de noviças, mas esta diretiva foi ignorada. Contrariamente ao que se passa hoje, a carreira eclesiástica era mais raramente uma escolha espiritual e resultava frequentemente de uma decisão não pessoal de caráter econômico ou político. No início do século XVIII, a abadessa do convento de Santa Catherina di Pisola declarou abertamente que os monges e padres tratavam as religiosas e noviças como mulheres e que estas se calavam “pela ameaça de excomunhão que brandiam os seus pais espirituais.” (Fl. Rush: 1983, p. 39 - 112)
“Ainda no século XIX e ainda que os testemunhos conservados apenas passavam um mínimo de informação, a metade das acusações de sevícias sexuais relativas ao clero têm como origem as instituições educativas.” (Fl. Rush: 1983, p. 39 - 112)
A Igreja evitará todo escândalo e o enfraquecimento do seu poder, e passa a ser quase impossível levar adiante uma acusação ou condenar um membro do clero… Os Pais da Igreja ainda justificaram: - ”além disso, são as próprias mulheres, as sedutoras”. (Idem)
Esta ideia vai atingir o seu paroxismo entre os séculos XV e XVI na Europa, na época da grande caça às bruxas…
A CAÇA ÀS BRUXAS
“Em 1484, o papa Inocente VIII publicou uma bula pontifical que dava poder à Inquisição (braço judicial da Igreja Católica Romana) de procurar, investigar, encarcerar, torturar e fazer executar as bruxas. (...) O Malleus Malificarum, documento que passou a ser o manual da caça às bruxas, podia fazer de qualquer mulher que preenchesse o seu papel tradicional, uma bruxa.” (Idem): nenhuma mulher, pela sua essência, tinha renunciado nem às piores abominações nem aos excessos mais terríveis, indo mesmo até a copular com o demônio… Acusava-se vinte mulheres para um homem. A bruxaria era, sobretudo um crime de caráter sexual cometido pelas mulheres. Os homens em geral eram preservados deste crime, as crianças não o eram,… sobretudo não as pequenas meninas!!!!
No entanto, “Jean Bodin, monge Carmel e professor de Direito Canônico, no século XVI, decretou que as medidas legais comuns mostravam-se insuficientes para desenraizar a heresia: as pequenas meninas de 6 anos (idade legal nessa época para consentir-se a atividade sexual na França) estavam em condições de copular com o diabo e, por conseguinte, bem grandes para sofrer um processo”!!!… e os suplícios e punições reservados às crianças eram os mesmos que os praticados em adultos.
De acordo com “… a descrição feita “do demônio” pelas pequenas vítimas, pode-se ver que se assemelha a qualquer homem e que ele engravida, que transmite doenças venéreas e que as feridas provocadas pelo coito muitas vezes custaram a vida da denunciante. Mas a ideia aceita na época era que uma criança demasiado pequena para suportar um homem “pudesse se adaptar ao demônio”. Idem”
A INGLATERRA E A EUROPA VITORIANA
CULTO À PEQUENA MENINA E DESENVOLVIMENTO DA PROSTITUIÇÃO
No século XIX, assistimos ao desenvolvimento da ciência e da indústria. É também a época em que se manifesta sem retenção o gosto/culto da pequena menina, sob duas formas: por um lado, deificação e, por outro lado, as sevícias sexuais, a violação, a prostituição. A nova invenção da fotografia muito contribuirá para o desenvolvimento da pornografia infantil.
O século XIX é igualmente a época do desenvolvimento das novas escolas de psicologia e comportamento humano: ainda assim continua-se dizendo que, “… as mulheres eram desprovidas de impulsos sexuais e era ofensivo supor que os tivessem.” Do mesmo modo, as pequenas meninas, se fossem violadas, não sofreriam nenhum dano pois não compreendiam o que o seu agressor lhes fazia. Em contrapartida, os impulsos sexuais do homem eram a fonte do progresso e da civilização. Tratava-se de uma energia necessária, o instinto criativo do macho. E este instinto, pela sua essência, deve infligir sofrimento… Ideia do homem conquistando a natureza,… a mulher representando o papel da natureza!…
Os autores franceses não eram os últimos a defender este ponto de vista. De acordo com Honoré de Balzac: “A mulher é uma propriedade que se adquire por contrato; é móvel porque possessão vale título; e mais, a mulher, propriamente falando, é apenas um anexo do homem; ora, cortem, roam, elas lhes pertencem a todos os títulos. Não se preocupem em nada com os suas lamúrias, gritos, dores. A natureza as fez para o nosso proveito e uso e para carregar todos os fardos: crianças, tristezas, golpes e punições do homem.” (Fl. Rush: 1983, p. 119 - 120)
Como estes impulsos são impossíveis de dominar (sem os quais o homem não seria mais um homem), assiste-se a um desenvolvimento alarmante da prostituição.
“A literatura da época vitoriana pulula de histórias de gentlemen deflorando virgens,… sempre uma pequena menina!” (Idem)
Ver a série de histórias publicadas sob o título RELATOS DA MINHA AVÓ E O AMOR: onde se vê a jovem Kate, pré-adolecente, descrever “os esforços e os golpes de bastão até ocorrer a crise final em que o seu seio era invadido pelo dilúvio do esperma paterno”.
Seduzir as meninas do povo era considerado como um direito dos herdeiros da classe possuidora e cultivada. Os homens amadores de ninfetas estavam prontos a pagar um bom preço para obter o que desejavam: crianças tiradas dos pardieiros das grandes cidades com freqüência pelo sistema de seqüestro conhecido sob o nome de tráfico de brancos. Do comércio local, passaram ao tráfico nacional seguido pelo internacional.
“Uma estimativa feita em Londres no meio do século XIX chega à conclusão que cerca de 400 pessoas ganhavam a vida recrutando meninas entre 11 e 15 anos.” (Idem)
Foi necessária a intervenção da Sociedade das Nações Unidas e depois das Nações Unidas para a adoção de medidas contra o tráfico internacional de mulheres e crianças e para que cessasse o tráfico de brancos.
SITUAÇÃO DE ESCRAVA
A criança raptada ou vendida era levada para longe de casa e colocada em situação de dependência total. Ver “A casa da escravidão” (The House of Bondage, Kauffman, 1910 - EUA): Ela poderia pensar que era brutalizada por seus raptores, até constatar que eram eles que a mantinham em vida, é desta maneira que se torna escrava… Revoltar-se, como, o que fazer? Partir, para ir aonde? Quem vai cuidar de mim? Quem de mim gostará? Falar, quem vai acreditar? Submissão = silêncio. Este processo posto em evidência é completamente aplicável à situação de incesto pai-filha…
PROSTITUIÇÃO: JUSTIFICAÇÃO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
“Definindo a prostituição como um mal necessário (80% das prostitutas são vítimas de incesto - nota acrescentada), a sociedade chegava a convencer-se que a exploração sexual era justificada pelo fato de que as mulheres perdidas ou decaídas, qualquer que fosse sua idade ou a causa, eram ninfomaníacas e pecadoras e que nada, nem ninguém as podia salvar. Não mereciam outra coisa senão realizar a existência que escolheram.” (Idem)
É sempre o mesmo discurso hoje: a mulher violada levanta suspeita na opinião pública. “Procurou-o, tem aquilo que merece!” - “Ela gosta, é ela que quer!” E o pai, que violou a sua filha, diz: “Ela sabia o que ia lhe acontecer, era tão carinhosa, ela quem me seduziu!”
“Podemos pensar que estamos muito longe do universo dos nossos antepassados, mas a ideia de que as mulheres são propriedade sexual dos homens no entanto ainda persiste. Consideram ainda que um homem não pode violar a sua mulher pois não há abuso sexual contra algo que lhe pertence.” Esta ideia é muito difundida entre os pais abusadores em relação à filha!
A LUTA CONTRA OS ABUSOS SEXUAIS NO SÉCULO XIX
Mulheres como Joséphine BUTLER, nascida no Reino Unido, em 1828, revelaram e denunciaram as práticas sexuais do seu tempo. Prostitutas eram ameaçadas, insultadas de maneira obscena, incomodadas pela polícia e cafetões de casas privadas que alugavam os serviços de vadios para as atacar para que os servissem.
O Exmo. Senhor James STANSFIELD, membro eminente do Parliament, juntou-se às suas filas. William STEAD, editor do Pall Mall Gazette, juntou-se também às filas dos que lutavam contra a exploração sexual. Fez a experiência de adquirir uma menina de 13 anos para provar aos seus leitores que era possível: o Parliament foi forçado a criar a "idade do consentimento" aos 16 anos para o Reino Unido. Graças a estes pioneiros, as Nações Unidas adotaram as medidas contra o tráfico internacional de mulheres e crianças.
HOJE
É certo que redes existem que fornecem “adolescentes às redes européias de prostituição, principalmente, meninas entre 14 à 17 anos, provenientes das Filipinas ou da Tailândia. Os países asiáticos são as principais vítimas da prostituição infantil. Recenseia-se, hoje, mais de cem mil prostituídas menores de 16 anos.”
No Iémen, Arábia Saudita, Etiópia, Sudão, a excisão de meninas ainda é prática; a operação é frequente na Jordânia, Síria, Costa do Marfim, Dogons na Nigéria e é obrigatória em numerosas tribos africanas. No Sudão, Somália, Namíbia, Jibuti, Etiópia, África Preta pratica-se muito, além disso, a dolorosa infibulação* (órgãos genitais costurados ou cauterizados).
Em julho de 1974, o professor Pierre Henry, especialista em erotismo africano, tentava justificar a excisão nestes termos: “A excisão é uma tentativa consequente para favorecer a integração sexual da mulher em função de critérios estritamente sociais. A vocação da mulher guineense é a maternidade. A excisão suprime o órgão do prazer estéril, por conseguinte, associal, para deixar subsistir apenas o órgão do prazer fértil, por conseguinte, social”…
O. Boissier Trabalho de graduação em CIÊNCIA SOCIAL do TRABALHO - 1984/88 (Le Louvière)
Tradução Mirian Giannella.
*As práticas da mutilação feminina
As mutilações dos genitais femininos, chamadas também de circuncisão feminina, compreendem vários tipos de práticas:
• A abscisão consiste no corte parcial ou total do clitóris. A abscisão pode ser realizada logo após o nascimento da menina, depois de meses ou anos, ou na entrada da puberdade. É sempre praticada por mulheres anciãs com algo cortante que pode ser navalha, faca ou pedaço de vidro, sem preocupações com a assepsia.
• A labiotomia é a extirpação dos grandes e/ou pequenos lábios, muito praticada na Somália, onde se estima que 98% das mulheres foram submetidas a esse procedimento doloroso. Está difundida também na Eritréia, Etiópia, Serra Leoa, Sudão, Quênia, Mali e Burkina Faso. Embora sejam países de maioria islâmica, a prática não é ligada a preceitos corânicos que prescrevem somente a circuncisão masculina. Existem documentos que indicariam como essa tradição já era praticada há mais de 6 mil anos.
• A infibulação é o procedimento em que a vagina vem quase totalmente costurada, deixando somente uma abertura para o escoamento da urina e do sangue menstrual. Em algumas tribos, se introduz um pequeno canudinho – fíbula – para manter a abertura. Muitas vezes com a abscisão do clitóris, a infibulação é realizada na puberdade e pode ser efetuada outras vezes durante a vida da mulher. Antes do casamento, mulheres anciãs reabrem a sutura para propiciar o ato sexual e o parto.
A repetição da infibulação provoca distúrbios psíquicos além de hemorragias e infecções na região genital, que podem conduzir à esterilidade, infecção e morte da mulher.
Fonte: Feridas para sempre, Revista Mundo e Missão:
http://www.pime.org.br/mundoemissao/mulhersempre.htm
Stop-FGM. Stop às mutilações genitais femininas”, campanha lançada pela Associação italiana de mulheres para o desenvolvimento (Aidos), em colaboração com a Associação das mulheres da Tanzânia (Tamwa) e com a “Organização não há paz sem justiça”.
Para acessar: www.stopfmg.org
***
É uma indecência imoral totalmente indigna como eles invertem as lógicas para culpabilizar crianças indefesas! É esta a transmissão que nos ocultam? Esta a violência selvagem a que, ainda, estamos submetidos? Os filhos não são propriedade do pai e a mulher não é propriedade dos homens. Até quando, conviveremos com esta barbárie?
Morte ao pai onipotente!
Queremos nossos direitos!
Minha nota: os links citados não foram atualizados e não estão disponíveis, a publicação é de 20 de março de 2010
A Mirian Giannella fez esta postagem na página pessoal dela no facebook
https://www.facebook.com/notes/mirian-giannella/o-destino-da-mulher-e-da-menina-numa-perspectiva-hist%C3%B3rica/377977138773/
O peso das tradições judaico-cristãs: Durante séculos, o direito religioso presidiu à vida social e familiar!
Texto de Mirian Giannella
A BÍBLIA E O TALMUD
Na Bíblia, a mulher é a propriedade de um homem: o pai, o marido ou o tutor. E da família… Tem um valor comercial flutuante, não goza do valor moral intrínseco absoluto que atribuímos idealmente ao homem.
Um casamento é, por conseguinte, uma transação comercial e as meninas constituem um capital. Uma antiga tradição semítica situava a idade mínima para o casamento as meninas de três anos e um dia e Moisés Maimonide, um médico que viveu no século XII, reafirmou que uma criança de sexo feminino com a idade de três anos e um dia podia ser noiva por copulação desde que houvesse autorização do pai. Uma menina com mais de 12 anos era considerada muito idosa para se casar.
Durante séculos, a diferença entre compromisso e casamento não foi muito marcada: ambos eram tornados válidos pela copulação. “Já que as relações heterossexuais eram fundadas sobre uma transação comercial (…) a violação era um crime equivalente ao furto, e o pagamento de uma multa e o casamento podiam legitimar.” (Fl. Rush: 1983)
Um princípio bastante específico invalidava as atividades sexuais com crianças abaixo de certa idade, que se aplicava às crianças dos dois sexos: os meninos menores de 9 anos e as meninas com menos de 3 anos não eram considerados como pessoas no plano sexual. Copular com criancinhas não era ilegal, mas “inválido”. Legalmente, a menina permanecia virgem e, por conseguinte, o autor das sevícias não podia nem ser perseguido nem punido.
O PODER DO PAI
Na lei hebraica (herdeira dos códigos babilônicos e assírios) tão constrangedora na vida diária, o que parece surpreendente, é que o poder do pai seja tão grande. Não o poder do homem, mas o do pai! Em nenhum momento, a lei o constrangia: aconselha-o, ou até desaprova-o, mas nunca o submete a esta lei dado que a lei é ele… O poder do pai é total! Tem assim direito de vida e de morte sobre a mulher e seus filhos. Possui o direito de prostituir legitimamente a sua filha no âmbito de uma transação monetária legal. Se ela se prostituir por sua própria iniciativa, ela comete um crime capital que era punido de morte, queimada ou lapidada!… Se tivesse menos de doze anos, esperava-se o seu aniversário para proceder à execução!
“A Bíblia não comporta proibição à prostituição: o único crime que reconhece nesta matéria é o da criança que desafia a autoridade paterna.” (Fl. Rush - 1983, p. 39 à 112)
As leis e costumes fundamentais relativos às relações sexuais são as que duraram mais. Permanecerão inalteradas com a chegada ao poder da Igreja Católica na Europa.
A IGREJA CATÓLICA ROMANA
Durante a era cristã, cavaleiros cristãos, nobres, cruzados e os príncipes da Igreja seqüestravam regularmente mulheres e crianças e os casamentos de crianças serviam correntemente de base nas transações comerciais ou políticas. “O direito Canônico proibia em teoria os casamentos de crianças (12 anos para as meninas, 14 anos para os rapazes), mas as exceções possíveis ao impedimento eram tão freqüentes que a regra oficial perdia seu significado: os Pais da Igreja consideravam que extrema juventude era um estado passageiro, a pequena noiva terminaria por atingir a maioridade… (passagem à idade adulta aos 7 anos!)” (Fl. Rush - 1983, pp 39 à 112)
CASAMENTO VÁLIDO
“O Judaísmo tinha determinado que se podia adquirir uma noiva legalmente quer por contrato, quer comprando-a, quer na copulação. Dado o despeito da Igreja por tudo o que era material, as relações sexuais tornaram-se o elemento determinante de validação. ” (Fl. Rush - 1983, p. 39 - 112)
A partir do século V, o papa Gregório decretou que “qualquer mulher que copulasse com um homem a ele pertenceria, bem como à famíliadele” , mesmo se se tratasse de uma violação, após sequestro, por exemplo. No século XII, o papa Alexandre III declarou que a copulação dava ao casamento um caráter eterno e que este não podia ser dissolvido. Como na tradição hebraica (onde as relações sexuais com uma menina de três anos eram nulas e não existentes), a Igreja considerava que as atividades sexuais com menores de sete anos eram sem consequências. E “o impedimento por afinidade” (ou seja o incesto) não cabia no caso de uma menor de sete anos. “O que é impressionante, é que o Direito Canônico Cristão só se preocupa com o fato de um homem adulto copular com uma criança a partir do momento em que o fato tenha se produzido!” (Fl. Rush - 1983, p. 39 - 112)
No caso de incesto, o problema levantado não era a preocupação com o destino das crianças mas, simplesmente, para saber se “o impedimento de afinidade” era ou não violado.
NA INGLATERRA
O crime de violação evoluiu de um ponto de vista legal a partir do século XIII quando da separação do Direito Civil do Direito Religioso (Tratado de Westminster). Mas foi necessário esperar o século XVI para que a violação de uma criança menor de 10 anos se tornasse CRIME, a de uma menina entre o 10 e 12 anos permaneceria apenas DELITO. A acusação podia ser retida se se pudesse provar a idade da vítima, e na época não existia nenhum procedimento oficial de registro. Esta acusação era fonte de tanta suspeita e embaraço para a denunciante e se traduzia por uma punição tão leve que poucas vítimas utilizavam o procedimento legal. O Direito Canônico conservava ainda toda a sua potência no que se referia às relações sexuais com uma menor de sete anos: a violação destas crianças permanecia sempre sem objeto aos olhos da lei.
O PAI ESPIRITUAL
Grandes eram os privilégios dos quais gozavam os membros do clero…
A partir da idade de 16 anos, o destino de uma menina estava selado: o casamento ou o mosteiro implicavam a renúncia a todos os bens terrestres… Os pais ou os tutores legais pronunciavam os votos invés das crianças! No século XII, tentou-se proibir esta prática pois os conventos estavam lotados de noviças, mas esta diretiva foi ignorada. Contrariamente ao que se passa hoje, a carreira eclesiástica era mais raramente uma escolha espiritual e resultava frequentemente de uma decisão não pessoal de caráter econômico ou político. No início do século XVIII, a abadessa do convento de Santa Catherina di Pisola declarou abertamente que os monges e padres tratavam as religiosas e noviças como mulheres e que estas se calavam “pela ameaça de excomunhão que brandiam os seus pais espirituais.” (Fl. Rush: 1983, p. 39 - 112)
“Ainda no século XIX e ainda que os testemunhos conservados apenas passavam um mínimo de informação, a metade das acusações de sevícias sexuais relativas ao clero têm como origem as instituições educativas.” (Fl. Rush: 1983, p. 39 - 112)
A Igreja evitará todo escândalo e o enfraquecimento do seu poder, e passa a ser quase impossível levar adiante uma acusação ou condenar um membro do clero… Os Pais da Igreja ainda justificaram: - ”além disso, são as próprias mulheres, as sedutoras”. (Idem)
Esta ideia vai atingir o seu paroxismo entre os séculos XV e XVI na Europa, na época da grande caça às bruxas…
A CAÇA ÀS BRUXAS
“Em 1484, o papa Inocente VIII publicou uma bula pontifical que dava poder à Inquisição (braço judicial da Igreja Católica Romana) de procurar, investigar, encarcerar, torturar e fazer executar as bruxas. (...) O Malleus Malificarum, documento que passou a ser o manual da caça às bruxas, podia fazer de qualquer mulher que preenchesse o seu papel tradicional, uma bruxa.” (Idem): nenhuma mulher, pela sua essência, tinha renunciado nem às piores abominações nem aos excessos mais terríveis, indo mesmo até a copular com o demônio… Acusava-se vinte mulheres para um homem. A bruxaria era, sobretudo um crime de caráter sexual cometido pelas mulheres. Os homens em geral eram preservados deste crime, as crianças não o eram,… sobretudo não as pequenas meninas!!!!
No entanto, “Jean Bodin, monge Carmel e professor de Direito Canônico, no século XVI, decretou que as medidas legais comuns mostravam-se insuficientes para desenraizar a heresia: as pequenas meninas de 6 anos (idade legal nessa época para consentir-se a atividade sexual na França) estavam em condições de copular com o diabo e, por conseguinte, bem grandes para sofrer um processo”!!!… e os suplícios e punições reservados às crianças eram os mesmos que os praticados em adultos.
De acordo com “… a descrição feita “do demônio” pelas pequenas vítimas, pode-se ver que se assemelha a qualquer homem e que ele engravida, que transmite doenças venéreas e que as feridas provocadas pelo coito muitas vezes custaram a vida da denunciante. Mas a ideia aceita na época era que uma criança demasiado pequena para suportar um homem “pudesse se adaptar ao demônio”. Idem”
A INGLATERRA E A EUROPA VITORIANA
CULTO À PEQUENA MENINA E DESENVOLVIMENTO DA PROSTITUIÇÃO
No século XIX, assistimos ao desenvolvimento da ciência e da indústria. É também a época em que se manifesta sem retenção o gosto/culto da pequena menina, sob duas formas: por um lado, deificação e, por outro lado, as sevícias sexuais, a violação, a prostituição. A nova invenção da fotografia muito contribuirá para o desenvolvimento da pornografia infantil.
O século XIX é igualmente a época do desenvolvimento das novas escolas de psicologia e comportamento humano: ainda assim continua-se dizendo que, “… as mulheres eram desprovidas de impulsos sexuais e era ofensivo supor que os tivessem.” Do mesmo modo, as pequenas meninas, se fossem violadas, não sofreriam nenhum dano pois não compreendiam o que o seu agressor lhes fazia. Em contrapartida, os impulsos sexuais do homem eram a fonte do progresso e da civilização. Tratava-se de uma energia necessária, o instinto criativo do macho. E este instinto, pela sua essência, deve infligir sofrimento… Ideia do homem conquistando a natureza,… a mulher representando o papel da natureza!…
Os autores franceses não eram os últimos a defender este ponto de vista. De acordo com Honoré de Balzac: “A mulher é uma propriedade que se adquire por contrato; é móvel porque possessão vale título; e mais, a mulher, propriamente falando, é apenas um anexo do homem; ora, cortem, roam, elas lhes pertencem a todos os títulos. Não se preocupem em nada com os suas lamúrias, gritos, dores. A natureza as fez para o nosso proveito e uso e para carregar todos os fardos: crianças, tristezas, golpes e punições do homem.” (Fl. Rush: 1983, p. 119 - 120)
Como estes impulsos são impossíveis de dominar (sem os quais o homem não seria mais um homem), assiste-se a um desenvolvimento alarmante da prostituição.
“A literatura da época vitoriana pulula de histórias de gentlemen deflorando virgens,… sempre uma pequena menina!” (Idem)
Ver a série de histórias publicadas sob o título RELATOS DA MINHA AVÓ E O AMOR: onde se vê a jovem Kate, pré-adolecente, descrever “os esforços e os golpes de bastão até ocorrer a crise final em que o seu seio era invadido pelo dilúvio do esperma paterno”.
Seduzir as meninas do povo era considerado como um direito dos herdeiros da classe possuidora e cultivada. Os homens amadores de ninfetas estavam prontos a pagar um bom preço para obter o que desejavam: crianças tiradas dos pardieiros das grandes cidades com freqüência pelo sistema de seqüestro conhecido sob o nome de tráfico de brancos. Do comércio local, passaram ao tráfico nacional seguido pelo internacional.
“Uma estimativa feita em Londres no meio do século XIX chega à conclusão que cerca de 400 pessoas ganhavam a vida recrutando meninas entre 11 e 15 anos.” (Idem)
Foi necessária a intervenção da Sociedade das Nações Unidas e depois das Nações Unidas para a adoção de medidas contra o tráfico internacional de mulheres e crianças e para que cessasse o tráfico de brancos.
SITUAÇÃO DE ESCRAVA
A criança raptada ou vendida era levada para longe de casa e colocada em situação de dependência total. Ver “A casa da escravidão” (The House of Bondage, Kauffman, 1910 - EUA): Ela poderia pensar que era brutalizada por seus raptores, até constatar que eram eles que a mantinham em vida, é desta maneira que se torna escrava… Revoltar-se, como, o que fazer? Partir, para ir aonde? Quem vai cuidar de mim? Quem de mim gostará? Falar, quem vai acreditar? Submissão = silêncio. Este processo posto em evidência é completamente aplicável à situação de incesto pai-filha…
PROSTITUIÇÃO: JUSTIFICAÇÃO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
“Definindo a prostituição como um mal necessário (80% das prostitutas são vítimas de incesto - nota acrescentada), a sociedade chegava a convencer-se que a exploração sexual era justificada pelo fato de que as mulheres perdidas ou decaídas, qualquer que fosse sua idade ou a causa, eram ninfomaníacas e pecadoras e que nada, nem ninguém as podia salvar. Não mereciam outra coisa senão realizar a existência que escolheram.” (Idem)
É sempre o mesmo discurso hoje: a mulher violada levanta suspeita na opinião pública. “Procurou-o, tem aquilo que merece!” - “Ela gosta, é ela que quer!” E o pai, que violou a sua filha, diz: “Ela sabia o que ia lhe acontecer, era tão carinhosa, ela quem me seduziu!”
“Podemos pensar que estamos muito longe do universo dos nossos antepassados, mas a ideia de que as mulheres são propriedade sexual dos homens no entanto ainda persiste. Consideram ainda que um homem não pode violar a sua mulher pois não há abuso sexual contra algo que lhe pertence.” Esta ideia é muito difundida entre os pais abusadores em relação à filha!
A LUTA CONTRA OS ABUSOS SEXUAIS NO SÉCULO XIX
Mulheres como Joséphine BUTLER, nascida no Reino Unido, em 1828, revelaram e denunciaram as práticas sexuais do seu tempo. Prostitutas eram ameaçadas, insultadas de maneira obscena, incomodadas pela polícia e cafetões de casas privadas que alugavam os serviços de vadios para as atacar para que os servissem.
O Exmo. Senhor James STANSFIELD, membro eminente do Parliament, juntou-se às suas filas. William STEAD, editor do Pall Mall Gazette, juntou-se também às filas dos que lutavam contra a exploração sexual. Fez a experiência de adquirir uma menina de 13 anos para provar aos seus leitores que era possível: o Parliament foi forçado a criar a "idade do consentimento" aos 16 anos para o Reino Unido. Graças a estes pioneiros, as Nações Unidas adotaram as medidas contra o tráfico internacional de mulheres e crianças.
HOJE
É certo que redes existem que fornecem “adolescentes às redes européias de prostituição, principalmente, meninas entre 14 à 17 anos, provenientes das Filipinas ou da Tailândia. Os países asiáticos são as principais vítimas da prostituição infantil. Recenseia-se, hoje, mais de cem mil prostituídas menores de 16 anos.”
No Iémen, Arábia Saudita, Etiópia, Sudão, a excisão de meninas ainda é prática; a operação é frequente na Jordânia, Síria, Costa do Marfim, Dogons na Nigéria e é obrigatória em numerosas tribos africanas. No Sudão, Somália, Namíbia, Jibuti, Etiópia, África Preta pratica-se muito, além disso, a dolorosa infibulação* (órgãos genitais costurados ou cauterizados).
Em julho de 1974, o professor Pierre Henry, especialista em erotismo africano, tentava justificar a excisão nestes termos: “A excisão é uma tentativa consequente para favorecer a integração sexual da mulher em função de critérios estritamente sociais. A vocação da mulher guineense é a maternidade. A excisão suprime o órgão do prazer estéril, por conseguinte, associal, para deixar subsistir apenas o órgão do prazer fértil, por conseguinte, social”…
O. Boissier Trabalho de graduação em CIÊNCIA SOCIAL do TRABALHO - 1984/88 (Le Louvière)
Tradução Mirian Giannella.
*As práticas da mutilação feminina
As mutilações dos genitais femininos, chamadas também de circuncisão feminina, compreendem vários tipos de práticas:
• A abscisão consiste no corte parcial ou total do clitóris. A abscisão pode ser realizada logo após o nascimento da menina, depois de meses ou anos, ou na entrada da puberdade. É sempre praticada por mulheres anciãs com algo cortante que pode ser navalha, faca ou pedaço de vidro, sem preocupações com a assepsia.
• A labiotomia é a extirpação dos grandes e/ou pequenos lábios, muito praticada na Somália, onde se estima que 98% das mulheres foram submetidas a esse procedimento doloroso. Está difundida também na Eritréia, Etiópia, Serra Leoa, Sudão, Quênia, Mali e Burkina Faso. Embora sejam países de maioria islâmica, a prática não é ligada a preceitos corânicos que prescrevem somente a circuncisão masculina. Existem documentos que indicariam como essa tradição já era praticada há mais de 6 mil anos.
• A infibulação é o procedimento em que a vagina vem quase totalmente costurada, deixando somente uma abertura para o escoamento da urina e do sangue menstrual. Em algumas tribos, se introduz um pequeno canudinho – fíbula – para manter a abertura. Muitas vezes com a abscisão do clitóris, a infibulação é realizada na puberdade e pode ser efetuada outras vezes durante a vida da mulher. Antes do casamento, mulheres anciãs reabrem a sutura para propiciar o ato sexual e o parto.
A repetição da infibulação provoca distúrbios psíquicos além de hemorragias e infecções na região genital, que podem conduzir à esterilidade, infecção e morte da mulher.
Fonte: Feridas para sempre, Revista Mundo e Missão:
http://www.pime.org.br/mundoemissao/mulhersempre.htm
Stop-FGM. Stop às mutilações genitais femininas”, campanha lançada pela Associação italiana de mulheres para o desenvolvimento (Aidos), em colaboração com a Associação das mulheres da Tanzânia (Tamwa) e com a “Organização não há paz sem justiça”.
Para acessar: www.stopfmg.org
***
É uma indecência imoral totalmente indigna como eles invertem as lógicas para culpabilizar crianças indefesas! É esta a transmissão que nos ocultam? Esta a violência selvagem a que, ainda, estamos submetidos? Os filhos não são propriedade do pai e a mulher não é propriedade dos homens. Até quando, conviveremos com esta barbárie?
Morte ao pai onipotente!
Queremos nossos direitos!
Minha nota: os links citados não foram atualizados e não estão disponíveis, a publicação é de 20 de março de 2010
A Mirian Giannella fez esta postagem na página pessoal dela no facebook
https://www.facebook.com/notes/mirian-giannella/o-destino-da-mulher-e-da-menina-numa-perspectiva-hist%C3%B3rica/377977138773/
terça-feira, 17 de março de 2020
A disseminação do coronavírus e o Direito Penal
Questão interessante e que fatalmente advirá em breve nos meios judiciais. Aquela pessoa que sabe estar contaminada pelo Coronavírus e descumpre a determinação do Poder Público, mantendo contato com outras pessoas, comete crime?
Diz o artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa”.
A norma penal tem como bem jurídico protegido a saúde pública.
A saúde pública nada mais é do que a saúde de toda a coletividade. A saúde é um direito social de todo indivíduo previsto no art. 6º da Constituição Federal, cabendo ao Estado sua concreção. A saúde pública é um bem difuso, mas perceptível concretamente. É função do Estado proteger a coletividade das condutas que possam atingir ou colocar em risco a saúde física e mental dos indivíduos.
Qualquer pessoa que esteja acometida pelo Coronavírus, ou que tenha suspeita de estar contaminada, pode cometer este delito.
No caso, o sujeito desrespeita determinação do poder público destinada a impedir a difusão da doença, extremamente contagiosa, a outras pessoas.
São várias as determinações contidas em leis federais e estaduais, bem como em normas administrativas, sobre a hipótese, que complementam a norma penal. A mais importante, que se refere especificamente ao Coronavírus, é a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos.
Mesmo que o sujeito não tenha certeza de estar contaminado, mas aceita a hipótese, e transita normalmente por locais públicos, assumindo o risco de transmitir a doença, cometerá o ilícito com dolo eventual. Assim, ele pode saber estar contaminado (dolo direto) ou ter dúvidas, assumindo o risco e tolerando a produção do resultado (dolo eventual). Nas duas situações, haverá o crime, que é de perigo abstrato, não necessitando prova da sua efetiva ocorrência, que é presumido pela lei de forma absoluta.
O delito também é de perigo comum, necessitando que número indeterminado de pessoas seja exposto a perigo de dano.
Pouco importa, portanto, que uma ou mais pessoas seja efetivamente contaminada, já que se trata de crime formal, antecipando a lei a produção do resultado, que é de perigo e não de dano. Basta, dessa forma, a mera probabilidade de que haja o advento de resultado naturalístico para que a infração esteja caracterizada.
Com efeito, a consumação do delito ocorrerá com o desrespeito à determinação do poder público que visa impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa, independentemente da ocorrência do dano efetivo.
Em todos estas as hipóteses a intenção do sujeito não é transmitir a doença. No caso de ser sua vontade a propagação do vírus, o crime poderá ser o de epidemia, previsto no artigo 267 do Código Penal, com pena muito superior em razão de sua gravidade. Diz a norma: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena. Reclusão, de dez a quinze anos”.
O bem jurídico tutelado também é a saúde pública.
O objeto material é a epidemia, que deve ser provocada com a disseminação de germes patogênicos, que são microrganismos capazes de infectar pessoas, como os vírus e bactérias, além de outros.
Considera-se epidemia a doença infecciosa que surge rapidamente e acomete grande número de pessoas em curto espaço de tempo. É claro que, além da epidemia, que é mais restrita, a norma também engloba a pandemia, que é mais ampla.
Dessa forma, para que ocorra o delito, os germes patogênicos devem atingir e causar a doença infecciosa em um considerável número de pessoas e em curto espaço de tempo. Temos, portanto, crime de perigo comum e concreto, além de material, havendo necessidade de produção do resultado (epidemia).
Se o resultado não advier por circunstâncias alheias à vontade do agente, como quando o surto é contido ou não alcança o efeito desejado, o delito ficará na esfera tentada e, nos termos do artigo 14, inciso II, do Código Penal, a pena é reduzida de um a dois terços.
No caso de resultar a morte de alguém, a pena será aplicada em dobro e o crime será hediondo, nos termos do parágrafo único do dispositivo. Neste caso, o delito é preterdoloso, havendo dolo de perigo no antecedente (epidemia) e culpa pelo resultado posterior (morte).
Se a epidemia for resultado de conduta culposa do agente, a pena será de um a dois anos de detenção; resultando morte devido a essa conduta, a pena será de dois a quatro anos de detenção. Nesse último caso, há culpa pela epidemia e culpa também pela morte.
Dessas hipóteses poderão surgir outras delas derivadas, cabendo ao Judiciário enfrentá-las, uma vez que, algo que até então era surreal e estudado nos bancos acadêmicos, tornou-se real, chamando a atenção a pena quase insignificante cominada para o crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do CP), que é de pequeno potencial ofensivo, de acordo com a legislação, que não inibe a prática da conduta, de suma gravidade.
O texto é de César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça – SP. Mestre em Direito das Relações Sociais. Especialista em Direito Penal. Professor Universitário. Autor de vários livros, dentre eles Manual de Direito Penal, Lei de Execução Penal Comentada, Provas Ilícitas, Estatuto do Desarmamento e Lei de Drogas Comentada, publicados pela Juruá Editora
Foi publicado no blog do Fausto Macedo em 14 de março de 2020 às 17h15, portanto antes do Domingo e do discurso da deputada Janaína Paschoal
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-disseminacao-do-coronavirus-e-o-direito-penal
Diz o artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa”.
A norma penal tem como bem jurídico protegido a saúde pública.
A saúde pública nada mais é do que a saúde de toda a coletividade. A saúde é um direito social de todo indivíduo previsto no art. 6º da Constituição Federal, cabendo ao Estado sua concreção. A saúde pública é um bem difuso, mas perceptível concretamente. É função do Estado proteger a coletividade das condutas que possam atingir ou colocar em risco a saúde física e mental dos indivíduos.
Qualquer pessoa que esteja acometida pelo Coronavírus, ou que tenha suspeita de estar contaminada, pode cometer este delito.
No caso, o sujeito desrespeita determinação do poder público destinada a impedir a difusão da doença, extremamente contagiosa, a outras pessoas.
São várias as determinações contidas em leis federais e estaduais, bem como em normas administrativas, sobre a hipótese, que complementam a norma penal. A mais importante, que se refere especificamente ao Coronavírus, é a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos.
Mesmo que o sujeito não tenha certeza de estar contaminado, mas aceita a hipótese, e transita normalmente por locais públicos, assumindo o risco de transmitir a doença, cometerá o ilícito com dolo eventual. Assim, ele pode saber estar contaminado (dolo direto) ou ter dúvidas, assumindo o risco e tolerando a produção do resultado (dolo eventual). Nas duas situações, haverá o crime, que é de perigo abstrato, não necessitando prova da sua efetiva ocorrência, que é presumido pela lei de forma absoluta.
O delito também é de perigo comum, necessitando que número indeterminado de pessoas seja exposto a perigo de dano.
Pouco importa, portanto, que uma ou mais pessoas seja efetivamente contaminada, já que se trata de crime formal, antecipando a lei a produção do resultado, que é de perigo e não de dano. Basta, dessa forma, a mera probabilidade de que haja o advento de resultado naturalístico para que a infração esteja caracterizada.
Com efeito, a consumação do delito ocorrerá com o desrespeito à determinação do poder público que visa impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa, independentemente da ocorrência do dano efetivo.
Em todos estas as hipóteses a intenção do sujeito não é transmitir a doença. No caso de ser sua vontade a propagação do vírus, o crime poderá ser o de epidemia, previsto no artigo 267 do Código Penal, com pena muito superior em razão de sua gravidade. Diz a norma: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena. Reclusão, de dez a quinze anos”.
O bem jurídico tutelado também é a saúde pública.
O objeto material é a epidemia, que deve ser provocada com a disseminação de germes patogênicos, que são microrganismos capazes de infectar pessoas, como os vírus e bactérias, além de outros.
Considera-se epidemia a doença infecciosa que surge rapidamente e acomete grande número de pessoas em curto espaço de tempo. É claro que, além da epidemia, que é mais restrita, a norma também engloba a pandemia, que é mais ampla.
Dessa forma, para que ocorra o delito, os germes patogênicos devem atingir e causar a doença infecciosa em um considerável número de pessoas e em curto espaço de tempo. Temos, portanto, crime de perigo comum e concreto, além de material, havendo necessidade de produção do resultado (epidemia).
Se o resultado não advier por circunstâncias alheias à vontade do agente, como quando o surto é contido ou não alcança o efeito desejado, o delito ficará na esfera tentada e, nos termos do artigo 14, inciso II, do Código Penal, a pena é reduzida de um a dois terços.
No caso de resultar a morte de alguém, a pena será aplicada em dobro e o crime será hediondo, nos termos do parágrafo único do dispositivo. Neste caso, o delito é preterdoloso, havendo dolo de perigo no antecedente (epidemia) e culpa pelo resultado posterior (morte).
Se a epidemia for resultado de conduta culposa do agente, a pena será de um a dois anos de detenção; resultando morte devido a essa conduta, a pena será de dois a quatro anos de detenção. Nesse último caso, há culpa pela epidemia e culpa também pela morte.
Dessas hipóteses poderão surgir outras delas derivadas, cabendo ao Judiciário enfrentá-las, uma vez que, algo que até então era surreal e estudado nos bancos acadêmicos, tornou-se real, chamando a atenção a pena quase insignificante cominada para o crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do CP), que é de pequeno potencial ofensivo, de acordo com a legislação, que não inibe a prática da conduta, de suma gravidade.
O texto é de César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça – SP. Mestre em Direito das Relações Sociais. Especialista em Direito Penal. Professor Universitário. Autor de vários livros, dentre eles Manual de Direito Penal, Lei de Execução Penal Comentada, Provas Ilícitas, Estatuto do Desarmamento e Lei de Drogas Comentada, publicados pela Juruá Editora
Foi publicado no blog do Fausto Macedo em 14 de março de 2020 às 17h15, portanto antes do Domingo e do discurso da deputada Janaína Paschoal
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-disseminacao-do-coronavirus-e-o-direito-penal
domingo, 15 de março de 2020
Novo coronavírus pode causar estresse brutal sobre sistema de saúde
Emergência não será resolvida por economistas que defendem manter o teto de gastos para a Saúde
Prever o futuro de uma epidemia é tarefa inglória. Quando se trata de um agente infeccioso que entra pela primeira vez em contato com seres humanos, fica pior.
Mesmo reconhecendo que as variáveis são tantas e as perguntas mais numerosas do que as certezas, já podemos tirar alguma conclusões.
1) Está claro que o atual coronavírus (chamado de Sars – COV-2) se adaptou muito bem à transmissão inter-humana, por meio das secreções das vias aéreas. A doença foi detectada na China, em dezembro, e se espalhou pelos continentes em três a quatro meses. É uma pandemia, quer dizer, todos corremos risco de adquirir esse coronavírus.
2) O isolamento forçado de regiões com milhões de habitantes na China, o fechamento da fronteira com a Rússia, a paralisação das atividades e a proibição de deslocamentos num país como a Itália, os policiais nas ruas das cidades atingidas, a fiscalização em aeroportos e o cancelamento de viagens aéreas foram medidas que talvez tenham retardado a entrada do vírus em algumas regiões e até reduzido a velocidade de disseminação, mas foram incapazes de deter a propagação pelo mundo.
3) O quadro clínico é variável, depende da idade, da presença de doenças crônicas, do tabagismo e da eficiência do sistema imunológico individual. A evolução é benigna em mais de 80% dos casos.
A taxa de mortalidade aumenta com a idade. As crianças com menos de dez anos são poupadas —no entanto, não sabemos até que ponto serão portadoras relativamente saudáveis do vírus que infectará os familiares.
Dos dez aos 40 anos, as mortes são eventos raros: ao redor de duas em cada mil infectados. O problema é a mortalidade na faixa dos 70 aos 80 anos (cerca de 8% a 10%) e nas pessoas com mais de 80 anos (de 14% a 20%).
4) Como esses números variam muito, ficam difíceis de serem interpretados. A Organização Mundial da Saúde estima que a mortalidade média no mundo está ao redor de 3,5%, mas na Itália passa dos 6%, enquanto na Coreia do Sul é de 0,7% e na Alemanha ocorreram apenas duas mortes em 1.300 infectados. Como explicar tamanha discrepância?
Até aqui, não surgiram evidências de que o vírus da Itália seja mais agressivo.
Certamente os coreanos e os alemães testaram mais gente e detectaram maior número de infecções assintomáticas ou com sintomas mínimos, enquanto o sistema de vigilância italiano teria deixado de diagnosticar esses casos iniciais. Se contarmos apenas os doentes mais sintomáticos que procuram os hospitais, a porcentagem de óbitos aumenta. Por uma série de razões, os epidemiologistas consideram mais precisos os dados coreanos e alemães.
O fato de 22% dos italianos terem mais de 65 anos, enquanto na Coreia do Sul esse número é de 14%, talvez seja parte da explicação. Digo parte porque a Alemanha tem uma população de idosos próxima daquela da Itália.
5) No Brasil, os casos iniciais foram diagnosticados em pessoas que se infectaram em outros países, principalmente na Itália, mas também em lugares como os Estados Unidos. Agora surgem as primeiras infecções comunitárias, isto é, as de brasileiros que adquiriram o vírus sem terem viajado para o exterior nem tido contato com viajantes. Isso é um marco: significa que o aumento do número de infecções será crescente nas próximas semanas.
O que vai acontecer?
Embora a velocidade de propagação possa ser reduzida às custas da adoção de medidas preventivas individuais e coletivas, tudo indica que uma epidemia de proporções nacionais provavelmente vai acontecer.
Num país de dimensões continentais, ela vai adquirir características regionais, com diferenças entre o Norte e o Sul ou o Sudeste, entre as cidades grandes e as pequenas, entre litoral e interior. O risco de uma trabalhadora que depende de transporte público na periferia de São Paulo ou do Recife não é o mesmo que o de um trabalhador rural do Centro-Oeste ou de um ribeirinho no Pará.
Uma coisa é certa: a depender da velocidade de disseminação da epidemia, o estresse sobre o sistema de saúde poderá ser brutal. Vou explicar.
1) No mínimo 80% dos infectados desenvolverão quadros semelhantes aos dos resfriados comuns, que podem e devem obrigatoriamente ser tratados em casa, com isolamento para não transmitir o vírus. O doente e os familiares devem lavar as mãos com frequência, usar máscara, higienizar maçanetas e superfícies de uso comum, separar talheres e pratos e reduzir ao máximo a possibilidade de contato com outras pessoas.
Se todos que ficarem resfriados correrem para o pronto-socorro, será o caos na saúde pública ou privada. As salas de espera ficarão lotadas —como já acontece em hospitais particulares de São Paulo— de gente infectada, que transmitirá o vírus para pacientes com outras enfermidades, à espera de atendimento, além de pôr em risco os profissionais de saúde.
Não podemos nos esquecer de que mesmo a doença com poucos sintomas afastará enfermeiras, atendentes, médicos e outros profissionais da linha de frente.
2) E os outros 20% de doentes que evoluem com sintomas mais exuberantes? Embora representem a minoria dos pacientes, na China um quarto deles precisou de internação; na Itália, cerca de 50%.
Esse é o desafio que enfrentaremos. Os casos graves representarão uma carga pesadíssima para o Sistema Único de Saúde, o SUS, e para os planos de saúde, com repercussões graves na economia do país.
Salvo exceções, não podemos mandar para casa pacientes com dificuldade para respirar, sobretudo porque serão os mais velhos, os fumantes com enfisema, os que sofrem de insuficiência cardíaca, renal, pressão alta, diabetes, Aids, tuberculose e outras doenças que debilitam o sistema imunológico.
Quem chegar ao pronto-socorro com falta de ar precisará ser internado. No mínimo para ficar em observação, mas pode necessitar de inalação contínua de oxigênio ou de entubação endotraqueal e aparelho de ventilação pulmonar, intervenções drásticas só disponíveis em unidades de terapia intensiva.
Como pneumonias virais não costumam ser curadas em menos de dez a 15 dias e podem evoluir com complicações bacterianas, o período médio de internação será prolongado.
Quantas pessoas infectadas exigirão cuidados mais intensivos? Em termos porcentuais, o número não assusta: 5% a 10% talvez, mas a depender do total de portadores do vírus no país inteiro haverá falta de milhares de vagas nas UTIs. Sem esquecer que a atual demanda, já reprimida, por leitos para pacientes recém-operados, com septicemia, ataque cardíaco, acidente vascular cerebral, enfisema ou traumatismo continuará a mesma.
De onde virão os profissionais, as instalações, os equipamentos e a expertise para cuidar intensivamente de tantas mulheres e homens de idade? A falta de leitos de UTI sempre foi um dos calcanhares de Aquiles do SUS. De onde os estados mais pobres e os mais endividados conseguirão recursos financeiros e humanos?
Nos últimos dias, ficamos chocados quando o médico Paolo Pelosi, de Gênova, na Itália, referência mundial em terapia intensiva e ventilação mecânica, revelou que os médicos do seu hospital enfrentavam o dilema ético de decidir que pacientes devem ter preferência no tratamento, uma vez que não há aparelhos de ventilação para todos. Se isso acontece nos hospitais públicos da Itália, será diferente aqui?
O que fazer?
Várias medidas devem ser tomadas imediatamente para reduzir os riscos de transmissão e a velocidade de disseminação, com a finalidade de ganhar tempo para nos organizarmos.
1) O programa Estratégia Saúde da Família, considerado pelos especialistas da OMS como um dos melhores do mundo, precisa ser preparado rapidamente para impedir que os doentes procurem os hospitais sem necessidade.
Os agentes de saúde que batem na porta de dois terços dos brasileiros devem ser treinados para orientar os moradores com quadro de resfriado. As equipes do Saúde da Família podem convencê-los a ficar em casa, em repouso, sendo tratados como no tempo de nossas avós. Imaginem o desastre se esse contingente, que representará pelo menos 80% de milhares de infectados, for parar nos serviços de pronto atendimento.
Imaginem o desastre que representará se toda essa gente fizer como pessoas da classe média alta de São Paulo, que já procuram os hospitais de convênio para fazer o teste ao primeiro espirro ou acesso de tosse. Faltarão kits para testar os que de fato precisarem.
2) O desafio maior, no entanto, será o de tratar os doentes graves. Nem o SUS nem os planos de saúde estão preparados para internar tanta gente, especialmente aqueles com indicação de ventilação respiratória assistida.
Neste momento, todos os esforços do ministério e das secretarias de saúde devem estar concentrados na criação da melhor estrutura possível para receber esses casos, uma tarefa difícil, porém não impossível.
Haverá dificuldades financeiras e organizacionais, pontos fracos do nossos sistema de saúde, mas nossos dirigentes devem entender que estamos diante de uma emergência de saúde pública. Será um crime se os recursos ficarem condicionados à mentalidade dos que dizem: “O SUS tem dinheiro suficiente, o que falta é organização”.
O pessoal de enfermagem e demais profissionais da área têm de receber treinamento urgente. Nosso sistema de saúde centrado nos médicos deve ser deslocado para os agentes de saúde nas visitas domiciliares e para a enfermagem nos hospitais, porque são eles que passam o dia inteiro em contato físico com os pacientes. Se caírem doentes, será difícil encontrar profissionais treinados para substitui-los.
Quanto mais medidas preventivas adotarmos agora para reduzir a velocidade de disseminação do vírus, mais tempo teremos para investir na atenção primária e na estruturação de nossos hospitais e demais serviços de saúde. O problema ficará pior se os doentes graves vierem todos de uma vez.
Mas qual é o seu risco pessoal?
Uma das tarefas mais complexas na área da educação em saúde é explicar para a população a diferença entre a percepção do risco individual e o risco para a sociedade. Assim, quando vacinamos uma criança, a mãe pode ficar assustada com o fato de a vacina provocar determinado efeito colateral, mesmo que ocorra em duas crianças para cada milhão de vacinadas. Para a saúde pública, o raciocínio é outro: quantas ficarão doentes ou morrerão se não tomarem a vacina?
No caso desse coronavírus, o impacto da epidemia no sistema de saúde será grave, pelas razões apresentadas, mas o risco individual é baixo e desigual. Vamos relembrar: na China, o país com o maior número de infectados, não morreu nenhuma criança com menos de dez anos. A mortalidade dos dez aos 40 anos foi de dois casos em cada mil infectados. As taxas começaram a aumentar a partir dos 60 anos e chegaram a cerca de 15% depois dos 80 anos.
Qual a razão para uma mulher ou homem de 40 anos correr para fazer o teste porque a tia chegou da Itália? O resultado vai servir para quê? Se for positivo, o pior que pode acontecer é ficar resfriado; se for negativo, que garantia haverá de assim permanecer depois de entrar em contato com o vírus no bar da esquina?
Quando o ministério e nós, médicos, dizemos que não existe razão para pânico, acham que estamos minimizando a gravidade do problema. Não é verdade. Pelo menos até aqui, as medidas técnicas adotadas pelo Ministério da Saúde têm sido impecáveis. Se esse vírus causasse mortes indiscriminadas em metade da população, haveria motivos para estratégias radicais, inadequadas para este momento.
Por enquanto, pelo menos, o maior perigo é a correria aos hospitais de pessoas que não entraram em contato com o vírus ou não correm risco de complicações. Elas vão congestionar e desestruturar o sistema de saúde e pôr em risco muito mais gente do que a epidemia.
E o que vai acontecer?
Futurologia não é o forte dos médicos, mas vou arriscar. Se a epidemia seguir o curso da chinesa, a mais antiga, o número de infecções deve crescer significativamente nas próximas semanas. Num período de três a quatro meses, o pior período, deverá se estabilizar e começar a perder força, porque haverá tanta gente que já entrou em contato com o vírus, que entrará em cena o fenômeno batizado pelos epidemiologistas como “imunidade de rebanho”, segundo o qual, as epidemias são controladas quando o número de não imunizados é insuficiente para manter a transmissão em massa.
O vírus desaparecerá para sempre? Acho que não. Fará parte do grupo de mais de 200 vírus causadores de resfriado comum.
Texto de Drauzio Varella, médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”, na Folha de São Paulo de 15/08/2020
Prever o futuro de uma epidemia é tarefa inglória. Quando se trata de um agente infeccioso que entra pela primeira vez em contato com seres humanos, fica pior.
Mesmo reconhecendo que as variáveis são tantas e as perguntas mais numerosas do que as certezas, já podemos tirar alguma conclusões.
1) Está claro que o atual coronavírus (chamado de Sars – COV-2) se adaptou muito bem à transmissão inter-humana, por meio das secreções das vias aéreas. A doença foi detectada na China, em dezembro, e se espalhou pelos continentes em três a quatro meses. É uma pandemia, quer dizer, todos corremos risco de adquirir esse coronavírus.
2) O isolamento forçado de regiões com milhões de habitantes na China, o fechamento da fronteira com a Rússia, a paralisação das atividades e a proibição de deslocamentos num país como a Itália, os policiais nas ruas das cidades atingidas, a fiscalização em aeroportos e o cancelamento de viagens aéreas foram medidas que talvez tenham retardado a entrada do vírus em algumas regiões e até reduzido a velocidade de disseminação, mas foram incapazes de deter a propagação pelo mundo.
3) O quadro clínico é variável, depende da idade, da presença de doenças crônicas, do tabagismo e da eficiência do sistema imunológico individual. A evolução é benigna em mais de 80% dos casos.
A taxa de mortalidade aumenta com a idade. As crianças com menos de dez anos são poupadas —no entanto, não sabemos até que ponto serão portadoras relativamente saudáveis do vírus que infectará os familiares.
Dos dez aos 40 anos, as mortes são eventos raros: ao redor de duas em cada mil infectados. O problema é a mortalidade na faixa dos 70 aos 80 anos (cerca de 8% a 10%) e nas pessoas com mais de 80 anos (de 14% a 20%).
4) Como esses números variam muito, ficam difíceis de serem interpretados. A Organização Mundial da Saúde estima que a mortalidade média no mundo está ao redor de 3,5%, mas na Itália passa dos 6%, enquanto na Coreia do Sul é de 0,7% e na Alemanha ocorreram apenas duas mortes em 1.300 infectados. Como explicar tamanha discrepância?
Até aqui, não surgiram evidências de que o vírus da Itália seja mais agressivo.
Certamente os coreanos e os alemães testaram mais gente e detectaram maior número de infecções assintomáticas ou com sintomas mínimos, enquanto o sistema de vigilância italiano teria deixado de diagnosticar esses casos iniciais. Se contarmos apenas os doentes mais sintomáticos que procuram os hospitais, a porcentagem de óbitos aumenta. Por uma série de razões, os epidemiologistas consideram mais precisos os dados coreanos e alemães.
O fato de 22% dos italianos terem mais de 65 anos, enquanto na Coreia do Sul esse número é de 14%, talvez seja parte da explicação. Digo parte porque a Alemanha tem uma população de idosos próxima daquela da Itália.
5) No Brasil, os casos iniciais foram diagnosticados em pessoas que se infectaram em outros países, principalmente na Itália, mas também em lugares como os Estados Unidos. Agora surgem as primeiras infecções comunitárias, isto é, as de brasileiros que adquiriram o vírus sem terem viajado para o exterior nem tido contato com viajantes. Isso é um marco: significa que o aumento do número de infecções será crescente nas próximas semanas.
O que vai acontecer?
Embora a velocidade de propagação possa ser reduzida às custas da adoção de medidas preventivas individuais e coletivas, tudo indica que uma epidemia de proporções nacionais provavelmente vai acontecer.
Num país de dimensões continentais, ela vai adquirir características regionais, com diferenças entre o Norte e o Sul ou o Sudeste, entre as cidades grandes e as pequenas, entre litoral e interior. O risco de uma trabalhadora que depende de transporte público na periferia de São Paulo ou do Recife não é o mesmo que o de um trabalhador rural do Centro-Oeste ou de um ribeirinho no Pará.
Uma coisa é certa: a depender da velocidade de disseminação da epidemia, o estresse sobre o sistema de saúde poderá ser brutal. Vou explicar.
1) No mínimo 80% dos infectados desenvolverão quadros semelhantes aos dos resfriados comuns, que podem e devem obrigatoriamente ser tratados em casa, com isolamento para não transmitir o vírus. O doente e os familiares devem lavar as mãos com frequência, usar máscara, higienizar maçanetas e superfícies de uso comum, separar talheres e pratos e reduzir ao máximo a possibilidade de contato com outras pessoas.
Se todos que ficarem resfriados correrem para o pronto-socorro, será o caos na saúde pública ou privada. As salas de espera ficarão lotadas —como já acontece em hospitais particulares de São Paulo— de gente infectada, que transmitirá o vírus para pacientes com outras enfermidades, à espera de atendimento, além de pôr em risco os profissionais de saúde.
Não podemos nos esquecer de que mesmo a doença com poucos sintomas afastará enfermeiras, atendentes, médicos e outros profissionais da linha de frente.
2) E os outros 20% de doentes que evoluem com sintomas mais exuberantes? Embora representem a minoria dos pacientes, na China um quarto deles precisou de internação; na Itália, cerca de 50%.
Esse é o desafio que enfrentaremos. Os casos graves representarão uma carga pesadíssima para o Sistema Único de Saúde, o SUS, e para os planos de saúde, com repercussões graves na economia do país.
Salvo exceções, não podemos mandar para casa pacientes com dificuldade para respirar, sobretudo porque serão os mais velhos, os fumantes com enfisema, os que sofrem de insuficiência cardíaca, renal, pressão alta, diabetes, Aids, tuberculose e outras doenças que debilitam o sistema imunológico.
Quem chegar ao pronto-socorro com falta de ar precisará ser internado. No mínimo para ficar em observação, mas pode necessitar de inalação contínua de oxigênio ou de entubação endotraqueal e aparelho de ventilação pulmonar, intervenções drásticas só disponíveis em unidades de terapia intensiva.
Como pneumonias virais não costumam ser curadas em menos de dez a 15 dias e podem evoluir com complicações bacterianas, o período médio de internação será prolongado.
Quantas pessoas infectadas exigirão cuidados mais intensivos? Em termos porcentuais, o número não assusta: 5% a 10% talvez, mas a depender do total de portadores do vírus no país inteiro haverá falta de milhares de vagas nas UTIs. Sem esquecer que a atual demanda, já reprimida, por leitos para pacientes recém-operados, com septicemia, ataque cardíaco, acidente vascular cerebral, enfisema ou traumatismo continuará a mesma.
De onde virão os profissionais, as instalações, os equipamentos e a expertise para cuidar intensivamente de tantas mulheres e homens de idade? A falta de leitos de UTI sempre foi um dos calcanhares de Aquiles do SUS. De onde os estados mais pobres e os mais endividados conseguirão recursos financeiros e humanos?
Nos últimos dias, ficamos chocados quando o médico Paolo Pelosi, de Gênova, na Itália, referência mundial em terapia intensiva e ventilação mecânica, revelou que os médicos do seu hospital enfrentavam o dilema ético de decidir que pacientes devem ter preferência no tratamento, uma vez que não há aparelhos de ventilação para todos. Se isso acontece nos hospitais públicos da Itália, será diferente aqui?
O que fazer?
Várias medidas devem ser tomadas imediatamente para reduzir os riscos de transmissão e a velocidade de disseminação, com a finalidade de ganhar tempo para nos organizarmos.
1) O programa Estratégia Saúde da Família, considerado pelos especialistas da OMS como um dos melhores do mundo, precisa ser preparado rapidamente para impedir que os doentes procurem os hospitais sem necessidade.
Os agentes de saúde que batem na porta de dois terços dos brasileiros devem ser treinados para orientar os moradores com quadro de resfriado. As equipes do Saúde da Família podem convencê-los a ficar em casa, em repouso, sendo tratados como no tempo de nossas avós. Imaginem o desastre se esse contingente, que representará pelo menos 80% de milhares de infectados, for parar nos serviços de pronto atendimento.
Imaginem o desastre que representará se toda essa gente fizer como pessoas da classe média alta de São Paulo, que já procuram os hospitais de convênio para fazer o teste ao primeiro espirro ou acesso de tosse. Faltarão kits para testar os que de fato precisarem.
2) O desafio maior, no entanto, será o de tratar os doentes graves. Nem o SUS nem os planos de saúde estão preparados para internar tanta gente, especialmente aqueles com indicação de ventilação respiratória assistida.
Neste momento, todos os esforços do ministério e das secretarias de saúde devem estar concentrados na criação da melhor estrutura possível para receber esses casos, uma tarefa difícil, porém não impossível.
Haverá dificuldades financeiras e organizacionais, pontos fracos do nossos sistema de saúde, mas nossos dirigentes devem entender que estamos diante de uma emergência de saúde pública. Será um crime se os recursos ficarem condicionados à mentalidade dos que dizem: “O SUS tem dinheiro suficiente, o que falta é organização”.
O pessoal de enfermagem e demais profissionais da área têm de receber treinamento urgente. Nosso sistema de saúde centrado nos médicos deve ser deslocado para os agentes de saúde nas visitas domiciliares e para a enfermagem nos hospitais, porque são eles que passam o dia inteiro em contato físico com os pacientes. Se caírem doentes, será difícil encontrar profissionais treinados para substitui-los.
Quanto mais medidas preventivas adotarmos agora para reduzir a velocidade de disseminação do vírus, mais tempo teremos para investir na atenção primária e na estruturação de nossos hospitais e demais serviços de saúde. O problema ficará pior se os doentes graves vierem todos de uma vez.
Mas qual é o seu risco pessoal?
Uma das tarefas mais complexas na área da educação em saúde é explicar para a população a diferença entre a percepção do risco individual e o risco para a sociedade. Assim, quando vacinamos uma criança, a mãe pode ficar assustada com o fato de a vacina provocar determinado efeito colateral, mesmo que ocorra em duas crianças para cada milhão de vacinadas. Para a saúde pública, o raciocínio é outro: quantas ficarão doentes ou morrerão se não tomarem a vacina?
No caso desse coronavírus, o impacto da epidemia no sistema de saúde será grave, pelas razões apresentadas, mas o risco individual é baixo e desigual. Vamos relembrar: na China, o país com o maior número de infectados, não morreu nenhuma criança com menos de dez anos. A mortalidade dos dez aos 40 anos foi de dois casos em cada mil infectados. As taxas começaram a aumentar a partir dos 60 anos e chegaram a cerca de 15% depois dos 80 anos.
Qual a razão para uma mulher ou homem de 40 anos correr para fazer o teste porque a tia chegou da Itália? O resultado vai servir para quê? Se for positivo, o pior que pode acontecer é ficar resfriado; se for negativo, que garantia haverá de assim permanecer depois de entrar em contato com o vírus no bar da esquina?
Quando o ministério e nós, médicos, dizemos que não existe razão para pânico, acham que estamos minimizando a gravidade do problema. Não é verdade. Pelo menos até aqui, as medidas técnicas adotadas pelo Ministério da Saúde têm sido impecáveis. Se esse vírus causasse mortes indiscriminadas em metade da população, haveria motivos para estratégias radicais, inadequadas para este momento.
Por enquanto, pelo menos, o maior perigo é a correria aos hospitais de pessoas que não entraram em contato com o vírus ou não correm risco de complicações. Elas vão congestionar e desestruturar o sistema de saúde e pôr em risco muito mais gente do que a epidemia.
E o que vai acontecer?
Futurologia não é o forte dos médicos, mas vou arriscar. Se a epidemia seguir o curso da chinesa, a mais antiga, o número de infecções deve crescer significativamente nas próximas semanas. Num período de três a quatro meses, o pior período, deverá se estabilizar e começar a perder força, porque haverá tanta gente que já entrou em contato com o vírus, que entrará em cena o fenômeno batizado pelos epidemiologistas como “imunidade de rebanho”, segundo o qual, as epidemias são controladas quando o número de não imunizados é insuficiente para manter a transmissão em massa.
O vírus desaparecerá para sempre? Acho que não. Fará parte do grupo de mais de 200 vírus causadores de resfriado comum.
Texto de Drauzio Varella, médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”, na Folha de São Paulo de 15/08/2020
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