Falta de perspectivas, pressão por desempenho e a violência cotidiana alimentam o esvaziamento da vida entre adolescentes. A consequência? Aumento de autolesões e suicídios
Falta de perspectivas, pressão por desempenho e a violência cotidiana alimentam o esvaziamento da vida entre adolescentes. A consequência? Aumento de autolesões e suicídios
Alerta de conteúdo sensível: este texto contém informações relacionadas a problemas de saúde mental e suicídio. Se estiver precisando de ajuda ou conhecer alguém que esteja, ligue CVV 188
Conectados, pressionados e expostos a um mundo de crises múltiplas, adolescentes têm demonstrado sinais alarmantes de esvaziamento do valor da vida. O resultado aparece no aumento de casos de autolesão e tentativas de suicídio -- um grito silencioso que adultos, famílias e escolas muitas vezes não conseguem escutar. Eles estão online o tempo todo, mas se sentem sozinhos. Precisam performar na escola e nas redes, enquanto enxergam um horizonte fraturado por desigualdade, violência e um planeta em risco.
Por trás dos números, há uma geração que questiona o sentido de viver em idade cada vez mais precoce. "Qual é o sentido de estudar se nem sei se vou ter trabalho?" "Se o mundo está acabando, por que planejar o futuro?" "Não quero morrer, só queria que a dor parasse." Esses enunciados se repetem em consultórios, corredores de escola e rodas de conversa -- e não é exagero. No mundo, a Organização Mundial da Saúde estima mais de 720 mil mortes por suicídio a cada ano; em 2021, foi a terceira principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. Em países de baixa e média renda concentram-se quase três quartos desses óbitos. No Brasil, a fotografia acompanha a tendência: foram 15.507 mortes por suicídio em 2021, 77,8% entre homens. Entre adolescentes, o impacto é particularmente duro: o suicídio já figura como a terceira causa de morte entre 15 e 19 anos e a quarta entre 20 e 29.
E antes das mortes há o que raramente vira manchete: as autolesões e as tentativas. Só em 2021, o Sinan registrou 114.159 notificações de violências autoprovocadas, 70,3% em mulheres; entre adolescentes, 21,5% tinham de 15 a 19 anos e 9,3% estavam entre 5 e 14. No período de 2011 a 2022, estudo da Fiocruz mostra que a taxa de suicídio entre jovens de 10 a 24 anos cresceu em média 6% ao ano, enquanto as notificações de automutilação dispararam 29% ao ano -- um avanço muito acima da média da população geral.
Esse esvaziamento do sentido de viver tem muitas faces. Para parte dos jovens, o futuro simplesmente não lhes pertence: medo crônico de não encontrar trabalho, violência no território em que vivem, a percepção de que o mundo caminha para um colapso climático, político e social. A combinação produz desesperança e fragiliza o valor atribuído à própria vida. Em meio à pressão estética e de produtividade, à comparação permanente nas redes e à precariedade econômica, a autolesão aparece como tentativa de dar forma física a uma dor sem linguagem.
Embora a intoxicação por medicamentos seja o meio mais frequente de tentativa, seguida por objetos cortantes, a letalidade é maior entre meninos, que tendem a recorrer a métodos mais violentos. Dizer que "é só para chamar atenção" é não compreender a dimensão do sofrimento.
"Do ponto de vista cognitivo, a incerteza constante é um fator de risco para ansiedade e para a percepção de que não há sentido", explica dr. Guilherme Polanczyk, psiquiatra da infância e adolescência e professor da USP. Ele lembra que megatendências como mudanças climáticas, tensões políticas e tecnologias disruptivas reforçam a instabilidade para todas as gerações, mas atingem os adolescentes de forma mais aguda.
Estilos parentais mais ansiosos e a parentalidade intensiva -- a tentativa constante de evitar frustrações -- também interferem na formação emocional. Crises familiares, rupturas, falências e a exposição à violência funcionam como gatilhos adicionais. A tecnologia, aqui, é parte do problema e da solução. A exposição contínua a narrativas de violência e autoagressão nas redes pode banalizar comportamentos de risco e criar efeitos de identificação em grupo. Há ainda novos perigos relacionados ao uso indiscriminado de ferramentas de inteligência artificial, já envolvidas em episódios de incentivo a suicídio.
O consumo excessivo de telas -- muitas vezes acima de sete horas diárias -- amplia a exposição a conteúdos como pornografia, jogos de aposta e dietas extremas, com impactos documentados sobre um cérebro ainda em desenvolvimento. Esses riscos se somam a velhos conhecidos, como álcool e cigarro, agora acompanhados de novas drogas e dispositivos, num cenário em que as ações preventivas em curso não conseguem conter os efeitos.
A literatura científica aponta que cerca de 90% das pessoas que morrem por suicídio apresentam algum transtorno mental, como depressão, bipolaridade ou esquizofrenia, ou uso problemático de álcool e outras drogas. Entre adolescentes, somam-se fatores sociais e relacionais: abuso físico, psicológico ou sexual; isolamento; discriminação; perdas familiares; violência doméstica; bullying; impulsividade; baixa autoestima; desesperança.
"Os jovens percebem que valores como solidariedade e gratidão foram corroídos. Sentem-se invisíveis em uma sociedade movida pelo poder econômico e pela indiferença", observa a Ana Cecília Petta Roselli Marques, médica psiquiatra, especialista em Saúde Coletiva e Saúde Mental pela UNESP e doutora em Neurociências pela UNIFESP. Para ela, a prevenção começa em casa e se sustenta em rede: família, escola, atenção básica e serviços especializados; só uma política robusta, integral e baseada em evidências altera o quadro.
O que fazer diante dos sinais? Adolescência saudável não significa ausência de turbulência, mas quando a dor persiste e desmonta a vida cotidiana é preciso acender o alerta. Mudanças bruscas de humor, tristeza profunda, perda de interesse por atividades antes prazerosas, isolamento, irritabilidade, alterações de sono e apetite, queda acentuada no rendimento escolar, conflitos recorrentes com colegas e familiares e doenças frequentes compõem um quadro de atenção.
Perguntar diretamente sobre sofrimento, pensamentos de morte ou de se ferir não aumenta o risco; ao contrário, abre portas para acolher e encaminhar. Na escola, protocolos claros de identificação e acolhimento, formação continuada de educadores e educação socioemocional baseada em evidências são indispensáveis, com foco em pertencimento, regulação emocional, projetos de vida e comunicação responsável (sem romantização).
Em casa e na comunidade, escuta ativa antes de aconselhar, validação da dor, discussão franca sobre masculinidades (vulnerabilidade não é fraqueza), elaboração de planos de segurança que incluam pessoas de referência e a redução do acesso a meios letais são medidas práticas. Persistindo sinais, é fundamental buscar ajuda profissional -- CAPSij, rede SUS, psicoterapia e, quando indicado, acompanhamento psiquiátrico.
No campo das políticas públicas, o caminho passa por fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial e os CAPS (com equipes completas e orçamento estável), integrar vigilância epidemiológica e atenção básica para que dados em tempo oportuno orientem ações locais, fiscalizar ambientes digitais e reduzir a disponibilidade de meios letais.
Cultura, esporte e projetos comunitários funcionam como fatores de proteção: onde há vínculo, há saída. Cada adolescente que corta a própria pele ou tenta se matar é uma denúncia viva de que a sociedade falhou em oferecer cuidado e pertencimento. Não é "problema deles": é o espelho de um país que cobra demais, oferece pouco e se ausenta nos momentos mais críticos.
Prevenir o suicídio na adolescência não é tarefa de especialistas isolados; é responsabilidade coletiva. E começa por algo simples, mas radical: escutar de verdade os jovens e reconhecer que a dor deles também nos atravessa.
Onde buscar ajuda: CVV - 188 (24h, gratuito; telefone, chat, e-mail). Em risco imediato, acione o SAMU - 192
Reportagem de Carolina Delboni no Estadão
https://www.estadao.com.br/emais/carolina-delboni/por-que-a-vida-tem-perdido-o-sentido-para-tantos-adolescentes/
quinta-feira, 18 de setembro de 2025
quarta-feira, 17 de setembro de 2025
Mãe processa jogo Roblox após filho autista cometer suicídio
Por meio do jogo considerado infantil, criminoso de 37 anos conquistou confiança de adolescente e o explorava sexualmente
Alerta: a reportagem abaixo trata de temas como suicídio e transtornos mentais. Se você está passando por problemas, veja ao final do texto onde buscar ajuda.
Em dezembro de 2023, Ethan Dallas enviou uma mensagem de texto para sua mãe, Becca Dallas, dizendo que algo estava pesando em sua mente.
“Desculpe. Me sinto muito mal comigo mesmo. Sinto que não tenho valor”, escreveu o jovem de 15 anos. “Prometa que não ficará brava se eu contar?”
Dallas levou Ethan, que era autista, a um restaurante Denny’s perto de sua casa em San Diego, na Califórnia (EUA). Lá, ele fez uma confissão sobre Roblox, seu videogame favorito, que jogava desde os 7 anos.
Anos antes, um jogador do Roblox que dizia ser uma criança chamada Nate havia enviado uma mensagem para Ethan. Eles se tornaram amigos íntimos, jogando o jogo online juntos todos os dias depois da escola e conversando até tarde da noite.
Nate acabou mostrando a Ethan como desativar alguns dos controles parentais do Roblox. Suas conversas se tornaram sexuais e passaram para o aplicativo de mensagens Discord, onde Nate exigiu que Ethan enviasse fotos explícitas de si mesmo. Ethan obedeceu depois que Nate ameaçou compartilhar publicamente suas conversas.
Ethan começou a ter acessos de raiva, disse Dallas. As explosões eram tão intensas que, em 2022, ela e o marido o colocaram em um centro de tratamento residencial por um ano. Em abril de 2024, quatro meses depois de contar à mãe sobre Nate, Ethan se matou.
Em abril, Dallas soube pelas autoridades da Flórida que Nate provavelmente era Timothy O’Connor, um homem de 37 anos. Ele havia sido preso por acusações separadas de posse de pornografia infantil e transmissão de material prejudicial a menores. As autoridades policiais da Flórida trabalharam com o Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas, que Dallas havia contatado sobre a situação de Ethan, e conectaram o caso dele a O’Connor.
“Eu não conseguia acreditar”, disse Dallas, 47, que achava que o Roblox era um jogo infantil.
Na sexta-feira, Dallas processou a Roblox, acusando-a de homicídio culposo. No processo, orovavelmente o primeiro desse tipo contra a empresa do jogo popular entre jovens, destaca os perigos potenciais de uma plataforma voltada para crianças de até 13 anos, mas onde adultos podem entrar e sair livremente. O documento relata com detalhes dolorosos a experiência de Ethan jogando o jogo.
No Roblox, os jogadores entram em um “metaverso”, um mundo virtual onde podem jogar e conversar por meio de personagens digitais que podem construir pistas de obstáculos e resolver quebra-cabeças. Cerca de 40 milhões de usuários da plataforma — mais de um terço — têm menos de 13 anos, tornando o Roblox o principal ponto de encontro para crianças online. O Facebook e o Instagram exigem que os usuários tenham pelo menos 13 anos para abrir uma conta.
Qualquer pessoa pode criar uma conta no Roblox e jogar gratuitamente. Os adultos podem usar os recursos de comunicação da plataforma, como chats privados e conversas de voz, para conversar com crianças, disseram especialistas em segurança.
O grande número de crianças no Roblox tornou-o um alvo para predadores online, disse Ron Kerbs, fundador da Kidas, uma empresa de software de segurança digital. O Roblox tomou medidas para mitigar os riscos, incluindo a introdução, em julho, de medidas para verificar a idade dos jogadores, como a digitalização de vídeos de seus rostos, observou ele. Mas esses recursos podem ser contornados, como quando um usuário joga na conta de outra pessoa, disse ele.
“É uma questão séria”, disse Kerbs. “Quando você tem tantos usuários, essas coisas vão acontecer sem uma moderação rigorosa.”
As ações judiciais contra a Roblox começaram a se intensificar. Em abril, o procurador-geral da Flórida, James Uthmeier, abriu uma investigação sobre segurança infantil na empresa. No mês passado, a procuradora-geral da Louisiana, Liz Murrill, processou a Roblox por questões relacionadas a predadores no jogo, chamando-o de “o lugar perfeito para pedófilos”.
Mais de 20 ações judiciais acusando a Roblox de permitir a exploração sexual, que é quando os usuários são coagidos ou manipulados a compartilhar material sexualmente explícito ou realizar atos sexuais, foram movidas em tribunais federais este ano, de acordo com uma análise do New York Times de registros públicos.
Cerca de uma dúzia de escritórios de advocacia especializados em danos pessoais estão coordenando ações judiciais de segurança infantil contra a Roblox, disse Alexandra Walsh, sócia da Anapol Weiss, o escritório que está lidando com o caso de Dallas. O objetivo é estabelecer um precedente legal que possa responsabilizar a Roblox e empresas de mídia social como Meta e Snap pelos predadores em suas plataformas, disse ela.
O objetivo, segundo Walsh, é estabelecer um caminho que não seja bloqueado pela Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações, uma lei de 1996 que protege as empresas da responsabilidade por postagens feitas por usuários em seus sites.
A ação de Dallas alega que o design da Roblox e a falta de barreiras de segurança, e não o conteúdo do jogo em si, são o que permitiu a predação.
Dallas, que está processando na Corte Superior do Condado de São Francisco, perto da sede da Roblox, também processou a Discord. Ela está buscando uma indenização financeira não especificada pelo sofrimento emocional causado pela morte de Ethan.
“Estamos profundamente tristes com esta perda trágica e inimaginável”, disse um porta-voz da Roblox. As questões de segurança infantil são um problema em toda a indústria, disse ele, acrescentando que a empresa está trabalhando para desenvolver novos recursos de segurança e coopera com as autoridades policiais.
A Discord está “profundamente comprometida com a segurança” e exige que os usuários tenham pelo menos 13 anos, disse um porta-voz da empresa. A plataforma de mensagens diz que usa “tecnologia avançada e equipes de segurança treinadas para encontrar e remover proativamente conteúdos que violam nossas políticas”.
‘Nunca vi nada impróprio acontecendo’
Ethan, que tinha quatro irmãos mais velhos e era melhor amigo de suas duas sobrinhas mais novas, era conhecido como o palhaço da turma, disse Lisa Kogan, sua professora de educação especial de 2021 até sua morte. Ele costumava aparecer com um avental e um chapéu de chef para fazer lanches para seus colegas de classe, disse ela, e aos 9 anos já havia aprendido sozinho a programar e tocar piano. Ele também era o arremessador estrela de um time de beisebol para jovens com deficiência.
Por causa de suas dificuldades de aprendizagem, Ethan era intimidado por alguns jovens da vizinhança, conta Dallas. Ele recorreu a videogames como Roblox como uma fuga, muitas vezes achando os personagens virtuais mais fáceis de socializar do que outras pessoas da sua idade.
Em 2015, o jovem começou a jogar Roblox com a permissão de seus pais, que configuraram controles parentais em sua conta. Esses controles permitiam que eles restringissem o tempo que Ethan passava no jogo e aprovassem solicitações de amizade, mas não impediam a comunicação entre ele e adultos.
Ethan passava horas por dia em seu computador, onde também jogava jogos como Minecraft e Rocket League. Ele transmitia seus jogos no YouTube e no Twitch, onde tinha uma pequena comunidade de seguidores. Dallas se sentia confortável com o fato de o Roblox monitorar as conversas de Ethan, disse ela, porque algumas vezes ele foi temporariamente banido por usar expressões como “idiota”.
“Nunca ouvi falar de nada impróprio acontecendo, ou eu teria invadido a sala”, disse ela.
Quando Ethan lhe contou sobre Nate, Dallas ficou horrorizada. Ela imediatamente entrou em contato com o Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas, que acabou colocando-a em contato com a equipe de crimes cibernéticos do Departamento de Polícia da Flórida. Mas ela deixou Ethan continuar jogando Roblox enquanto ela e o marido vigiavam de perto a conta dele, incluindo verificar suas mensagens, porque ele era “viciado” no jogo, disse ela.
O Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas se recusou a comentar o caso de Ethan.
Naquela época, Ethan já não tinha mais contato com Nate. Eles haviam parado de se comunicar em 2021, disse Dallas, mas seu filho continuava com medo de Nate.
Sem o conhecimento da família Dallas, O’Connor havia sido acusado separadamente na Flórida em 2021 por posse de pornografia infantil e transmissão de material prejudicial a menores. Em dezembro de 2023, ele foi considerado mentalmente incapaz de ser julgado, segundo registros públicos. Os advogados de O’Connor se recusaram a comentar.
Semanas antes de sua morte, Ethan parecia normal, disse Dallas. Ele tinha tido dificuldades para concluir os trabalhos escolares depois de voltar do centro de tratamento residencial, mas seu desempenho tinha melhorado. Ele estava aprendendo a dirigir e queria comprar o carro do pai e pintá-lo de roxo.
Certa noite, Ethan a acordou batendo na porta do quarto. “Ele simplesmente veio, deitou a cabeça no meu colo e ficou dizendo ‘eu te amo’”, disse Dallas. “E eu disse ‘eu também te amo’”.
Na manhã seguinte, seu marido encontrou Ethan sem vida em seu quarto.
Dallas disse que esperava que seu processo judicial levasse a mudanças que tornassem o Roblox mais seguro. Este mês, ela criou uma fundação em nome de Ethan para ajudar crianças que lutam contra problemas de saúde mental.
“Quero que sua história seja compartilhada”, disse ela. “Para assustar os pais e que eles saibam que eu achava que meu filho estava seguro e que isso não iria acontecer comigo.”
Reportagem de Eli Tan em The New York Times
O conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA.
Onde buscar ajuda
Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:
Centro de Valorização da Vida (CVV)
Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.
Canal Pode Falar
Iniciativa criada pelo Unicef para oferecer escuta para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.
SUS
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.
Mapa da Saúde Mental
O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.
NOTA DA REDAÇÃO: Suicídios são um problema de saúde pública. Antes, o Estadão, assim como boa parte da mídia profissional, evitava publicar reportagens sobre o tema pelo receio de que isso servisse de incentivo. Mas, diante da alta de mortes e tentativas de suicídio nos últimos anos, inclusive de crianças e adolescentes, o Estadão passa a discutir mais o assunto. Segundo especialistas, é preciso colocar a pauta em debate, mas de modo cuidadoso, para auxiliar na prevenção. O trabalho jornalístico sobre suicídios pode oferecer esperança a pessoas em risco, assim como para suas famílias, além de reduzir estigmas e inspirar diálogos abertos e positivos. O Estadão segue as recomendações de manuais e especialistas ao relatar os casos e as explicações para o fenômeno.
https://www.estadao.com.br/educacao/mae-processa-jogo-roblox-apos-filho-autista-cometer-suicidio/
Os 12 mitos sobre alimentação que mais aborrecem os nutricionistas
O campo da nutrição é um terreno especialmente fértil para o surgimento de modismos que não são corroborados pela ciência
De água quente com limão em jejum a comer de três em três horas para acelerar o metabolismo, não faltam mitos quando o assunto é alimentação. Muitos desses hábitos se popularizam por modismos ou promessas de resultados rápidos, mas carecem de base científica. A crença em informações distorcidas pode não só frustrar quem busca emagrecer ou melhorar a saúde, como também criar uma relação confusa e ansiosa com a comida.
Por isso, o acompanhamento nutricional individualizado é fundamental. Um nutricionista qualificado ajuda com orientações práticas, respeitando as necessidades, a rotina e a história de cada pessoa. Mais do que seguir regras rígidas ou dietas da moda, comer bem envolve conhecimento e apoio profissional para construir hábitos sustentáveis a longo prazo.
Veja abaixo quais são os principais mitos envolvendo alimentação que chegam aos consultórios de nutricionistas.
1- ‘Leite é inflamatório’ A crença de que o leite é um alimento inflamatório se espalhou nos últimos anos, especialmente nas redes sociais, mas não encontra respaldo na ciência. A nutricionista Lara Natacci, diretora clínica da Dietnet e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), esclarece que, ao contrário do que se imagina, o leite tem efeito anti-inflamatório comprovado em estudos recentes – exceto em casos específicos, como alergia à proteína do leite de vaca, condição rara que pode, de fato, provocar reações inflamatórias no organismo.
Outra situação que leva as pessoas a acreditarem que o leite inflama é a intolerância à lactose, mas, segundo Lara, ela não está relacionada à inflamação sistêmica. Nesse caso, há deficiência de uma enzima que digere a lactose, o açúcar natural da bebida. Por causa disso, ocorrem desconfortos intestinais como gases, inchaço e diarreia.
A nutricionista ressalta que a generalização de que o leite faz mal à saúde não apenas desinforma, como também pode levar à exclusão desnecessária de um alimento rico em nutrientes importantes, como cálcio, proteínas e vitaminas do complexo B.
2- ‘Glúten engorda e inflama’
A ideia de que o glúten engorda ou causa inflamação tornou-se um dos mitos mais comuns sobre alimentação. No entanto, essa crença também não encontra respaldo científico. O glúten é uma proteína naturalmente presente no trigo, na cevada e no centeio, e seu consumo é seguro para a maioria das pessoas.
Quem realmente precisa evitar o glúten são os portadores de doença celíaca, uma condição autoimune em que essa proteína provoca inflamação no intestino, além de indivíduos com alergia ao trigo ou sensibilidade ao glúten, que podem apresentar desconfortos gastrointestinais. Fora esses casos específicos, não há evidências de que o glúten cause inflamação generalizada ou esteja associado ao ganho de peso.
“Para quem não tem doença celíaca ou sensibilidade diagnosticada pelo médico, não existe nenhum potencial inflamatório do glúten”, afirma Lara. A nutricionista Tarcila Campos, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, reforça: “Esse é um mito comum. Fora os casos específicos, o glúten não causa prejuízo à saúde.”
O problema, segundo Tarcila, é que ao excluir o glúten sem necessidade, a pessoa pode reduzir o consumo de alimentos ricos em fibras e vitaminas do complexo B, nutrientes presentes em cereais como trigo. Isso pode levar a uma alimentação menos variada e nutricionalmente empobrecida.
Como explica Lara, “o ganho de peso está muito mais relacionado ao excesso calórico e ao consumo exagerado de alimentos ricos em açúcar e gordura do que à presença do glúten em si. Não há razão para cortá-lo da dieta sem diagnóstico médico. Manter uma alimentação equilibrada e variada é sempre a melhor escolha”, afirma.
3- ‘Para emagrecer é preciso passar fome’
Outro mito bastante difundido quando se trata de perda de peso. Segundo a nutricionista Desire Coelho, colunista do Estadão, é muito comum que algumas pessoas cheguem ao consultório achando que precisam se privar da comida para alcançar resultados, quando, na verdade, a fome é um sinal essencial de que o corpo precisa de nutrientes.
“Emagrecer comendo é totalmente possível, desde que a alimentação seja equilibrada e adaptada à rotina da pessoa”, informa.
Ela explica que o corpo possui diferentes apetites – por proteínas, fibras, micronutrientes – e, quando não são supridos, o organismo intensifica a fome como uma forma de compensação. Por isso, acrescenta a nutricionista, dietas monótonas, muito restritivas e pobres em variedade podem, paradoxalmente, levar ao ganho de peso, justamente porque o corpo continua “procurando” os nutrientes ausentes.
Além disso, passar fome ativa mecanismos compensatórios que, com o tempo, dificultam ainda mais o emagrecimento. A chave está em identificar alimentos que proporcionam saciedade, como os ricos em fibras e proteínas, manter uma boa hidratação e respeitar as necessidades individuais. O emagrecimento saudável vem do equilíbrio, e não da privação.
4- ‘Carboidrato é inimigo’
Por muito tempo, os carboidratos carregaram a fama de inimigos das dietas, especialmente em estratégias voltadas ao emagrecimento. No entanto, a ciência nutricional mostra que essa má reputação é infundada. De acordo com Lara, o nutriente é fonte essencial de energia, principalmente para o cérebro. “O carboidrato precisa ser consumido na quantidade adequada para a saúde do indivíduo”, observa.
Eliminar completamente os carboidratos da alimentação pode causar sintomas como falta de energia, fadiga e dificuldade de concentração. Ou seja, o problema não está no nutriente em si, mas no consumo desequilibrado.
Outro ponto importante diz respeito ao tipo escolhido. Os especialistas indicam priorizar os chamados carboidratos complexos, representados por alimentos como cereais integrais, frutas, legumes, verduras e leguminosas, por exemplo. É que eles concentram fibras e possuem baixo índice glicêmico, ou seja, favorecem a liberação gradual da glicose no sangue. O alto teor de fibras ainda ajuda na manutenção dos bons níveis de colesterol. Também apresentam vitaminas, minerais e compostos bioativos benéficos.
Já os carbodiratos simples, encontrados em bebidas açucaradas, doces e muitos itens ultraprocessados, tendem a causar flutuações rápidas da glicose no sangue e levar a desequilíbrios metabólicos.
A nutricionista Tarcila Campos, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, reforça que dietas com menor teor de carboidratos podem funcionar para algumas pessoas, mas não são a única estratégia eficaz para perda de peso. “O mais importante é o equilíbrio calórico, a qualidade dos alimentos e a adesão ao plano alimentar individualizado”, ressalta.
5- ‘Bebida destilada não engorda’
A ideia de que bebidas destiladas, como vodca, gim ou uísque, não engordam é balela. Embora essas opções tenham menos carboidratos do que uma cerveja ou caipirinha com açúcar, isso não significa que sejam isentas de calorias, muito pelo contrário.
“É verdade que bebidas destiladas têm menos carboidratos, mas elas ainda são calóricas. O álcool tem 7 kcal por grama”, descreve Tarcila. Além disso, o consumo de álcool pode aumentar o apetite, dificultar o controle alimentar e impactar negativamente o metabolismo e a saúde como um todo.
Outro ponto importante levantado pela especialista é que não existe bebida alcoólica ou dosagem que traga benefícios à saúde. Ou seja, nenhum tipo de álcool deve ser considerado inofensivo, mesmo em pequenas quantidades. Para Tarcila, “na nutrição, o contexto importa, e personalizar a orientação faz toda a diferença”.
6- ‘Dietas restritivas sempre funcionam’
A ideia de que fazer dieta é sempre eficaz para emagrecer ainda é amplamente difundida, mas está longe de refletir a realidade da maioria das pessoas. Desire alerta que um dos maiores mitos é acreditar que, se alguém não consegue emagrecer ou manter o peso com uma dieta, o problema está na falta de força de vontade.
“A gente vive numa era em que as pessoas acham que fazer dieta é a solução para perda de peso. E, sim, há indivíduos que conseguem manter o peso perdido depois, mas é uma minoria”, observa. “Muitos estudos mostram que, entre um a cinco anos após o início da dieta, apenas 10% a 20% das pessoas conseguem sustentar o peso perdido, ou seja, de 80% a 90% recuperam tudo, e muitas ainda ganham mais”, adiciona.
Se fosse para considerar um medicamento com esse nível de eficácia, provavelmente ele nem seria indicado. Mesmo assim, o discurso em torno das dietas continua forte, alimentado por redes sociais que exaltam casos de sucesso isolados e os transformam em referência.
Desire também destaca que o peso corporal é fortemente influenciado pela genética, com o IMC (Índice de Massa Corporal) sendo determinado de 60% a 80% por fatores genéticos. Isso mostra que emagrecimento vai muito além de “força de vontade” e que estratégias sustentáveis precisam respeitar a biologia e a individualidade de cada pessoa.
7- ‘Sucos detox limpam o organismo’
Muito populares nas redes sociais e em dietas da moda, os chamados sucos detox são vendidos como soluções rápidas para “limpar o organismo”. Mas, ao contrário do que prometem, nenhum alimento tem poder de desintoxicação. Segundo Lara, quem realmente faz esse trabalho é o próprio organismo, especialmente o fígado, além dos rins, intestino e até a pele. “Não tem nenhum alimento que tenha esse poder mágico detox”, afirma.
Isso não significa que os sucos à base de vegetais não tenham seu valor – eles podem ser fontes importantes de vitaminas, minerais e antioxidantes. Mas não corrigem excessos. O que realmente contribui para um organismo saudável, segundo a especialista, é uma alimentação equilibrada, rica em frutas, verduras, legumes e muita água.
8- ‘Todo alimento industrializado é ruim’
Essa crença é comum, mas nem sempre corresponde à realidade. O simples fato de um alimento passar por um processo industrial não o torna automaticamente ruim ou sem valor nutricional.
Há vários alimentos industrializados que oferecem substâncias importantes para o corpo, além de garantirem segurança alimentar, acessibilidade e praticidade para a população. Iogurtes, vegetais congelados, leguminosas enlatadas, pães e cereais integrais, por exemplo, podem fazer parte de uma rotina saudável.
O segredo, segundo Lara, está em avaliar a qualidade do alimento, sua composição, ingredientes e função dentro de uma dieta equilibrada. “A melhor escolha depende do contexto, da quantidade, da frequência de consumo, das necessidades individuais e da leitura atenta dos rótulos”, pontua.
9- ‘Comer de três em três horas acelera o metabolismo’
Durante anos, esse hábito foi promovido como uma estratégia para ajudar no emagrecimento. No entanto, segundo a nutricionista Marcela Kotait, coordenadora do ambulatório de anorexia nervosa do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), essa ideia não tem base científica.
Ela explica que seguir um cronograma rígido de alimentação pode, inclusive, ser prejudicial: “O que a gente sabe, por outro lado, é que esse hábito de comer a cada três horas numa tentativa pré-definida, com a intenção de emagrecer, faz com que o indivíduo se desconecte dos sinais internos de fome e saciedade.”
Além disso, Marcela reforça que não existe comprovação de que o simples ato de comer em intervalos curtos acelere o metabolismo. “Esse número meio mágico, de três em três horas, não se sustenta. Quando se pensa em emagrecimento ou manutenção do peso, o que importa mesmo é a ingestão calórica total ao longo do dia, e não como ela é fracionada”, conclui.
10- ‘Água com limão em jejum emagrece’
Segundo Marcela, esse é mais um conselho sem sentido. “Não existe comprovação de que a água com limão em jejum ajude a perder peso. Isso faz parte de uma série de modismos que tentam oferecer soluções mágicas, muitas vezes ligadas à ideia de alterar o pH do estômago ou do corpo”, explica a especialista.
Marcela alerta que esse tipo de crença se baseia em pseudociência e pode desviar o foco do que realmente importa para o emagrecimento: alimentação equilibrada, consciência corporal e hábitos sustentáveis.
11- ‘Comer gordura engorda’
Marcela aponta que essa ideia é simplista e equivocada. “Na verdade, tudo engorda e nada engorda. O grande ponto é que, quando se come em excesso, tudo pode se transformar em depósito de energia que o nosso corpo vai armazenar em forma de gordura. E o que leva ao ganho de peso é o excesso, independentemente do nutriente”, afirma.
Marcela explica que tanto gorduras como proteínas e carboidratos podem ser convertidos em gordura corporal.
Segundo ela, o mais importante é considerar a quantidade, a frequência e o comportamento alimentar como um todo. “É mais relevante entender como o indivíduo se relaciona com a comida do que demonizar um nutriente específico”, resume.
12- ‘Ovo aumenta o colesterol’
Essa associação já foi desmentida há tempos pela ciência. “O ovo é o grande exemplo do que uma informação mal embasada pode causar: terrorismo nutricional”, destaca Marcela.
De acordo com a nutricionista, o ovo, assim como outros itens demonizados ao longo do tempo, como a manteiga, foi vítima de modismos alimentares. “São alimentos ricos em determinados nutrientes, mas isso precisa ser analisado com equilíbrio, considerando quantidade e frequência de consumo.”
Ela alerta também para o problema de reduzir a comida aos seus nutrientes, um comportamento comum no discurso atual sobre alimentação. “As pessoas não comem mais pão, comem carboidrato; não comem mais carne, comem proteína. Essa codificação afasta o indivíduo de uma relação saudável com a comida”, alerta.
Para a especialista, uma alimentação verdadeiramente equilibrada envolve escuta do corpo, respeito à fome e à saciedade, e escolhas conscientes. “Comer bem não é cortar nutrientes, é construir um hábito alimentar pacífico e sustentável a longo prazo”, conclui.
Reportagem de Fernanda Bassette no Estadão
https://www.estadao.com.br/saude/os-12-mitos-sobre-alimentacao-que-mais-aborrecem-os-nutricionistas/
De água quente com limão em jejum a comer de três em três horas para acelerar o metabolismo, não faltam mitos quando o assunto é alimentação. Muitos desses hábitos se popularizam por modismos ou promessas de resultados rápidos, mas carecem de base científica. A crença em informações distorcidas pode não só frustrar quem busca emagrecer ou melhorar a saúde, como também criar uma relação confusa e ansiosa com a comida.
Por isso, o acompanhamento nutricional individualizado é fundamental. Um nutricionista qualificado ajuda com orientações práticas, respeitando as necessidades, a rotina e a história de cada pessoa. Mais do que seguir regras rígidas ou dietas da moda, comer bem envolve conhecimento e apoio profissional para construir hábitos sustentáveis a longo prazo.
Veja abaixo quais são os principais mitos envolvendo alimentação que chegam aos consultórios de nutricionistas.
1- ‘Leite é inflamatório’ A crença de que o leite é um alimento inflamatório se espalhou nos últimos anos, especialmente nas redes sociais, mas não encontra respaldo na ciência. A nutricionista Lara Natacci, diretora clínica da Dietnet e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), esclarece que, ao contrário do que se imagina, o leite tem efeito anti-inflamatório comprovado em estudos recentes – exceto em casos específicos, como alergia à proteína do leite de vaca, condição rara que pode, de fato, provocar reações inflamatórias no organismo.
Outra situação que leva as pessoas a acreditarem que o leite inflama é a intolerância à lactose, mas, segundo Lara, ela não está relacionada à inflamação sistêmica. Nesse caso, há deficiência de uma enzima que digere a lactose, o açúcar natural da bebida. Por causa disso, ocorrem desconfortos intestinais como gases, inchaço e diarreia.
A nutricionista ressalta que a generalização de que o leite faz mal à saúde não apenas desinforma, como também pode levar à exclusão desnecessária de um alimento rico em nutrientes importantes, como cálcio, proteínas e vitaminas do complexo B.
2- ‘Glúten engorda e inflama’
A ideia de que o glúten engorda ou causa inflamação tornou-se um dos mitos mais comuns sobre alimentação. No entanto, essa crença também não encontra respaldo científico. O glúten é uma proteína naturalmente presente no trigo, na cevada e no centeio, e seu consumo é seguro para a maioria das pessoas.
Quem realmente precisa evitar o glúten são os portadores de doença celíaca, uma condição autoimune em que essa proteína provoca inflamação no intestino, além de indivíduos com alergia ao trigo ou sensibilidade ao glúten, que podem apresentar desconfortos gastrointestinais. Fora esses casos específicos, não há evidências de que o glúten cause inflamação generalizada ou esteja associado ao ganho de peso.
“Para quem não tem doença celíaca ou sensibilidade diagnosticada pelo médico, não existe nenhum potencial inflamatório do glúten”, afirma Lara. A nutricionista Tarcila Campos, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, reforça: “Esse é um mito comum. Fora os casos específicos, o glúten não causa prejuízo à saúde.”
O problema, segundo Tarcila, é que ao excluir o glúten sem necessidade, a pessoa pode reduzir o consumo de alimentos ricos em fibras e vitaminas do complexo B, nutrientes presentes em cereais como trigo. Isso pode levar a uma alimentação menos variada e nutricionalmente empobrecida.
Como explica Lara, “o ganho de peso está muito mais relacionado ao excesso calórico e ao consumo exagerado de alimentos ricos em açúcar e gordura do que à presença do glúten em si. Não há razão para cortá-lo da dieta sem diagnóstico médico. Manter uma alimentação equilibrada e variada é sempre a melhor escolha”, afirma.
3- ‘Para emagrecer é preciso passar fome’
Outro mito bastante difundido quando se trata de perda de peso. Segundo a nutricionista Desire Coelho, colunista do Estadão, é muito comum que algumas pessoas cheguem ao consultório achando que precisam se privar da comida para alcançar resultados, quando, na verdade, a fome é um sinal essencial de que o corpo precisa de nutrientes.
“Emagrecer comendo é totalmente possível, desde que a alimentação seja equilibrada e adaptada à rotina da pessoa”, informa.
Ela explica que o corpo possui diferentes apetites – por proteínas, fibras, micronutrientes – e, quando não são supridos, o organismo intensifica a fome como uma forma de compensação. Por isso, acrescenta a nutricionista, dietas monótonas, muito restritivas e pobres em variedade podem, paradoxalmente, levar ao ganho de peso, justamente porque o corpo continua “procurando” os nutrientes ausentes.
Além disso, passar fome ativa mecanismos compensatórios que, com o tempo, dificultam ainda mais o emagrecimento. A chave está em identificar alimentos que proporcionam saciedade, como os ricos em fibras e proteínas, manter uma boa hidratação e respeitar as necessidades individuais. O emagrecimento saudável vem do equilíbrio, e não da privação.
4- ‘Carboidrato é inimigo’
Por muito tempo, os carboidratos carregaram a fama de inimigos das dietas, especialmente em estratégias voltadas ao emagrecimento. No entanto, a ciência nutricional mostra que essa má reputação é infundada. De acordo com Lara, o nutriente é fonte essencial de energia, principalmente para o cérebro. “O carboidrato precisa ser consumido na quantidade adequada para a saúde do indivíduo”, observa.
Eliminar completamente os carboidratos da alimentação pode causar sintomas como falta de energia, fadiga e dificuldade de concentração. Ou seja, o problema não está no nutriente em si, mas no consumo desequilibrado.
Outro ponto importante diz respeito ao tipo escolhido. Os especialistas indicam priorizar os chamados carboidratos complexos, representados por alimentos como cereais integrais, frutas, legumes, verduras e leguminosas, por exemplo. É que eles concentram fibras e possuem baixo índice glicêmico, ou seja, favorecem a liberação gradual da glicose no sangue. O alto teor de fibras ainda ajuda na manutenção dos bons níveis de colesterol. Também apresentam vitaminas, minerais e compostos bioativos benéficos.
Já os carbodiratos simples, encontrados em bebidas açucaradas, doces e muitos itens ultraprocessados, tendem a causar flutuações rápidas da glicose no sangue e levar a desequilíbrios metabólicos.
A nutricionista Tarcila Campos, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, reforça que dietas com menor teor de carboidratos podem funcionar para algumas pessoas, mas não são a única estratégia eficaz para perda de peso. “O mais importante é o equilíbrio calórico, a qualidade dos alimentos e a adesão ao plano alimentar individualizado”, ressalta.
5- ‘Bebida destilada não engorda’
A ideia de que bebidas destiladas, como vodca, gim ou uísque, não engordam é balela. Embora essas opções tenham menos carboidratos do que uma cerveja ou caipirinha com açúcar, isso não significa que sejam isentas de calorias, muito pelo contrário.
“É verdade que bebidas destiladas têm menos carboidratos, mas elas ainda são calóricas. O álcool tem 7 kcal por grama”, descreve Tarcila. Além disso, o consumo de álcool pode aumentar o apetite, dificultar o controle alimentar e impactar negativamente o metabolismo e a saúde como um todo.
Outro ponto importante levantado pela especialista é que não existe bebida alcoólica ou dosagem que traga benefícios à saúde. Ou seja, nenhum tipo de álcool deve ser considerado inofensivo, mesmo em pequenas quantidades. Para Tarcila, “na nutrição, o contexto importa, e personalizar a orientação faz toda a diferença”.
6- ‘Dietas restritivas sempre funcionam’
A ideia de que fazer dieta é sempre eficaz para emagrecer ainda é amplamente difundida, mas está longe de refletir a realidade da maioria das pessoas. Desire alerta que um dos maiores mitos é acreditar que, se alguém não consegue emagrecer ou manter o peso com uma dieta, o problema está na falta de força de vontade.
“A gente vive numa era em que as pessoas acham que fazer dieta é a solução para perda de peso. E, sim, há indivíduos que conseguem manter o peso perdido depois, mas é uma minoria”, observa. “Muitos estudos mostram que, entre um a cinco anos após o início da dieta, apenas 10% a 20% das pessoas conseguem sustentar o peso perdido, ou seja, de 80% a 90% recuperam tudo, e muitas ainda ganham mais”, adiciona.
Se fosse para considerar um medicamento com esse nível de eficácia, provavelmente ele nem seria indicado. Mesmo assim, o discurso em torno das dietas continua forte, alimentado por redes sociais que exaltam casos de sucesso isolados e os transformam em referência.
Desire também destaca que o peso corporal é fortemente influenciado pela genética, com o IMC (Índice de Massa Corporal) sendo determinado de 60% a 80% por fatores genéticos. Isso mostra que emagrecimento vai muito além de “força de vontade” e que estratégias sustentáveis precisam respeitar a biologia e a individualidade de cada pessoa.
7- ‘Sucos detox limpam o organismo’
Muito populares nas redes sociais e em dietas da moda, os chamados sucos detox são vendidos como soluções rápidas para “limpar o organismo”. Mas, ao contrário do que prometem, nenhum alimento tem poder de desintoxicação. Segundo Lara, quem realmente faz esse trabalho é o próprio organismo, especialmente o fígado, além dos rins, intestino e até a pele. “Não tem nenhum alimento que tenha esse poder mágico detox”, afirma.
Isso não significa que os sucos à base de vegetais não tenham seu valor – eles podem ser fontes importantes de vitaminas, minerais e antioxidantes. Mas não corrigem excessos. O que realmente contribui para um organismo saudável, segundo a especialista, é uma alimentação equilibrada, rica em frutas, verduras, legumes e muita água.
8- ‘Todo alimento industrializado é ruim’
Essa crença é comum, mas nem sempre corresponde à realidade. O simples fato de um alimento passar por um processo industrial não o torna automaticamente ruim ou sem valor nutricional.
Há vários alimentos industrializados que oferecem substâncias importantes para o corpo, além de garantirem segurança alimentar, acessibilidade e praticidade para a população. Iogurtes, vegetais congelados, leguminosas enlatadas, pães e cereais integrais, por exemplo, podem fazer parte de uma rotina saudável.
O segredo, segundo Lara, está em avaliar a qualidade do alimento, sua composição, ingredientes e função dentro de uma dieta equilibrada. “A melhor escolha depende do contexto, da quantidade, da frequência de consumo, das necessidades individuais e da leitura atenta dos rótulos”, pontua.
9- ‘Comer de três em três horas acelera o metabolismo’
Durante anos, esse hábito foi promovido como uma estratégia para ajudar no emagrecimento. No entanto, segundo a nutricionista Marcela Kotait, coordenadora do ambulatório de anorexia nervosa do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), essa ideia não tem base científica.
Ela explica que seguir um cronograma rígido de alimentação pode, inclusive, ser prejudicial: “O que a gente sabe, por outro lado, é que esse hábito de comer a cada três horas numa tentativa pré-definida, com a intenção de emagrecer, faz com que o indivíduo se desconecte dos sinais internos de fome e saciedade.”
Além disso, Marcela reforça que não existe comprovação de que o simples ato de comer em intervalos curtos acelere o metabolismo. “Esse número meio mágico, de três em três horas, não se sustenta. Quando se pensa em emagrecimento ou manutenção do peso, o que importa mesmo é a ingestão calórica total ao longo do dia, e não como ela é fracionada”, conclui.
10- ‘Água com limão em jejum emagrece’
Segundo Marcela, esse é mais um conselho sem sentido. “Não existe comprovação de que a água com limão em jejum ajude a perder peso. Isso faz parte de uma série de modismos que tentam oferecer soluções mágicas, muitas vezes ligadas à ideia de alterar o pH do estômago ou do corpo”, explica a especialista.
Marcela alerta que esse tipo de crença se baseia em pseudociência e pode desviar o foco do que realmente importa para o emagrecimento: alimentação equilibrada, consciência corporal e hábitos sustentáveis.
11- ‘Comer gordura engorda’
Marcela aponta que essa ideia é simplista e equivocada. “Na verdade, tudo engorda e nada engorda. O grande ponto é que, quando se come em excesso, tudo pode se transformar em depósito de energia que o nosso corpo vai armazenar em forma de gordura. E o que leva ao ganho de peso é o excesso, independentemente do nutriente”, afirma.
Marcela explica que tanto gorduras como proteínas e carboidratos podem ser convertidos em gordura corporal.
Segundo ela, o mais importante é considerar a quantidade, a frequência e o comportamento alimentar como um todo. “É mais relevante entender como o indivíduo se relaciona com a comida do que demonizar um nutriente específico”, resume.
12- ‘Ovo aumenta o colesterol’
Essa associação já foi desmentida há tempos pela ciência. “O ovo é o grande exemplo do que uma informação mal embasada pode causar: terrorismo nutricional”, destaca Marcela.
De acordo com a nutricionista, o ovo, assim como outros itens demonizados ao longo do tempo, como a manteiga, foi vítima de modismos alimentares. “São alimentos ricos em determinados nutrientes, mas isso precisa ser analisado com equilíbrio, considerando quantidade e frequência de consumo.”
Ela alerta também para o problema de reduzir a comida aos seus nutrientes, um comportamento comum no discurso atual sobre alimentação. “As pessoas não comem mais pão, comem carboidrato; não comem mais carne, comem proteína. Essa codificação afasta o indivíduo de uma relação saudável com a comida”, alerta.
Para a especialista, uma alimentação verdadeiramente equilibrada envolve escuta do corpo, respeito à fome e à saciedade, e escolhas conscientes. “Comer bem não é cortar nutrientes, é construir um hábito alimentar pacífico e sustentável a longo prazo”, conclui.
Reportagem de Fernanda Bassette no Estadão
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domingo, 17 de agosto de 2025
Adultização de crianças é responsabilidade dos pais
Fizemos uma experiência nas redes sociais: como são os algoritmos e a ‘adultização’ das crianças?
Reportagem criou contas para ver direcionamento de conteúdos e encontrou manifestações de pedófilos; Instagram e TikTok dizem ter políticas de segurança para menores
A denúncia do youtuber Felca sobre a “adultização” de crianças nas redes sociais revelou o perigo por trás da fórmula secreta de distribuição de conteúdos pelo algoritmo das plataformas. Entre os casos extremos, está o do influenciador Hytalo Santos, preso esta semana sob acusação de lucrar com vídeos de exploração sexual infantil. Mas também há conteúdos aparentemente inocentes de crianças, muitas vezes publicados por mães e pais, que se tornam ponto de encontro de pedófilos e outros criminosos.
Para entender mais sobre esse mecanismo, a reportagem criou três perfis fictícios no Instagram e no TikTok. As contas e as interações foram observadas por quatro dias, em períodos de 30 minutos ou mais.
Pesquisadores no mundo todo destacam o risco do design das redes, que entregam conteúdos de olho na fidelização do usuário. Há estudos que mostram mais engajamento de vídeos com conteúdos extremistas, polêmicos e que tenham crianças.
Entre as consequências para a sociedade, estão a viralização de conteúdos com menores de idade, o acesso a materiais impróprios ou criminosos, danos à saúde mental e o “efeito bolha”, que limita o acesso a pontos de vista diferentes.
Procurados, a Meta, proprietária do Instagram, e o TikTok, não detalham os critérios dos algoritmos, dizem ter políticas rígidas para segurança de usuários menores e que removem conteúdos impróprios (leia mais abaixo). Já Hytalo Santos nega as acusações de exploração sexual infantil.
O experimento feito pelo Estadão envolveu criar contas com os seguintes perfis:
Perfil 1 - Homem adulto, de 55 anos, que no período observado só curtiu conteúdos que tivessem crianças, clicou para assistir e demonstrou interesse nesses vídeos, seguiu influenciadores mirins e ignorou qualquer outro tipo de material
Perfil 2 - Foi dividido em dois, um perfil de um adolescente de 15 anos e outro de um adulto, de 55 anos, ambos com interesse em futebol. Assim como no anterior, só eram curtidos, seguidos e assistidos conteúdos sobre esse esporte.
Perfil 3 - Também se divide em dois, um perfil de uma adolescente de 13 anos e outro de uma mulher adulta. O interesse era o mesmo: beleza, dietas, bem-estar.
O que vimos nas redes
Nos primeiros minutos de interação no TikTok, o algoritmo entendeu que o perfil 1 se interessava apenas por vídeos de crianças e adolescentes, restringindo o conteúdo a isso. Com cerca de 10 minutos na plataforma, a reportagem já encontrou nos comentários desses vídeos diversas mensagens que, segundo especialistas, estão relacionadas à pedofilia.
Elas aparecem em códigos como: "cambio" (troca, em espanhol) ou "quien cambio" (quer trocar?), "exchange" (troca, em inglês) e ainda "CP" (child porn, pornografia infantil, em inglês). A reportagem também encontrou o termo “trade” (troca, em inglês), mencionado pela denúncia de Felca.
O Estadão mostrou as mensagens a duas especialistas, que confirmaram que essas interações são pedidos de troca de materiais (fotos ou vídeos) com conteúdo de abuso sexual infantil.
Segundo Michele Prado, pesquisadora do Núcleo de Prevenção à Violência Extrema do Ministério Público do Rio Grande do Sul, os criminosos usam o espaço para se conhecer e, então, trocar ou vender materiais de pedofilia em outros ambientes virtuais
O Estadão encaminhou ao TikTok os conteúdos encontrados e a empresa os removeu da plataforma horas depois. Disse ainda ser “prioridade máxima” a segurança dos jovens.
“Se tivermos conhecimento de que um titular de conta tem violação grave ou cometeu infração sexual contra uma pessoa jovem, baniremos a conta e quaisquer outras contas dessa pessoa”, diz a política da plataforma
As mensagens relacionadas à pedofilia foram vistas em todos os dias e horários em que a reportagem acessou o perfil, sem dificuldade. Aparecem em vídeos caseiros e nada erotizados, de crianças em um barco, nadando em piscina, fazendo ginástica. E também em outros de meninas dançando de forma sensualizada.
Em todos os casos, eram crianças pequenas, que aparentam menos de 10 anos. Os vídeos estão em perfis das próprias crianças, de mães ou pais, no Brasil e no exterior.
Em geral, são vídeos que podem ser considerados como conteúdo viralizado porque têm mais de 100 mil curtidas e centenas ou milhares de comentários — a maioria, de elogios à aparência das meninas, alguns com conotação sexual.
‘Acham graça de ver criança dançando música inapropriada’
“Há banalização na cultura de achar graça em ver criança dançando música inapropriada. Mas é nossa responsabilidade de adulto dizer que ela não pode fazer isso e ainda não expor esse tipo de conteúdo”, diz a psicóloga Laís Flores, autora de um guia para escolas de proteção à criança e ao adolescente.
Segundo pesquisa do Pew Research Center, organização americana que estuda mídia e tecnologia, vídeos com crianças têm três vezes mais visualizações do que outros conteúdos. Canais no YouTube que produzem ao menos um vídeo com criança têm média de 1,8 milhão de inscritos, ante 1,2 milhão naqueles que não produzem. Esse volume maior facilita a monetização e o interesse das marcas em fazer anúncios no perfil.
Mesmo se não são vídeos adultizados ou com interesse publicitário, a psicóloga defende cuidado. “Pais, de modo geral, consideram seus filhos os mais bonitos e inteligentes. Por isso, muitas vezes, querem que todos vejam, mas não se dimensiona o risco.”
Ela e outros especialistas alertam que os pais precisam considerar que a criança não tem maturidade para decidir sobre postagens e isso pode afetar seu desenvolvimento e sua saúde mental no futuro.
Mas há também a preocupação crescente de não só responsabilizar as famílias e deixar claro que muitos dos problemas vêm do design das redes — de como os conteúdos são distribuídos pelos algoritmos.
O projeto de lei 2628/2022 prevê a proteção da criança e do adolescente nas redes, com obrigação das big techs de moderarem conteúdos com crianças e para crianças. Impede ainda a rolagem infinita, contas de menores de idade e exige ferramentas de supervisão parental mais claras. Depois da aprovação no Senado, a previsão é de que seja votado nesta semana na Câmara em regime de urgência.
“Claro que as famílias têm responsabilidades de proteger suas crianças, mas a população é muito desigual, falta literacia digital para entender o problema”, diz a coordenadora de programas do Instituto Alana, Maria Mello, que apoia o projeto de lei.
Depois da denúncia de Felca, mais de 60 projetos foram protocolados na Câmara sobre o assunto e o governo federal também prometeu uma lei sobre regulação de redes, que incluiria mecanismos de proteção de menores.
Os perfis dos usuários que enviaram mensagens relacionadas à pedofilia no monitoramento da reportagem, na maioria das vezes, não tinham nome definido e eram contas privadas. O Estadão também denunciou as contas por meio do canal da plataforma.
Em alguns vídeos, já foi possível notar usuários marcando o perfil de Felca ao se deparar com as mensagens de possíveis pedófilos, como uma forma de denúncia. Algumas das mensagens tinham ainda a palavra “Telegram”, o que pode indicar que o usuário tem canal na plataforma Telegram de pedofilia, segundo especialistas.
Procurada, a empresa diz estar comprometida “em impedir que material de abuso sexual infantil apareça em sua plataforma e aplica rigorosa política de tolerância zero”. Informou ainda que já removeu mais de 400 mil canais suspeitos.
No Instagram, a reportagem notou que o algoritmo mostrou logo nos primeiros minutos só conteúdo com crianças, direcionando tanto o feed quanto os reels apenas para este tema. Não encontrou, porém, comentários relacionados à pedofilia.
Na busca por dieta, canais de ajuda
No perfil 3, que buscava conteúdos de beleza e dieta, os algoritmos logo no primeiro dia entenderam o interesse e restringiram os conteúdos ao tema no Instagram e no TikTok. Os vídeos que apareceram para as contas da adolescente e da adulta foram similares.
Quando o perfil adulto pesquisou “Ozempic” (remédio usado para emagrecer) no Instagram, a plataforma indicou um canal de ajuda, que contém mensagens sobre resistir à pressão do autojulgamento e a valorizar o próprio corpo.
No TikTok, ajuda semelhante foi oferecida ao se pesquisar “anorexia”. A mensagem dizia: “você não está sozinho” e falava que era importante conversar sobre imagem corporal, alimentação e exercícios.
No entanto, na busca com a palavra “maquiagem” no perfil adolescente, o primeiro vídeo sugerido era de uma criança ensinando como passar o contorno no rosto para parecer mais magra.
Futebol e machismo
O perfil 2 foi rapidamente identificado no TikTok e no Instagram como um amante do futebol nas interações do primeiro dia. Logo após a criação da conta, a reportagem passou a seguir perfis ligados a esporte e a curtir conteúdos sobre o tema.
No perfil criado em uma conta específica para adolescentes (no Instagram) ou apenas informando no cadastro a idade de 15 anos (no TikTok), no primeiro dia viam-se apenas vídeos de passes e gols. Mas, a partir do segundo dia de monitoramento, em ambos surgiram conteúdos machistas, homofóbicos ou de mulheres sexualizadas.
Um deles mencionava os “sons que somente homens de verdade conhecem”, como o do churrasco e da cerveja abrindo. Outro dizia que as mulheres só precisam “não comer desesperadamente” para serem atraentes.
Também apareceram diversos vídeos de mulheres em poses ou danças erotizadas. Esses temas seguiram sugeridos mesmo sem a reportagem curtir ou demonstrar interesse nesse conteúdo.
O perfil adulto recebeu na primeira meia hora de monitoramento do TikTok muito futebol, mas também vídeos de sexualização de mulheres e alguns feitos com inteligência artificial de violência contra animais. No segundo dia, havia conteúdos sobre sexo.
O TikTok informa que suas políticas “não permitem que menores acessem uma série de conteúdos, incluindo aqueles que contenham beijos íntimos, enquadramento ou comportamento sexualizado” e ainda com “exposição significativa do corpo ou seminudez” de jovens.
A Meta afirma que as contas para adolescente “têm, por padrão, as configurações mais restritivas” com “controle de conteúdo sensível” nas abas Explorar e Reels. E diz recomendar conteúdos “relevantes e valiosas” para cada usuário e evitar “recomendar conteúdo que possa ser inadequado para visualizadores mais jovens”.
No início do ano, Mark Zuckerberg, fundador da Meta, anunciou que diminuiria as equipes de moderação de conteúdo da empresa, deixando a cargo dos usuários a avaliação de eventuais problemas.
Como funcionam os algoritmos?
Especialista em monitoramento de redes sociais, Pedro Barciela diz que as plataformas usam os dados que o usuário fornece por curtidas, comentários e tempo que assiste a um vídeo, para criar “personas”. É como se as pessoas fossem todas divididas em caixinhas pelos seus interesses, comportamentos e desejos de consumo.
“O algoritmo conclui que usuários que veem muito futebol, em geral, podem ter comportamento mais machista ou homofóbico”, diz. Outras pesquisas já mostraram resultados semelhantes ao monitorar o interesse pelo esporte.
Assim, a plataforma passa a entregar esse conteúdo que sabe que o usuário gosta em busca de fidelização, para mantê-lo mais tempo na rede. Além do risco do vício pela liberação constante de dopamina no cérebro, o neurotransmissor ligado a sensações de prazer, há interesse comercial.
“A venda de anúncios das plataformas para empresas será mais eficiente porque ela sabe exatamente o interesse de cada usuário”, afirma Barciela.
“Quando se coloca a criança ou o adolescente nesse lugar, trilha um caminho pra ele. Se ele gosta mais de Matemática e menos de Português, aparece conteúdo de Matemática apenas. E começa a moldar a criança numa idade muito tenra para o que será nos próximos 20 anos”, afirma Catarina Fugulin, advogada e uma das representantes do Movimento Desconecta.
O PL 2628/2022, que a entidade apoia, proíbe que as plataformas reúnam dados de interesses de menores de idade e os use com fins publicitários.
O professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) João Finamor cita diferenças entre as plataformas nos critérios para relevância do conteúdo. O TikTok, de 2016, já foi construído com machine learning (aprendizado de máquina) e considera tempo de tela, comentários, compartilhamento e curtidas para definir que um vídeo é engajador. “Não importa a quantidade de seguidores. Pode ter só dois e um vídeo com 100 mil visualizações.”
Já o Instagram surgiu em 2010 como rede social, em que os relacionamentos eram importantes. Aos poucos, se tornou uma plataforma de vídeos, mas a quantidade de seguidores ainda é relevante para o conteúdo ganhar engajamento.
“É um design para você ficar preso”, afirma o professor, e completa: “tudo que é polarizado gera entrega maior”. “A misoginia, por exemplo. Tem pessoas que param pra ver porque concordam e os outros vão lá criticar. O algoritmo não separa positivo e negativo: tudo é engajamento.”
Reportagem de Renata Cafardo no Estadão. Colaboraram Beatriz Herminio, Pedro Duarte, Mariana Cury e Isabela Moya
https://www.estadao.com.br/educacao/fizemos-uma-experiencia-nas-redes-sociais-como-sao-os-algoritmos-e-a-adultizacao-das-criancas/
Reportagem criou contas para ver direcionamento de conteúdos e encontrou manifestações de pedófilos; Instagram e TikTok dizem ter políticas de segurança para menores
A denúncia do youtuber Felca sobre a “adultização” de crianças nas redes sociais revelou o perigo por trás da fórmula secreta de distribuição de conteúdos pelo algoritmo das plataformas. Entre os casos extremos, está o do influenciador Hytalo Santos, preso esta semana sob acusação de lucrar com vídeos de exploração sexual infantil. Mas também há conteúdos aparentemente inocentes de crianças, muitas vezes publicados por mães e pais, que se tornam ponto de encontro de pedófilos e outros criminosos.
Para entender mais sobre esse mecanismo, a reportagem criou três perfis fictícios no Instagram e no TikTok. As contas e as interações foram observadas por quatro dias, em períodos de 30 minutos ou mais.
Pesquisadores no mundo todo destacam o risco do design das redes, que entregam conteúdos de olho na fidelização do usuário. Há estudos que mostram mais engajamento de vídeos com conteúdos extremistas, polêmicos e que tenham crianças.
Entre as consequências para a sociedade, estão a viralização de conteúdos com menores de idade, o acesso a materiais impróprios ou criminosos, danos à saúde mental e o “efeito bolha”, que limita o acesso a pontos de vista diferentes.
Procurados, a Meta, proprietária do Instagram, e o TikTok, não detalham os critérios dos algoritmos, dizem ter políticas rígidas para segurança de usuários menores e que removem conteúdos impróprios (leia mais abaixo). Já Hytalo Santos nega as acusações de exploração sexual infantil.
O experimento feito pelo Estadão envolveu criar contas com os seguintes perfis:
Perfil 1 - Homem adulto, de 55 anos, que no período observado só curtiu conteúdos que tivessem crianças, clicou para assistir e demonstrou interesse nesses vídeos, seguiu influenciadores mirins e ignorou qualquer outro tipo de material
Perfil 2 - Foi dividido em dois, um perfil de um adolescente de 15 anos e outro de um adulto, de 55 anos, ambos com interesse em futebol. Assim como no anterior, só eram curtidos, seguidos e assistidos conteúdos sobre esse esporte.
Perfil 3 - Também se divide em dois, um perfil de uma adolescente de 13 anos e outro de uma mulher adulta. O interesse era o mesmo: beleza, dietas, bem-estar.
O que vimos nas redes
Nos primeiros minutos de interação no TikTok, o algoritmo entendeu que o perfil 1 se interessava apenas por vídeos de crianças e adolescentes, restringindo o conteúdo a isso. Com cerca de 10 minutos na plataforma, a reportagem já encontrou nos comentários desses vídeos diversas mensagens que, segundo especialistas, estão relacionadas à pedofilia.
Elas aparecem em códigos como: "cambio" (troca, em espanhol) ou "quien cambio" (quer trocar?), "exchange" (troca, em inglês) e ainda "CP" (child porn, pornografia infantil, em inglês). A reportagem também encontrou o termo “trade” (troca, em inglês), mencionado pela denúncia de Felca.
O Estadão mostrou as mensagens a duas especialistas, que confirmaram que essas interações são pedidos de troca de materiais (fotos ou vídeos) com conteúdo de abuso sexual infantil.
Segundo Michele Prado, pesquisadora do Núcleo de Prevenção à Violência Extrema do Ministério Público do Rio Grande do Sul, os criminosos usam o espaço para se conhecer e, então, trocar ou vender materiais de pedofilia em outros ambientes virtuais
O Estadão encaminhou ao TikTok os conteúdos encontrados e a empresa os removeu da plataforma horas depois. Disse ainda ser “prioridade máxima” a segurança dos jovens.
“Se tivermos conhecimento de que um titular de conta tem violação grave ou cometeu infração sexual contra uma pessoa jovem, baniremos a conta e quaisquer outras contas dessa pessoa”, diz a política da plataforma
As mensagens relacionadas à pedofilia foram vistas em todos os dias e horários em que a reportagem acessou o perfil, sem dificuldade. Aparecem em vídeos caseiros e nada erotizados, de crianças em um barco, nadando em piscina, fazendo ginástica. E também em outros de meninas dançando de forma sensualizada.
Em todos os casos, eram crianças pequenas, que aparentam menos de 10 anos. Os vídeos estão em perfis das próprias crianças, de mães ou pais, no Brasil e no exterior.
Em geral, são vídeos que podem ser considerados como conteúdo viralizado porque têm mais de 100 mil curtidas e centenas ou milhares de comentários — a maioria, de elogios à aparência das meninas, alguns com conotação sexual.
‘Acham graça de ver criança dançando música inapropriada’
“Há banalização na cultura de achar graça em ver criança dançando música inapropriada. Mas é nossa responsabilidade de adulto dizer que ela não pode fazer isso e ainda não expor esse tipo de conteúdo”, diz a psicóloga Laís Flores, autora de um guia para escolas de proteção à criança e ao adolescente.
Segundo pesquisa do Pew Research Center, organização americana que estuda mídia e tecnologia, vídeos com crianças têm três vezes mais visualizações do que outros conteúdos. Canais no YouTube que produzem ao menos um vídeo com criança têm média de 1,8 milhão de inscritos, ante 1,2 milhão naqueles que não produzem. Esse volume maior facilita a monetização e o interesse das marcas em fazer anúncios no perfil.
Mesmo se não são vídeos adultizados ou com interesse publicitário, a psicóloga defende cuidado. “Pais, de modo geral, consideram seus filhos os mais bonitos e inteligentes. Por isso, muitas vezes, querem que todos vejam, mas não se dimensiona o risco.”
Ela e outros especialistas alertam que os pais precisam considerar que a criança não tem maturidade para decidir sobre postagens e isso pode afetar seu desenvolvimento e sua saúde mental no futuro.
Mas há também a preocupação crescente de não só responsabilizar as famílias e deixar claro que muitos dos problemas vêm do design das redes — de como os conteúdos são distribuídos pelos algoritmos.
O projeto de lei 2628/2022 prevê a proteção da criança e do adolescente nas redes, com obrigação das big techs de moderarem conteúdos com crianças e para crianças. Impede ainda a rolagem infinita, contas de menores de idade e exige ferramentas de supervisão parental mais claras. Depois da aprovação no Senado, a previsão é de que seja votado nesta semana na Câmara em regime de urgência.
“Claro que as famílias têm responsabilidades de proteger suas crianças, mas a população é muito desigual, falta literacia digital para entender o problema”, diz a coordenadora de programas do Instituto Alana, Maria Mello, que apoia o projeto de lei.
Depois da denúncia de Felca, mais de 60 projetos foram protocolados na Câmara sobre o assunto e o governo federal também prometeu uma lei sobre regulação de redes, que incluiria mecanismos de proteção de menores.
Os perfis dos usuários que enviaram mensagens relacionadas à pedofilia no monitoramento da reportagem, na maioria das vezes, não tinham nome definido e eram contas privadas. O Estadão também denunciou as contas por meio do canal da plataforma.
Em alguns vídeos, já foi possível notar usuários marcando o perfil de Felca ao se deparar com as mensagens de possíveis pedófilos, como uma forma de denúncia. Algumas das mensagens tinham ainda a palavra “Telegram”, o que pode indicar que o usuário tem canal na plataforma Telegram de pedofilia, segundo especialistas.
Procurada, a empresa diz estar comprometida “em impedir que material de abuso sexual infantil apareça em sua plataforma e aplica rigorosa política de tolerância zero”. Informou ainda que já removeu mais de 400 mil canais suspeitos.
No Instagram, a reportagem notou que o algoritmo mostrou logo nos primeiros minutos só conteúdo com crianças, direcionando tanto o feed quanto os reels apenas para este tema. Não encontrou, porém, comentários relacionados à pedofilia.
Na busca por dieta, canais de ajuda
No perfil 3, que buscava conteúdos de beleza e dieta, os algoritmos logo no primeiro dia entenderam o interesse e restringiram os conteúdos ao tema no Instagram e no TikTok. Os vídeos que apareceram para as contas da adolescente e da adulta foram similares.
Quando o perfil adulto pesquisou “Ozempic” (remédio usado para emagrecer) no Instagram, a plataforma indicou um canal de ajuda, que contém mensagens sobre resistir à pressão do autojulgamento e a valorizar o próprio corpo.
No TikTok, ajuda semelhante foi oferecida ao se pesquisar “anorexia”. A mensagem dizia: “você não está sozinho” e falava que era importante conversar sobre imagem corporal, alimentação e exercícios.
No entanto, na busca com a palavra “maquiagem” no perfil adolescente, o primeiro vídeo sugerido era de uma criança ensinando como passar o contorno no rosto para parecer mais magra.
Futebol e machismo
O perfil 2 foi rapidamente identificado no TikTok e no Instagram como um amante do futebol nas interações do primeiro dia. Logo após a criação da conta, a reportagem passou a seguir perfis ligados a esporte e a curtir conteúdos sobre o tema.
No perfil criado em uma conta específica para adolescentes (no Instagram) ou apenas informando no cadastro a idade de 15 anos (no TikTok), no primeiro dia viam-se apenas vídeos de passes e gols. Mas, a partir do segundo dia de monitoramento, em ambos surgiram conteúdos machistas, homofóbicos ou de mulheres sexualizadas.
Um deles mencionava os “sons que somente homens de verdade conhecem”, como o do churrasco e da cerveja abrindo. Outro dizia que as mulheres só precisam “não comer desesperadamente” para serem atraentes.
Também apareceram diversos vídeos de mulheres em poses ou danças erotizadas. Esses temas seguiram sugeridos mesmo sem a reportagem curtir ou demonstrar interesse nesse conteúdo.
O perfil adulto recebeu na primeira meia hora de monitoramento do TikTok muito futebol, mas também vídeos de sexualização de mulheres e alguns feitos com inteligência artificial de violência contra animais. No segundo dia, havia conteúdos sobre sexo.
O TikTok informa que suas políticas “não permitem que menores acessem uma série de conteúdos, incluindo aqueles que contenham beijos íntimos, enquadramento ou comportamento sexualizado” e ainda com “exposição significativa do corpo ou seminudez” de jovens.
A Meta afirma que as contas para adolescente “têm, por padrão, as configurações mais restritivas” com “controle de conteúdo sensível” nas abas Explorar e Reels. E diz recomendar conteúdos “relevantes e valiosas” para cada usuário e evitar “recomendar conteúdo que possa ser inadequado para visualizadores mais jovens”.
No início do ano, Mark Zuckerberg, fundador da Meta, anunciou que diminuiria as equipes de moderação de conteúdo da empresa, deixando a cargo dos usuários a avaliação de eventuais problemas.
Como funcionam os algoritmos?
Especialista em monitoramento de redes sociais, Pedro Barciela diz que as plataformas usam os dados que o usuário fornece por curtidas, comentários e tempo que assiste a um vídeo, para criar “personas”. É como se as pessoas fossem todas divididas em caixinhas pelos seus interesses, comportamentos e desejos de consumo.
“O algoritmo conclui que usuários que veem muito futebol, em geral, podem ter comportamento mais machista ou homofóbico”, diz. Outras pesquisas já mostraram resultados semelhantes ao monitorar o interesse pelo esporte.
Assim, a plataforma passa a entregar esse conteúdo que sabe que o usuário gosta em busca de fidelização, para mantê-lo mais tempo na rede. Além do risco do vício pela liberação constante de dopamina no cérebro, o neurotransmissor ligado a sensações de prazer, há interesse comercial.
“A venda de anúncios das plataformas para empresas será mais eficiente porque ela sabe exatamente o interesse de cada usuário”, afirma Barciela.
“Quando se coloca a criança ou o adolescente nesse lugar, trilha um caminho pra ele. Se ele gosta mais de Matemática e menos de Português, aparece conteúdo de Matemática apenas. E começa a moldar a criança numa idade muito tenra para o que será nos próximos 20 anos”, afirma Catarina Fugulin, advogada e uma das representantes do Movimento Desconecta.
O PL 2628/2022, que a entidade apoia, proíbe que as plataformas reúnam dados de interesses de menores de idade e os use com fins publicitários.
O professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) João Finamor cita diferenças entre as plataformas nos critérios para relevância do conteúdo. O TikTok, de 2016, já foi construído com machine learning (aprendizado de máquina) e considera tempo de tela, comentários, compartilhamento e curtidas para definir que um vídeo é engajador. “Não importa a quantidade de seguidores. Pode ter só dois e um vídeo com 100 mil visualizações.”
Já o Instagram surgiu em 2010 como rede social, em que os relacionamentos eram importantes. Aos poucos, se tornou uma plataforma de vídeos, mas a quantidade de seguidores ainda é relevante para o conteúdo ganhar engajamento.
“É um design para você ficar preso”, afirma o professor, e completa: “tudo que é polarizado gera entrega maior”. “A misoginia, por exemplo. Tem pessoas que param pra ver porque concordam e os outros vão lá criticar. O algoritmo não separa positivo e negativo: tudo é engajamento.”
Reportagem de Renata Cafardo no Estadão. Colaboraram Beatriz Herminio, Pedro Duarte, Mariana Cury e Isabela Moya
https://www.estadao.com.br/educacao/fizemos-uma-experiencia-nas-redes-sociais-como-sao-os-algoritmos-e-a-adultizacao-das-criancas/
domingo, 10 de agosto de 2025
Vergonha, medo e anonimato digital são travas para investigar violência sexual infantil
ONG recebeu quase 53 mil denúncias em 2024 relacionadas a imagens de abuso e exploração de crianças na internet
Uma das formas mais insidiosas de violência sexual infantil no ambiente virtual é o "grooming", ou aliciamento, quando um criminoso se aproxima da criança ou adolescente online e constrói um relacionamento de confiança.
O objetivo é manipular a vítima para que ela envie fotos ou vídeos íntimos, que posteriormente são usados para chantagem e coação, levando à exploração sexual.
Quem explica o cenário é Eronides Meneses, delegado titular da divisão de crimes cibernéticos da Polícia Civil de Pernambuco. Outra prática criminosa, diz, "envolve a produção, armazenamento, divulgação e compartilhamento de imagens de abuso sexual infantil".
"Embora o ciberbullying possa parecer uma categoria diferente, ele muitas vezes se entrelaça com a violência sexual", explica.
Em 2024, a ONG Safernet, dedicada à promoção e defesa dos direitos humanos na internet, recebeu 52.999 denúncias de crimes relacionados a imagens de abuso e exploração sexual infantil, uma queda de 26% em relação às 71.867 de 2023 —recorde histórico da série iniciada em 2006.
Dados de uma pesquisa recente realizada pelo ChildFund Brasil, organização dedicada à proteção infantil, revelam que a violência sexual online é uma realidade para mais da metade dos adolescentes brasileiros.
O estudo, intitulado "Mapeamento dos Fatores de Vulnerabilidade de Adolescentes Brasileiros na Internet", aponta que 54% dos jovens já foram vítimas de violência sexual na internet, o que representa aproximadamente 9,2 milhões de adolescentes.
O estudo destaca que 94% dos adolescentes não sabem como agir diante de situações de risco online, mesmo já tendo recebido algum tipo de orientação sobre o uso da internet. Essa falta de conhecimento cria um cenário de vulnerabilidade ainda maior para milhões de jovens.
Para o delegado Meneses, um dos principais desafios na investigação é o anonimato digital, que torna difícil o rastreamento de IPs, que funcionam como uma espécie de identificador de dispositivos eletrônicos —a criptografia é comum em aplicativos de mensagens, por exemplo.
"Enfrentamos também o problema do retardo na resposta dos provedores de internet e das aplicações, o que atrasa bastante o andamento das investigações."
Além do volume de dados e da falta de uma perícia especializada, o delegado cita que muitas vítimas ainda não denunciam por medo ou vergonha.
Apesar das dificuldades, sua divisão realiza operações integradas, como a iniciativa Luz na Infância, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que busca proteger crianças e adolescentes de crimes digitais.
Além disso, a delegacia monitora redes de compartilhamento de conteúdo, ajudando a identificar atividades ilícitas. Há também cooperação internacional com organizações como Interpol e Europol, permitindo ações conjuntas e troca de informações globais.
No Recife, a conselheira tutelar Elen Brito diz que a maioria das vítimas de denúncias no ambiente virtual é de meninas.
Por meio das redes sociais ou plataformas de mensagens, elas são atraídas por jovens ou homens que se passam por menores. Esses adultos conseguem obter imagens e vídeos íntimos, posteriormente usados para fazer chantagens e ameaçá-las.
"Geralmente as denúncias chegam pelo Disque 100 ou por instituições de ensino, tendo em vista que alguns casos acontecem dentro da escola. É comum casos entre adolescentes que tiveram algum tipo de relacionamento, mas, quando a menina não quer mais, o garoto ameaça divulgar imagens íntimas, muitas vezes obtidas sem consentimento", diz Elen.
Desde 2018, o Código Penal foi alterado para tipificar o crime de importunação sexual, que inclui divulgar, por qualquer meio, cenas de estupro ou divulgar cena de sexo ou nudez sem a autorização da vítima.
Família, professores e profissionais da saúde mental destacam que um dos desafios na identificação de casos de violência sexual na internet é que, muitas vezes, as mudanças no comportamento das vítimas podem ser interpretadas como parte do processo de desenvolvimento.
Para a psicóloga Priscila Souza, que atua no Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) do Recife, o diálogo precisa virar rotina.
"Muitas vezes os adultos evitam tocar no tema por medo de falar algo errado ou por não saber como iniciar essa conversa. Não há um modelo único ou perfeito, cada família deve encontrar o seu próprio jeito, respeitando o nível de compreensão da criança", afirma Priscila.
A psicóloga alerta que a exposição a conteúdos inadequados na internet pode acarretar prejuízos significativos, como "comportamentos sexualizados, aumento do risco de desenvolver ansiedade, depressão, baixa autoestima e isolamento social."
Apagamento de histórico de navegação, presença de contatos de desconhecidos em redes sociais e uso excessivo da internet, especialmente em horários incomuns, são listados pelo delegado Meneses como sinais de alerta no ambiente digital.
A psicóloga considera importante compreender que a proteção também depende da colaboração ativa da sociedade, especialmente no que diz respeito à formalização de casos.
"As denúncias não servem apenas para investigar casos pontuais. São essenciais para a produção de dados, que subsidiaram o trabalho da Segurança Pública. A partir da análise desses dados, será possível identificar padrões, variáveis que influenciam o aumento dos casos e até prevenir reincidências" diz Priscila.
Esta reportagem da Suellen Barbosa é resultado do curso sobre cobertura jornalística de violência sexual infantil promovido pela Folha e pelo Instituto Liberta em junho de 2025
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/08/vergonha-medo-e-anonimato-digital-sao-travas-para-investigar-violencia-sexual-infantil.shtml
Uma das formas mais insidiosas de violência sexual infantil no ambiente virtual é o "grooming", ou aliciamento, quando um criminoso se aproxima da criança ou adolescente online e constrói um relacionamento de confiança.
O objetivo é manipular a vítima para que ela envie fotos ou vídeos íntimos, que posteriormente são usados para chantagem e coação, levando à exploração sexual.
Quem explica o cenário é Eronides Meneses, delegado titular da divisão de crimes cibernéticos da Polícia Civil de Pernambuco. Outra prática criminosa, diz, "envolve a produção, armazenamento, divulgação e compartilhamento de imagens de abuso sexual infantil".
"Embora o ciberbullying possa parecer uma categoria diferente, ele muitas vezes se entrelaça com a violência sexual", explica.
Em 2024, a ONG Safernet, dedicada à promoção e defesa dos direitos humanos na internet, recebeu 52.999 denúncias de crimes relacionados a imagens de abuso e exploração sexual infantil, uma queda de 26% em relação às 71.867 de 2023 —recorde histórico da série iniciada em 2006.
Dados de uma pesquisa recente realizada pelo ChildFund Brasil, organização dedicada à proteção infantil, revelam que a violência sexual online é uma realidade para mais da metade dos adolescentes brasileiros.
O estudo, intitulado "Mapeamento dos Fatores de Vulnerabilidade de Adolescentes Brasileiros na Internet", aponta que 54% dos jovens já foram vítimas de violência sexual na internet, o que representa aproximadamente 9,2 milhões de adolescentes.
O estudo destaca que 94% dos adolescentes não sabem como agir diante de situações de risco online, mesmo já tendo recebido algum tipo de orientação sobre o uso da internet. Essa falta de conhecimento cria um cenário de vulnerabilidade ainda maior para milhões de jovens.
Para o delegado Meneses, um dos principais desafios na investigação é o anonimato digital, que torna difícil o rastreamento de IPs, que funcionam como uma espécie de identificador de dispositivos eletrônicos —a criptografia é comum em aplicativos de mensagens, por exemplo.
"Enfrentamos também o problema do retardo na resposta dos provedores de internet e das aplicações, o que atrasa bastante o andamento das investigações."
Além do volume de dados e da falta de uma perícia especializada, o delegado cita que muitas vítimas ainda não denunciam por medo ou vergonha.
Apesar das dificuldades, sua divisão realiza operações integradas, como a iniciativa Luz na Infância, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que busca proteger crianças e adolescentes de crimes digitais.
Além disso, a delegacia monitora redes de compartilhamento de conteúdo, ajudando a identificar atividades ilícitas. Há também cooperação internacional com organizações como Interpol e Europol, permitindo ações conjuntas e troca de informações globais.
No Recife, a conselheira tutelar Elen Brito diz que a maioria das vítimas de denúncias no ambiente virtual é de meninas.
Por meio das redes sociais ou plataformas de mensagens, elas são atraídas por jovens ou homens que se passam por menores. Esses adultos conseguem obter imagens e vídeos íntimos, posteriormente usados para fazer chantagens e ameaçá-las.
"Geralmente as denúncias chegam pelo Disque 100 ou por instituições de ensino, tendo em vista que alguns casos acontecem dentro da escola. É comum casos entre adolescentes que tiveram algum tipo de relacionamento, mas, quando a menina não quer mais, o garoto ameaça divulgar imagens íntimas, muitas vezes obtidas sem consentimento", diz Elen.
Desde 2018, o Código Penal foi alterado para tipificar o crime de importunação sexual, que inclui divulgar, por qualquer meio, cenas de estupro ou divulgar cena de sexo ou nudez sem a autorização da vítima.
Família, professores e profissionais da saúde mental destacam que um dos desafios na identificação de casos de violência sexual na internet é que, muitas vezes, as mudanças no comportamento das vítimas podem ser interpretadas como parte do processo de desenvolvimento.
Para a psicóloga Priscila Souza, que atua no Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) do Recife, o diálogo precisa virar rotina.
"Muitas vezes os adultos evitam tocar no tema por medo de falar algo errado ou por não saber como iniciar essa conversa. Não há um modelo único ou perfeito, cada família deve encontrar o seu próprio jeito, respeitando o nível de compreensão da criança", afirma Priscila.
A psicóloga alerta que a exposição a conteúdos inadequados na internet pode acarretar prejuízos significativos, como "comportamentos sexualizados, aumento do risco de desenvolver ansiedade, depressão, baixa autoestima e isolamento social."
Apagamento de histórico de navegação, presença de contatos de desconhecidos em redes sociais e uso excessivo da internet, especialmente em horários incomuns, são listados pelo delegado Meneses como sinais de alerta no ambiente digital.
A psicóloga considera importante compreender que a proteção também depende da colaboração ativa da sociedade, especialmente no que diz respeito à formalização de casos.
"As denúncias não servem apenas para investigar casos pontuais. São essenciais para a produção de dados, que subsidiaram o trabalho da Segurança Pública. A partir da análise desses dados, será possível identificar padrões, variáveis que influenciam o aumento dos casos e até prevenir reincidências" diz Priscila.
Esta reportagem da Suellen Barbosa é resultado do curso sobre cobertura jornalística de violência sexual infantil promovido pela Folha e pelo Instituto Liberta em junho de 2025
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/08/vergonha-medo-e-anonimato-digital-sao-travas-para-investigar-violencia-sexual-infantil.shtml
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Movimento antivax surgiu com a própria vacina, em 1796, e ganhou força na pandemia da Covid
Recusa a imunizantes costuma ocorrer por motivos religiosos, filosóficos ou mesmo políticos
Desde o início deste ano, os Estados Unidos têm registrado altos índices de contaminação de sarampo, causando surtos nos estados do Texas e do Novo México. Ao todo, são mais de 300 casos espalhados pelo país, principalmente em crianças não vacinadas.
Quando o médico Edward Jenner inventou a vacina da varíola, em 1796, surgiram simultaneamente os movimentos antivacina. Séculos antes, com a variolação —ato de esfregar o pus da lesão da varíola na pele para se tornar imune—, já existiam grupos opostos à prática.
Na época, religiosos protestavam dizendo que não se pode contrariar a vontade de Deus. E, se alguém está predestinado a morrer por causa da varíola, esse desejo deveria ser respeitado. Por outro lado, algumas pessoas sentiam medo de serem infectadas com o vírus por meio da vacina, ou até mesmo sofrerem com os efeitos colaterais que ela poderia ter.
São argumentos utilizados até os dias de hoje. "A ciência evolui, o antivacinismo não", afirma Isabella Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
A história do movimento antivax, ou antivacinismo, no mundo é dispersa e não linear. As motivações são vastas e os movimentos surgem em resposta a fatos diversos. Por exemplo, as revoltas no País de Gales, em 1853, e no Rio de Janeiro, em 1904, foram algumas que ocorreram contra a imposição da vacinação contra a varíola. Desde então, ligas antivacina foram criadas por todo o mundo.
Outros grupos característicos que se opõem à vacinação são os de motivação filosófica, como os naturopatas, homeopatas e antroposóficos.
Eles sugerem que o sistema imune pode ser sobrecarregado se exposto a muitos antígenos e que as vacinas poderiam induzir a autoimunidade —uma resposta inadequada do sistema imunológico, que ataca o próprio corpo.
Segundo Guido Levi, presidente da Comissão de Ética da SBIm e autor de livros como "Vacinar: sim ou não?" e "Pioneiros: conquistas e percalços", o auge da hesitação vacinal aconteceu quando o médico inglês Andrew Wakefield publicou, em 1998, um estudo que relacionada a vacina MMR (contra sarampo, caxumba e rubéola) ao autismo em crianças. Posteriormente, o médico foi desmentido e teve seu diploma cassado, mas a mensagem já havia sido espalhada.
"Até hoje os pais chegam e perguntam se eu tenho certeza que a vacina não vai causar autismo", conta Levi.
A diretora da SBIm lembra que a pesquisa de Wakefield fez com que as pessoas perdessem a confiança nos médicos. Até porque, segundo ela, os grupos antivacina sempre usam argumentos simplistas, mas críveis, como a justificativa de serem embasados em estudos.
O Brasil sempre pareceu imune a esses grupos, chegando a ter índices de vacinação dignos de reconhecimento mundial. Atualmente, as religiões mais populares no país apoiam a vacina, e até a maioria dos médicos homeopatas passou a recomendá-las. Foi com a pandemia do coronavírus que as coisas começaram a mudar.
Manuela Pucca, biomédica imunologista e professora de imunologia na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara, explica que isso se deu principalmente "por termos mais informação via mídias sociais", gerando a alimentação da desinformação por meio do movimento algorítmico.
O caráter do antivacinismo durante a pandemia foi uma mescla dos grupos já existentes com um fator político forte, já que as principais autoridades nacionais questionaram a vacina da Covid e incentivaram a população a procurar soluções sem evidências científicas, como a cloroquina e a ivermectina.
"Abriu as portas para todos os antivacinistas com suas fake news. Tivemos um número enorme de desinformação em relação à doença e as suas vacinas", diz Levi.
Hoje, o infectologista afirma que o Brasil está recuperando seus índices de vacinação que ficaram defasados durante a pandemia. Em novembro de 2024, o país recebeu novamente o certificado de erradicação do sarampo, que havia sido perdido em 2018.
Não se pode dizer o mesmo de outros países que também têm uma influência política na vacinação, como os Estados Unidos. Desde a campanha eleitoral, o presidente Donald Trump já bradava contra toda e qualquer vacina, e não apenas a da Covid. Ele proibiu as escolas de solicitarem o cartão de vacinação para matrícula das crianças.
"O resultado é que doenças que estavam esquecidas, que estavam quase que erradicadas, estão reaparecendo", diz Levi. É o caso do sarampo, que está causando surto em diversos estados do país. "E a maioria dessas crianças não foram vacinadas", afirma.
Pucca concorda que o antivacinismo desencadeou os surtos atuais de sarampo nos EUA, seja pelos movimentos populares ou até mesmo pela falta de informação e acesso. "Eles não têm um Sistema Único de Saúde e um Programa Nacional de Imunizações como nós temos."
Reportagem de Giulia Peruzzo na Folha de São Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2025/04/movimento-antivax-surgiu-com-a-propria-vacina-em-1796-e-ganhou-forca-na-pandemia-da-covid.shtml
Desde o início deste ano, os Estados Unidos têm registrado altos índices de contaminação de sarampo, causando surtos nos estados do Texas e do Novo México. Ao todo, são mais de 300 casos espalhados pelo país, principalmente em crianças não vacinadas.
Quando o médico Edward Jenner inventou a vacina da varíola, em 1796, surgiram simultaneamente os movimentos antivacina. Séculos antes, com a variolação —ato de esfregar o pus da lesão da varíola na pele para se tornar imune—, já existiam grupos opostos à prática.
Na época, religiosos protestavam dizendo que não se pode contrariar a vontade de Deus. E, se alguém está predestinado a morrer por causa da varíola, esse desejo deveria ser respeitado. Por outro lado, algumas pessoas sentiam medo de serem infectadas com o vírus por meio da vacina, ou até mesmo sofrerem com os efeitos colaterais que ela poderia ter.
São argumentos utilizados até os dias de hoje. "A ciência evolui, o antivacinismo não", afirma Isabella Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
A história do movimento antivax, ou antivacinismo, no mundo é dispersa e não linear. As motivações são vastas e os movimentos surgem em resposta a fatos diversos. Por exemplo, as revoltas no País de Gales, em 1853, e no Rio de Janeiro, em 1904, foram algumas que ocorreram contra a imposição da vacinação contra a varíola. Desde então, ligas antivacina foram criadas por todo o mundo.
Outros grupos característicos que se opõem à vacinação são os de motivação filosófica, como os naturopatas, homeopatas e antroposóficos.
Eles sugerem que o sistema imune pode ser sobrecarregado se exposto a muitos antígenos e que as vacinas poderiam induzir a autoimunidade —uma resposta inadequada do sistema imunológico, que ataca o próprio corpo.
Segundo Guido Levi, presidente da Comissão de Ética da SBIm e autor de livros como "Vacinar: sim ou não?" e "Pioneiros: conquistas e percalços", o auge da hesitação vacinal aconteceu quando o médico inglês Andrew Wakefield publicou, em 1998, um estudo que relacionada a vacina MMR (contra sarampo, caxumba e rubéola) ao autismo em crianças. Posteriormente, o médico foi desmentido e teve seu diploma cassado, mas a mensagem já havia sido espalhada.
"Até hoje os pais chegam e perguntam se eu tenho certeza que a vacina não vai causar autismo", conta Levi.
A diretora da SBIm lembra que a pesquisa de Wakefield fez com que as pessoas perdessem a confiança nos médicos. Até porque, segundo ela, os grupos antivacina sempre usam argumentos simplistas, mas críveis, como a justificativa de serem embasados em estudos.
O Brasil sempre pareceu imune a esses grupos, chegando a ter índices de vacinação dignos de reconhecimento mundial. Atualmente, as religiões mais populares no país apoiam a vacina, e até a maioria dos médicos homeopatas passou a recomendá-las. Foi com a pandemia do coronavírus que as coisas começaram a mudar.
Manuela Pucca, biomédica imunologista e professora de imunologia na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara, explica que isso se deu principalmente "por termos mais informação via mídias sociais", gerando a alimentação da desinformação por meio do movimento algorítmico.
O caráter do antivacinismo durante a pandemia foi uma mescla dos grupos já existentes com um fator político forte, já que as principais autoridades nacionais questionaram a vacina da Covid e incentivaram a população a procurar soluções sem evidências científicas, como a cloroquina e a ivermectina.
"Abriu as portas para todos os antivacinistas com suas fake news. Tivemos um número enorme de desinformação em relação à doença e as suas vacinas", diz Levi.
Hoje, o infectologista afirma que o Brasil está recuperando seus índices de vacinação que ficaram defasados durante a pandemia. Em novembro de 2024, o país recebeu novamente o certificado de erradicação do sarampo, que havia sido perdido em 2018.
Não se pode dizer o mesmo de outros países que também têm uma influência política na vacinação, como os Estados Unidos. Desde a campanha eleitoral, o presidente Donald Trump já bradava contra toda e qualquer vacina, e não apenas a da Covid. Ele proibiu as escolas de solicitarem o cartão de vacinação para matrícula das crianças.
"O resultado é que doenças que estavam esquecidas, que estavam quase que erradicadas, estão reaparecendo", diz Levi. É o caso do sarampo, que está causando surto em diversos estados do país. "E a maioria dessas crianças não foram vacinadas", afirma.
Pucca concorda que o antivacinismo desencadeou os surtos atuais de sarampo nos EUA, seja pelos movimentos populares ou até mesmo pela falta de informação e acesso. "Eles não têm um Sistema Único de Saúde e um Programa Nacional de Imunizações como nós temos."
Reportagem de Giulia Peruzzo na Folha de São Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2025/04/movimento-antivax-surgiu-com-a-propria-vacina-em-1796-e-ganhou-forca-na-pandemia-da-covid.shtml
terça-feira, 15 de abril de 2025
Mel é alimento natural que nunca vence e cura até feridas
Com uma combinação de fatores biológicos e químicos, o mel pode manter o sabor e benefícios para saúde
Em meio a tantos produtos perecíveis, o mel se apresenta como opção de alimento natural que desafia as leis do tempo. Esta doce substância, produzida pelas abelhas a partir do néctar das flores, consegue manter sua pureza, sabor e propriedades por séculos, resistindo às condições ambientais que degradam a maioria das comidas.
Para entender o que torna o mel tão especial, é necessário compreender como ocorre a decomposição dos alimentos, que geralmente é influenciada por alguns fatores. A ação de microorganismos como bactérias, fungos e leveduras, somada aos processos químicos de oxidação e à atividade de enzimas naturais, acelera essa deterioração. Além disso, fatores como umidade, temperatura e exposição ao oxigênio contribuem para alterar a cor, sabor, textura e cheiro dos produtos, tornando impróprios para consumo.
Portanto, a velocidade que um alimento leva para perder sua qualidade depende, na maioria das vezes, da sua composição química e condições de armazenamento. Alimentos ricos em água, gorduras ou açúcares simples, tendem a se deteriorar mais rápido. Já os produtos mais secos, com muito sal ou açúcar, ou aqueles processados para eliminar microorganismos e umidade, têm uma vida útil mais longa. Entre estes alimentos com maior longevidade, o mel é um dos destaques.
Mel natural pode levar séculos para vencer
A composição natural do mel permite que a substância consiga manter suas condições de consumo por séculos. Isto porque contém açúcares, antioxidantes, vitaminas, minerais e compostos bioativos que contribuem para sua estabilidade. Mas o baixo teor de umidade para sua conservação também ajuda na conservação, por dificultar o crescimento de bactérias e leveduras. Sua alta acidez também cria um ambiente hostil para microorganismos.
Esses elementos se complementam com a presença de peróxido de hidrogênio, um composto antimicrobiano que as abelhas adicionam durante a produção do mel, reforçando sua capacidade de permanecer intacto.
Ao mesmo tempo, a elevada concentração de açúcares no mel desidrata as bactérias, impedindo sua proliferação. Graças a essas características, o mel pode ser conservado por séculos sem a necessidade de aditivos artificiais.
Como armazenar o mel para que ele mantenha suas propriedades?
Para garantir que o mel preserve suas propriedades inalteradas, é fundamental armazenar adequadamente. Assim, é recomendado que ele seja mantido em um recipiente hermético, ou seja, com vedação que impeça a entrada e saída de ar, líquidos ou gases. Além disso, ele deve ficar em local fresco e seco, longe da luz direta. Também é essencial evitar a exposição à umidade, pois isso pode alterar sua composição e favorecer a fermentação.
Cristalização do mel não significa perda de qualidade
Vale destacar que a cristalização ou mudança de cor do mel não significam perda de qualidade. A cristalização é um processo natural que pode ser revertido com um leve aquecimento em banho-maria.
Quanto à data de validade do mel, é importante que não seja confundida com um indicativo de que o produto se torna inseguro após um determinado período. A data de consumo indicada em embalagens atende a regulamentações alimentares para alertar que, com o tempo, podem ocorrer alterações na textura, aroma e cor do produto. Mas, se o mel for armazenado corretamente, ele seguirá seguro para o consumo.
No que diz respeito à segurança alimentar, é importante destacar que o mel não é indicado para crianças com menos de um ano, por conta do risco de esporos de Clostridium botulinum, um microorganismo que o sistema digestivo dos bebês ainda não consegue combater. Mas, em crianças maiores e adultos, o mel é seguro e benéfico para saúde.
Benefícios do mel para saúde
O mel oferece uma lista de benefícios à saúde. Seu alto teor de açúcares naturais o torna uma fonte rápida de energia, ideal para revitalizar o corpo. Além disso, sua riqueza em antioxidantes e compostos anti-inflamatórios ajuda a proteger as células contra danos oxidativos e a reduzir inflamações, fortalecendo as defesas naturais do organismo.
O alimento também é conhecido por suas propriedades terapêuticas tradicionais. É utilizado com eficácia para aliviar a tosse e dores de garganta, graças à sua capacidade de suavizar as mucosas irritadas.
Quando utilizado diretamente na pele e machucados, favorece a cicatrização de feridas leves devido às suas propriedades antimicrobianas. Ao mesmo tempo, seu conteúdo de prebióticos naturais (fibras e carboidratos não digeríveis que estimulam o crescimento de bactérias benéficas no intestino), contribui para o crescimento de bactérias benéficas no intestino, promovendo uma digestão saudável e um equilíbrio adequado da microbiota intestinal.
Então, o mel é mais do que um alimento saboroso. Sua resistência ao passar do tempo e seus benefícios à saúde o tornam um produto único, capaz de perdurar e manter sua eficácia ao longo dos séculos. Com o armazenamento adequado, este tesouro natural se mantém como aliado da saúde e bem-estar.
Texto original de El Tiempo reproduzido por O Globo
https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/04/15/saiba-qual-e-o-alimento-natural-que-nunca-vence-e-cura-ate-feridas.ghtml
Em meio a tantos produtos perecíveis, o mel se apresenta como opção de alimento natural que desafia as leis do tempo. Esta doce substância, produzida pelas abelhas a partir do néctar das flores, consegue manter sua pureza, sabor e propriedades por séculos, resistindo às condições ambientais que degradam a maioria das comidas.
Para entender o que torna o mel tão especial, é necessário compreender como ocorre a decomposição dos alimentos, que geralmente é influenciada por alguns fatores. A ação de microorganismos como bactérias, fungos e leveduras, somada aos processos químicos de oxidação e à atividade de enzimas naturais, acelera essa deterioração. Além disso, fatores como umidade, temperatura e exposição ao oxigênio contribuem para alterar a cor, sabor, textura e cheiro dos produtos, tornando impróprios para consumo.
Portanto, a velocidade que um alimento leva para perder sua qualidade depende, na maioria das vezes, da sua composição química e condições de armazenamento. Alimentos ricos em água, gorduras ou açúcares simples, tendem a se deteriorar mais rápido. Já os produtos mais secos, com muito sal ou açúcar, ou aqueles processados para eliminar microorganismos e umidade, têm uma vida útil mais longa. Entre estes alimentos com maior longevidade, o mel é um dos destaques.
Mel natural pode levar séculos para vencer
A composição natural do mel permite que a substância consiga manter suas condições de consumo por séculos. Isto porque contém açúcares, antioxidantes, vitaminas, minerais e compostos bioativos que contribuem para sua estabilidade. Mas o baixo teor de umidade para sua conservação também ajuda na conservação, por dificultar o crescimento de bactérias e leveduras. Sua alta acidez também cria um ambiente hostil para microorganismos.
Esses elementos se complementam com a presença de peróxido de hidrogênio, um composto antimicrobiano que as abelhas adicionam durante a produção do mel, reforçando sua capacidade de permanecer intacto.
Ao mesmo tempo, a elevada concentração de açúcares no mel desidrata as bactérias, impedindo sua proliferação. Graças a essas características, o mel pode ser conservado por séculos sem a necessidade de aditivos artificiais.
Como armazenar o mel para que ele mantenha suas propriedades?
Para garantir que o mel preserve suas propriedades inalteradas, é fundamental armazenar adequadamente. Assim, é recomendado que ele seja mantido em um recipiente hermético, ou seja, com vedação que impeça a entrada e saída de ar, líquidos ou gases. Além disso, ele deve ficar em local fresco e seco, longe da luz direta. Também é essencial evitar a exposição à umidade, pois isso pode alterar sua composição e favorecer a fermentação.
Cristalização do mel não significa perda de qualidade
Vale destacar que a cristalização ou mudança de cor do mel não significam perda de qualidade. A cristalização é um processo natural que pode ser revertido com um leve aquecimento em banho-maria.
Quanto à data de validade do mel, é importante que não seja confundida com um indicativo de que o produto se torna inseguro após um determinado período. A data de consumo indicada em embalagens atende a regulamentações alimentares para alertar que, com o tempo, podem ocorrer alterações na textura, aroma e cor do produto. Mas, se o mel for armazenado corretamente, ele seguirá seguro para o consumo.
No que diz respeito à segurança alimentar, é importante destacar que o mel não é indicado para crianças com menos de um ano, por conta do risco de esporos de Clostridium botulinum, um microorganismo que o sistema digestivo dos bebês ainda não consegue combater. Mas, em crianças maiores e adultos, o mel é seguro e benéfico para saúde.
Benefícios do mel para saúde
O mel oferece uma lista de benefícios à saúde. Seu alto teor de açúcares naturais o torna uma fonte rápida de energia, ideal para revitalizar o corpo. Além disso, sua riqueza em antioxidantes e compostos anti-inflamatórios ajuda a proteger as células contra danos oxidativos e a reduzir inflamações, fortalecendo as defesas naturais do organismo.
O alimento também é conhecido por suas propriedades terapêuticas tradicionais. É utilizado com eficácia para aliviar a tosse e dores de garganta, graças à sua capacidade de suavizar as mucosas irritadas.
Quando utilizado diretamente na pele e machucados, favorece a cicatrização de feridas leves devido às suas propriedades antimicrobianas. Ao mesmo tempo, seu conteúdo de prebióticos naturais (fibras e carboidratos não digeríveis que estimulam o crescimento de bactérias benéficas no intestino), contribui para o crescimento de bactérias benéficas no intestino, promovendo uma digestão saudável e um equilíbrio adequado da microbiota intestinal.
Então, o mel é mais do que um alimento saboroso. Sua resistência ao passar do tempo e seus benefícios à saúde o tornam um produto único, capaz de perdurar e manter sua eficácia ao longo dos séculos. Com o armazenamento adequado, este tesouro natural se mantém como aliado da saúde e bem-estar.
Texto original de El Tiempo reproduzido por O Globo
https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/04/15/saiba-qual-e-o-alimento-natural-que-nunca-vence-e-cura-ate-feridas.ghtml
quarta-feira, 9 de abril de 2025
União Brasileira de Mulheres pede ao STF para colaborar em caso Mariana Ferrer
A União Brasileira de Mulheres (UBM) pediu ao STF para atuar como "amigo da Corte" num recurso apresentado pela defesa da influenciadora Mariana Ferrer, que denunciou ter sido vítima de estupro em 2018, para anular a audiência que absolveu o réu.

A entidade quer participar do processo como coloaborador, para fornecer informações ao tribunal ante a relevância do caso, que avançou no Supremo. Na semana passada, Luís Roberto Barroso determinou a distribuição do recurso, que foi parar no gabinete de Alexandre de Moraes.
Num primeiro momento, deverá ser apreciado pelos 11 ministros se há repercussão geral, quando a Corte julga recursos com questões relevantes sob aspectos econômico, político, social ou jurídico. Se assim entender o Supremo, pode ser julgado se a audiência que absolveu o réu deve ser anulada, o que reabriria a possibilidade de condenação.
A UBM argumenta que é responsabilidade do Estado brasileiro, signatário de tratados internacionais, garantir que crimes de violência sexual sejam investigados com rigor e que as vítimas tenham acesso à justiça sem sofrerem novas violências no processo.
Sustenta ainda que, ao permitir que um caso com provas técnicas e periciais ainda não tenha tido uma condenação, o Estado viola seu compromisso com os direitos humanos das mulheres e reforça um sistema que desencoraja outras vítimas a denunciarem.
O principal ponto questionado pela defesa é o tratamento dado a Mariana na audiência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), na qual foi humilhada pelo advogado do réu. Segundo os advogados, os ataques comprometeram não apenas seu depoimento, como também o devido processo legal e o contraditório.
Segundo o processo, Mari Ferrer foi foi dopada no Café de La Musique em Santa Catarina e estuprada, conforme exame pericial. À época, aos 21 anos, ela ainda não havia tido relações sexuais.
Reportagem de Rodrigo Castro no blog do Lauro Jardim
https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2025/04/uniao-brasileira-de-mulheres-pede-ao-stf-para-colaborar-em-caso-mari-ferrer.ghtml
A entidade quer participar do processo como coloaborador, para fornecer informações ao tribunal ante a relevância do caso, que avançou no Supremo. Na semana passada, Luís Roberto Barroso determinou a distribuição do recurso, que foi parar no gabinete de Alexandre de Moraes.
Num primeiro momento, deverá ser apreciado pelos 11 ministros se há repercussão geral, quando a Corte julga recursos com questões relevantes sob aspectos econômico, político, social ou jurídico. Se assim entender o Supremo, pode ser julgado se a audiência que absolveu o réu deve ser anulada, o que reabriria a possibilidade de condenação.
A UBM argumenta que é responsabilidade do Estado brasileiro, signatário de tratados internacionais, garantir que crimes de violência sexual sejam investigados com rigor e que as vítimas tenham acesso à justiça sem sofrerem novas violências no processo.
Sustenta ainda que, ao permitir que um caso com provas técnicas e periciais ainda não tenha tido uma condenação, o Estado viola seu compromisso com os direitos humanos das mulheres e reforça um sistema que desencoraja outras vítimas a denunciarem.
O principal ponto questionado pela defesa é o tratamento dado a Mariana na audiência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), na qual foi humilhada pelo advogado do réu. Segundo os advogados, os ataques comprometeram não apenas seu depoimento, como também o devido processo legal e o contraditório.
Segundo o processo, Mari Ferrer foi foi dopada no Café de La Musique em Santa Catarina e estuprada, conforme exame pericial. À época, aos 21 anos, ela ainda não havia tido relações sexuais.
Reportagem de Rodrigo Castro no blog do Lauro Jardim
https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2025/04/uniao-brasileira-de-mulheres-pede-ao-stf-para-colaborar-em-caso-mari-ferrer.ghtml
quarta-feira, 26 de março de 2025
Comovente e apavorante, 'Adolescência' mostra que o perigo está dentro de casa
Série da Netflix refuta respostas fáceis ao abordar radicalização de adolescente abandonado no ambiente digital
A comoção causada pela série "Adolescência", da Netflix, que teve 160 milhões de horas assistidas em apenas 13 dias, é sintoma de uma revelação inconveniente: a de que o perigo está dentro de casa.
No enredo, adolescente Jamie Miller, 13, é o autor de um homicídio. Ele esfaqueou Katie, 13, sua colega de classe. E não se trata de um spoiler: a informação é apresentada logo no primeiro episódio. A questão que a série levanta não é quem nem como, mas por quê. E não há resposta simples nem única.
A incômoda sensação de proximidade com a tragédia que "Adolescência" provoca é fruto da aparente normalidade do contexto do assassino: uma família convencional e amorosa, uma escola tradicional, um quarto com computador e bichinhos de pelúcia.
Online e sem o conhecimento de seus pais, Jamie sofria bullying de Katie e acessava conteúdos redpill e incel, duas subculturas violentas da internet que compõem a chamada machosfera ou manosfera.
Redpill é o termo usado para designar indivíduos e grupos que pregam uma superioridade masculina radicalizada e que compartilham conteúdos misóginos, de ódio e submissão de mulheres.
Já incel, flexão em inglês das palavras celibatário e involuntário, indica pessoas que não conseguem encontrar um par romântico ou sexual. Majoritários entre os incels, os meninos culpam as mulheres por seu celibato involuntário e, em muitos casos, pregam a violência como vingança.
Especialistas ouvidos pela Folha alertam que este tipo de conteúdo é cada vez mais comum na internet, atrai adolescentes vulneráveis em busca de pertencimento e tem potencial para radicalizá-los a ponto de discursos de ódio online se concretizarem em crimes cometidos no mundo real.
Eles também são unânimes em dizer que os pais precisam estar mais presentes e acompanhar com atenção os conteúdos que crianças e adolescentes acessam na internet, além de suas conversas em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagens.
"O cenário hoje é muito desafiador", afirma o delegado da Polícia Federal Flávio Rolim, chefe da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos de Ódio (Urcod).
"Jovens que são abandonados no ambiente cibernético, desamparados, são recebidos por essas comunidades que promovem uma cultura de ódio contra mulheres, contra negros etc.", diz. "Há comunidades incel e redpill que monetizam muito dinheiro vendendo cursos e livros voltados a uma ideologia de inferiorização do sexo feminino."
Rolim diz enxergar, na prática, diferentes etapas de um processo de radicalização de adolescentes nas redes. Ela tem início na internet aberta, em redes como Instagram, Tiktok e Reddit e no YouTube, e em tom de brincadeira.
Em seguida, migra para programas como Telegram e Discord, em que circulam vídeos de violência contra mulheres e discursos de incitação a crimes.
O próximo estágio da radicalização acontece na dark web, a internet não indexada e que permite o anonimato, em que comunidades assumem nomes tão literais quanto clube dos feminicidas e clube dos estupradores, e por onde circula de tudo, inclusive tutoriais sobre como praticar atos de violência extrema. "O último estágio é quando essa subcultura se concretiza no mundo físico. E temos visto isso acontecer", afirma o delegado.
Vanessa Cavalieri, juíza da 1ª Vara da Infância e Adolescência do Rio de Janeiro, a única da capital fluminense a julgar crimes cometidos por adolescentes, corrobora o relato de Rolim. "Nos últimos anos, a gente tem tido muitos casos de feminicídio consumado por adolescentes, além de outras violências de gênero praticadas por eles", testemunha.
Ela revela também que parte desses meninos estava envolvido em comunidades misóginas na internet e que hoje há cada vez mais meninas adolescentes com medidas protetivas da Lei Maria da Penha por conta de stalkers e ex-namorados que as perseguem e ameaçam.
"Nesses grupos, meninos recebem explicações fáceis para suas infelicidades. Eles propagam que mulheres não prestam, que são interesseiras, e que o problema, portanto, é com elas, e não com os meninos", conta.
Expostos periodicamente a imagens de violência inapropriadas para sua idade, eles se dessensibilizam. "É um mecanismo de proteção que vem sendo falado e estudado, e cuja consequência é a redução da empatia", diz.
Para Thiago Tavares, diretor-presidente da Safernet Brasil, essa naturalização da misoginia extrapola esses grupos. "Uma parcela da população naturalizou esse tipo de conteúdo, que passou a circular mais amplamente, inclusive em discursos políticos, vídeos, programas de rádio e podcasts, o que faz com que muita gente passe a defender essas ideias como legítimas."
A psiquiatra da infância e adolescência Gabriela Viegas Stump, que atua no Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e no Sírio Libanês, ambos em São Paulo, explica que a exposição a esses conteúdos eleva o risco de dessensibilização porque ocorre em uma fase do desenvolvimento em que o adolescente "não tem desenvolvida a capacidade de se colocar no lugar do outro".
"Quanto mais jovem a pessoa é exposta a conteúdos violentos e abusivos, maiores as chances de se identificar com comportamentos negativos e de ser influenciado por eles ou de querer imitá-los, porque ainda não existe uma capacidade de pensamento crítico desenvolvida", explica ela. "O adolescente não tem arcabouço neurológico para a percepção do contexto e das consequências de longo prazo disso."
Para Juliana Diniz, psiquiatra, psicoterapeuta e neurocientista, pesquisadora no Instituto de Psiquiatria no Hospital das Clínicas, a banalização da violência por conta da hiperexposição a conteúdos do gênero lembra os debates a potencial má influência de videogames violentos em adolescentes.
"Esse medo não se confirmou. E minha impressão clínica é que um adolescente que não é vulnerável nem sequer se interessa por este tipo de conteúdo extremo, mas aqueles em vulnerabilidade podem se interessar. E essas imagens passam a figurar nas fantasias desses adolescentes, criando teorias da conspiração e explicações sobre o que acontece com eles", analisa a autora do livro "O que os Psiquiatras Não te Contam" (ed. Fósforo).
O psicanalista Breno Herman Sniker, do departamento de psicanálise do Sedes Sapientiae, afirma que hoje meninos e homens têm dificuldade em lidar com a questão da masculinidade e não sabem como se posicionar de maneira razoável.
"O lugar do homem, que era tido como de respeito, dinheiro e poder, atributos desejados por mulheres que não trabalham, foi transformado pelas mudanças objetivas dos nossos tempos, quando muitas mulheres não precisam mais de um homem para sobreviver. Cria-se um vácuo em que essas ideologias redpill e incel se instalam porque trazem respostas fáceis."
Para ele, a série traz muitas camadas, entre elas, a do bullying que Jamie sofre. "Na idade dele, ser humilhado perante os amigos e colegas é algo mortal e envolve um sentimento de morte mesmo porque não são muitos os mundos em que esses adolescentes podem circular", explica.
A também psicanalista Julieta Jerusalinsky, professora da PUC-SP e diretora do Instituto Travessias da Infância, explica que a passagem para a adolescência tem a complexidade do luto da infância, do brincar e da proteção mais próxima dos pais. "Passa-se a um momento de transição dos laços familiares para os laços sociais, seja nas amizades, nos namoros ou nos interesses de vida. O adolescente é alguém que quer ganhar experiência e, portanto, pode acabar produzindo atos que decisivos para quem ele vai se tornar."
Jerusalinsky aponta que adolescer hoje em dia, no entanto, traz o desafio extra de uma cultura em que as redes sociais ocupam o lugar dos laços sociais, da família e dos namoros.
"Neste contexto, é complicada a função dos pais, que muitas vezes acham que os filhos estão protegidos porque estão no quarto, mas, através da janela virtual, chegam a eles transmissões não mediadas e discursos de intolerância que incentivam a violência com quem é diferente", diz. "É isso o que torna a série tão chocante."
Para ela, a série "não cai na armadilha de diagnosticar este ou aquele personagem, mas revela a complexidade de um laço social que é pervertido pela lógica da fama e da difamação das redes sociais, que impele a atos de violência contra si mesmo e contra os outros".
O remédio, diz, passa por conversar e debater as diferenças e discordâncias.
"O que aconteceu ali e acontece em quase todas as famílias é o abandono digital", diz a juíza Cavalieri. "Isto é, a negligência dos pais no ambiente digital, porque estão muito distraídos com seus trabalhos e seus próprios celulares", aponta. "Isso é uma violência porque coloca crianças e adolescentes em situação de risco extremo, seja porque podem ser tornar vítimas de abusos por quadrilhas digitais, seja porque podem acessar conteúdos inapropriados e perigosos."
Segundo ela, os pais precisam supervisionar o que adolescentes acessam e usar aplicativo de controle parental para monitorá-los e bloquear certos conteúdos.
"Há uma desconexão com a realidade. Os pais entregam aos filhos um produto que ele não tem maturidade para lidar sozinho. A idade mínima para usar WhatsApp é 16 anos. E quantos pais criam contas para os filhos mesmo assim e deixam eles sem monitoramento?", questiona. "Os pais ainda não entenderam que olhar o grupo de Whatsapp não é invadir privacidade, não é como ler um diário. É, sim, como supervisionar seu filho numa praça pública."
Reportagem de Fernanda Mena na Folha de São Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2025/03/comovente-e-apavorante-adolescencia-mostra-que-o-perigo-esta-dentro-de-casa.shtml
A comoção causada pela série "Adolescência", da Netflix, que teve 160 milhões de horas assistidas em apenas 13 dias, é sintoma de uma revelação inconveniente: a de que o perigo está dentro de casa.
No enredo, adolescente Jamie Miller, 13, é o autor de um homicídio. Ele esfaqueou Katie, 13, sua colega de classe. E não se trata de um spoiler: a informação é apresentada logo no primeiro episódio. A questão que a série levanta não é quem nem como, mas por quê. E não há resposta simples nem única.
A incômoda sensação de proximidade com a tragédia que "Adolescência" provoca é fruto da aparente normalidade do contexto do assassino: uma família convencional e amorosa, uma escola tradicional, um quarto com computador e bichinhos de pelúcia.
Online e sem o conhecimento de seus pais, Jamie sofria bullying de Katie e acessava conteúdos redpill e incel, duas subculturas violentas da internet que compõem a chamada machosfera ou manosfera.
Redpill é o termo usado para designar indivíduos e grupos que pregam uma superioridade masculina radicalizada e que compartilham conteúdos misóginos, de ódio e submissão de mulheres.
Já incel, flexão em inglês das palavras celibatário e involuntário, indica pessoas que não conseguem encontrar um par romântico ou sexual. Majoritários entre os incels, os meninos culpam as mulheres por seu celibato involuntário e, em muitos casos, pregam a violência como vingança.
Especialistas ouvidos pela Folha alertam que este tipo de conteúdo é cada vez mais comum na internet, atrai adolescentes vulneráveis em busca de pertencimento e tem potencial para radicalizá-los a ponto de discursos de ódio online se concretizarem em crimes cometidos no mundo real.
Eles também são unânimes em dizer que os pais precisam estar mais presentes e acompanhar com atenção os conteúdos que crianças e adolescentes acessam na internet, além de suas conversas em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagens.
"O cenário hoje é muito desafiador", afirma o delegado da Polícia Federal Flávio Rolim, chefe da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos de Ódio (Urcod).
"Jovens que são abandonados no ambiente cibernético, desamparados, são recebidos por essas comunidades que promovem uma cultura de ódio contra mulheres, contra negros etc.", diz. "Há comunidades incel e redpill que monetizam muito dinheiro vendendo cursos e livros voltados a uma ideologia de inferiorização do sexo feminino."
Rolim diz enxergar, na prática, diferentes etapas de um processo de radicalização de adolescentes nas redes. Ela tem início na internet aberta, em redes como Instagram, Tiktok e Reddit e no YouTube, e em tom de brincadeira.
Em seguida, migra para programas como Telegram e Discord, em que circulam vídeos de violência contra mulheres e discursos de incitação a crimes.
O próximo estágio da radicalização acontece na dark web, a internet não indexada e que permite o anonimato, em que comunidades assumem nomes tão literais quanto clube dos feminicidas e clube dos estupradores, e por onde circula de tudo, inclusive tutoriais sobre como praticar atos de violência extrema. "O último estágio é quando essa subcultura se concretiza no mundo físico. E temos visto isso acontecer", afirma o delegado.
Vanessa Cavalieri, juíza da 1ª Vara da Infância e Adolescência do Rio de Janeiro, a única da capital fluminense a julgar crimes cometidos por adolescentes, corrobora o relato de Rolim. "Nos últimos anos, a gente tem tido muitos casos de feminicídio consumado por adolescentes, além de outras violências de gênero praticadas por eles", testemunha.
Ela revela também que parte desses meninos estava envolvido em comunidades misóginas na internet e que hoje há cada vez mais meninas adolescentes com medidas protetivas da Lei Maria da Penha por conta de stalkers e ex-namorados que as perseguem e ameaçam.
"Nesses grupos, meninos recebem explicações fáceis para suas infelicidades. Eles propagam que mulheres não prestam, que são interesseiras, e que o problema, portanto, é com elas, e não com os meninos", conta.
Expostos periodicamente a imagens de violência inapropriadas para sua idade, eles se dessensibilizam. "É um mecanismo de proteção que vem sendo falado e estudado, e cuja consequência é a redução da empatia", diz.
Para Thiago Tavares, diretor-presidente da Safernet Brasil, essa naturalização da misoginia extrapola esses grupos. "Uma parcela da população naturalizou esse tipo de conteúdo, que passou a circular mais amplamente, inclusive em discursos políticos, vídeos, programas de rádio e podcasts, o que faz com que muita gente passe a defender essas ideias como legítimas."
A psiquiatra da infância e adolescência Gabriela Viegas Stump, que atua no Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e no Sírio Libanês, ambos em São Paulo, explica que a exposição a esses conteúdos eleva o risco de dessensibilização porque ocorre em uma fase do desenvolvimento em que o adolescente "não tem desenvolvida a capacidade de se colocar no lugar do outro".
"Quanto mais jovem a pessoa é exposta a conteúdos violentos e abusivos, maiores as chances de se identificar com comportamentos negativos e de ser influenciado por eles ou de querer imitá-los, porque ainda não existe uma capacidade de pensamento crítico desenvolvida", explica ela. "O adolescente não tem arcabouço neurológico para a percepção do contexto e das consequências de longo prazo disso."
Para Juliana Diniz, psiquiatra, psicoterapeuta e neurocientista, pesquisadora no Instituto de Psiquiatria no Hospital das Clínicas, a banalização da violência por conta da hiperexposição a conteúdos do gênero lembra os debates a potencial má influência de videogames violentos em adolescentes.
"Esse medo não se confirmou. E minha impressão clínica é que um adolescente que não é vulnerável nem sequer se interessa por este tipo de conteúdo extremo, mas aqueles em vulnerabilidade podem se interessar. E essas imagens passam a figurar nas fantasias desses adolescentes, criando teorias da conspiração e explicações sobre o que acontece com eles", analisa a autora do livro "O que os Psiquiatras Não te Contam" (ed. Fósforo).
O psicanalista Breno Herman Sniker, do departamento de psicanálise do Sedes Sapientiae, afirma que hoje meninos e homens têm dificuldade em lidar com a questão da masculinidade e não sabem como se posicionar de maneira razoável.
"O lugar do homem, que era tido como de respeito, dinheiro e poder, atributos desejados por mulheres que não trabalham, foi transformado pelas mudanças objetivas dos nossos tempos, quando muitas mulheres não precisam mais de um homem para sobreviver. Cria-se um vácuo em que essas ideologias redpill e incel se instalam porque trazem respostas fáceis."
Para ele, a série traz muitas camadas, entre elas, a do bullying que Jamie sofre. "Na idade dele, ser humilhado perante os amigos e colegas é algo mortal e envolve um sentimento de morte mesmo porque não são muitos os mundos em que esses adolescentes podem circular", explica.
A também psicanalista Julieta Jerusalinsky, professora da PUC-SP e diretora do Instituto Travessias da Infância, explica que a passagem para a adolescência tem a complexidade do luto da infância, do brincar e da proteção mais próxima dos pais. "Passa-se a um momento de transição dos laços familiares para os laços sociais, seja nas amizades, nos namoros ou nos interesses de vida. O adolescente é alguém que quer ganhar experiência e, portanto, pode acabar produzindo atos que decisivos para quem ele vai se tornar."
Jerusalinsky aponta que adolescer hoje em dia, no entanto, traz o desafio extra de uma cultura em que as redes sociais ocupam o lugar dos laços sociais, da família e dos namoros.
"Neste contexto, é complicada a função dos pais, que muitas vezes acham que os filhos estão protegidos porque estão no quarto, mas, através da janela virtual, chegam a eles transmissões não mediadas e discursos de intolerância que incentivam a violência com quem é diferente", diz. "É isso o que torna a série tão chocante."
Para ela, a série "não cai na armadilha de diagnosticar este ou aquele personagem, mas revela a complexidade de um laço social que é pervertido pela lógica da fama e da difamação das redes sociais, que impele a atos de violência contra si mesmo e contra os outros".
O remédio, diz, passa por conversar e debater as diferenças e discordâncias.
"O que aconteceu ali e acontece em quase todas as famílias é o abandono digital", diz a juíza Cavalieri. "Isto é, a negligência dos pais no ambiente digital, porque estão muito distraídos com seus trabalhos e seus próprios celulares", aponta. "Isso é uma violência porque coloca crianças e adolescentes em situação de risco extremo, seja porque podem ser tornar vítimas de abusos por quadrilhas digitais, seja porque podem acessar conteúdos inapropriados e perigosos."
Segundo ela, os pais precisam supervisionar o que adolescentes acessam e usar aplicativo de controle parental para monitorá-los e bloquear certos conteúdos.
"Há uma desconexão com a realidade. Os pais entregam aos filhos um produto que ele não tem maturidade para lidar sozinho. A idade mínima para usar WhatsApp é 16 anos. E quantos pais criam contas para os filhos mesmo assim e deixam eles sem monitoramento?", questiona. "Os pais ainda não entenderam que olhar o grupo de Whatsapp não é invadir privacidade, não é como ler um diário. É, sim, como supervisionar seu filho numa praça pública."
Reportagem de Fernanda Mena na Folha de São Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2025/03/comovente-e-apavorante-adolescencia-mostra-que-o-perigo-esta-dentro-de-casa.shtml
segunda-feira, 24 de março de 2025
Não existe alimento ultraprocessado saudável, diz médico britânico
Christofer van Tulleken se submeteu por um mês a uma dieta do tipo e escreveu o livro 'Gente Ultraprocessada'
Eu não estou gostando, mas não consigo parar", diz o infectologista Christopher van Tulleken, do Hospital de Doenças Tropicais em Londres, em um vídeo para a BBC britânica em que documenta o mês durante o qual se submeteu a uma dieta na qual 80% dos alimentos eram ultraprocessados.
Nesse período curto, Van Tulleken ganhou mais de seis quilos, seu cérebro passou a associar comida com as recompensas do sistema límbico e exames acusaram que os hormônios reguladores da saciedade e da fome ficaram totalmente descontrolados. É sob essa dieta com 80% de ultraprocessados que vivem 20% dos adolescentes no Reino Unido —no geral, o consumo de ultraprocessados corresponde a 66% da dieta dos jovens.
O experimento na pegada "Super Size Me" —documentário de 2004 em que o diretor Morgan Spurlock come McDonald's por um mês— não foi um pedido desesperado de socorro de Van Tulleken. Ele emulou, guardadas as proporções, um dos principais estudos que tenta comprovar a tese da classificação Nova, criada pelo brasileiro Carlos Monteiro e outros pesquisadores do Nupens/USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) e que sugere que o nível de processamento é determinante na qualidade dos alimentos.
Van Tulleken partiu dos achados de Kevin Hall, pesquisador do NIH (National Institute of Health) dos Estados Unidos, em um estudo em que voluntários ficaram um mês confinados num laboratório onde dormiam, comiam e se exercitavam. A comida, porém, era ultraprocessada para metade do experimento e livre de ultraprocessados para a outra metade.
"Se você se preocupa com a sua alimentação, pegue seu pacote de M&M's e leia os ingredientes. E se pergunte por que eles estão ali", diz Van Tulleken em entrevista à Folha, após questão levantada pela reportagem. "Pode haver óleo de palma, corantes, emulsificantes. Isso é realmente delicioso? Tratar um ultraprocessado como um produto de luxo, que é o que a indústria quer, não cola. A comida não é boa o bastante e se torna nojenta rapidamente."
O médico reforça que não acredita que existam bons ultraprocessados, seja um iogurte, um pão de forma ou um salgadinho. O problema, ele diz, não é o consumo esporádico de, digamos, um pacotinho dos confeitos coloridos, mas o fato de que esse tipo de alimento é hoje a base de dietas —e disputas econômicas e políticas acirradas— ao redor do mundo.
Por que o sr. decidiu se usar de cobaia nesse experimento inspirado nos estudos de Kevin Hall?
Por duas razões: primeiro, queríamos um paciente piloto para um estudo maior, que está acontecendo agora. Queríamos entender se valia a pena fazer um grande estudo, então a melhor coisa era ter um voluntário para ver quais mudanças ocorriam num ambiente não controlado. Em segundo lugar, filmamos o experimento para um documentário da BBC, e documentários precisam de pessoas fazendo coisas interessantes. Não dá para só ficar falando.
Há uma terceira razão que é: eu não pensei que seria algo de mais. Eu acreditava nas evidências do Kevin [Hall], mas não me parecia que veríamos grandes mudanças, principalmente porque eu não estava confinado. Eu estava livre no mundo, ingerindo uma dieta típica de adolescentes. Achei que o impacto em mim seria menor do que o observado no estudo do Kevin. Mas acabei ganhando um monte de peso, que levei dois anos para perder.
Isso é impressionante. Levou dois anos para o sr. perder o peso adquirido em um mês comendo uma dieta 80% composta por ultraprocessados.
Sim, porque eu ganhei mais de 6 kg e perder peso, mesmo 1 kg, é difícil. E eu ganhei mais peso depois que a dieta de ultraprocessados acabou porque eu estava me sentindo um lixo.
O sr. relata, no livro, o impacto não só do ganho de peso, mas da forma como o sr. se sentia durante a dieta de ultraprocessados.
Eu me sentia péssimo. Quando você está nessa dieta, comendo essa comida, você já se sente mal. Mas você não percebe que é a comida. Você imagina que sua esposa e suas filhas tiraram aquele mês para ser especialmente irritantes. É o que acontece quando você está cansado e qualquer pessoa ao redor te irrita e você acha que eles são o problema. Mas eles não são. O problema é cansaço ou estresse. E isso vale para a comida. Nós não associamos o mal-estar à comida.
Quando eu parei a dieta, me senti melhor entre 24 horas e 48 horas depois. Uma semana depois, me senti ainda melhor. Mas as mudanças no meu cérebro foram duradouras. Eu continuei viciado naquela comida, apesar de não gostar mais dela. É importante diferenciar gostar de querer. Eu sentia necessidade daquela comida, mas, quando a comia, a achava nojenta. Foram meses confusos, em que eu pedia um fast food e jogava [a comida] fora sem comer.
No livro o sr. diz que a popularidade dos ultraprocessados não se dá necessariamente porque são alimentos deliciosos ou benéficos, mas por serem baratos e práticos. O sr. acha que existe um aspecto social da comida ultraprocessada que precisa ser levado em consideração nesse debate?
Você está certa, as pessoas não querem comer essas coisas. Veja o que as pessoas muito ricas comem, o que as celebridades comem. Talvez com exceção de Donald Trump comendo seu McDonald's, são pessoas que comem muito bem. Se uma pessoa não precisasse comer ultraprocessados, ela não comeria. Comida de verdade custa muito dinheiro no Reino Unido. Devemos encarecer os ultraprocessados e mudar os sistemas de subsídios. Ultraprocessados são baratos na hora de comprar e caros na hora de comer. É o custo da saúde pública, da poluição com os plásticos, da emissão de carbono.
Existem casos no Brasil de crianças que estão simultaneamente obesas e desnutridas, em grande parte porque elas se alimentam de ultraprocessados em versões ainda mais baratas.
É crucial entender que obesidade e desnutrição andam de mãos dadas. A mesma comida que causa obesidade leva à desnutrição. Pensamos na desnutrição como uma deficiência de calorias, mas pode haver um excesso. São alimentos que causam desnutrição porque eles existem a partir da destruição de nutrientes na comida, que são rearranjados para garantir durabilidade.
Os Estados Unidos baniram o corante vermelho nº3, que já era banido na União Europeia, onde também se proíbe o dióxido de titânio. Como o sr. enxerga essas tentativas de regulação?
Existem duas abordagens para isso. Há quem diga que é possível tornar os hambúrgueres do McDonald's 10% mais saudáveis. Tire o sal, o açúcar, adicione fibra, proteína e vitaminas —para algumas pessoas, isso seria um grande ganho. Banir corantes é similar no sentido de ser um passo na direção certa. É positivo por revelar o poder da indústria alimentícia, revela o desejo de colocar componentes maléficos na comida.
Mas mesmo sem corantes, com menos açúcar, menos sal, são alimentos que ainda seriam ultraprocessados. A genialidade da classificação Nova está em sinalizar que o processamento é a questão. Eu acho impossível reformular ultraprocessados. Não existe ultraprocessado saudável. Existem menos maléficos, mas só. O corante vermelho não é o prejudicial desses produtos. O que é prejudicial é que todos os aspectos dele levam ao consumo excessivo e ao lucro. Não há aspecto nutritivo ou de saúde. O corante é só um sinal de que uma comida é feita por uma empresa que não se importa com a saúde.
Já que o sr. mencionou o consumo excessivo como um problema, algo que eu me pergunto sempre, e imagino que muita gente que goste de comer M&M's ocasionalmente também queira saber, é se existe uma quantidade segura de ultraprocessados que podemos ingerir.
Os efeitos na saúde são variáveis de acordo com a dosagem. É como com o cigarro. Não tem quantidade segura, mas um cigarro por semana não vai te fazer um grande mal se você já está exposta à poluição de São Paulo. Um teco de cocaína por mês não vai fazer mal, um pouquinho de heroína. O problema com a heroína e os M&M's é que é difícil comer um só. Ninguém passa a semana comendo ensopado caseiro, vegetais frescos e saladas de frutas e chega na sexta-feira e come M&M's. As pessoas tomam sorvete na quinta-feira e [comem] uma barra de chocolate no café da manhã e biscoitos à tarde e tomam mais sorvete no sábado e comem um cachorro-quente no domingo. O problema é o padrão de dieta.
Pensando no consumo infantil de ultraprocessados, e até na experiência com sua filha pequena comendo uma tigela de cereais com o sr. durante a parte ultraprocessada do experimento, como o sr. vê a questão do marketing direcionado aos pequenos, com animais fofos e cores chamativas?
As empresas predam os mais vulneráveis, os menos escolarizados, os mais pobres. As crianças são as mais vulneráveis de todos, e esse processo começa no marketing, que começa na persuasão para que os pais troquem o leite materno por fórmula. Comida de verdade é algo desafiador. Tem que mastigar, muitas vezes são fibrosas, amargas. Crianças comem mais que os adultos quando se pensa no consumo por peso e eles não sabem ler as caixas do que comem. Eles não têm autocontrole, são impulsivos. Os cartoons precisam sair das embalagens. Precisamos proteger as crianças do marketing.
Houve na Europa um debate acirrado sobre o Nutri Score, o sistema de etiquetas que classifica alimentos como saudáveis ou prejudiciais. A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni pegou a briga pra si no contexto de um debate sobre a valorização de queijos, presuntos e produtos artesanais nacionais, que acabaram mal avaliados nesse sistema. É um projeto eficaz?
Não há forma perfeita de descrever comida saudável ou não saudável. Países sul-americanos têm bons sistemas, a partir da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde). Mas será que um açougueiro de uma cidade do interior precisa colocar um aviso de excesso de sal e gordura no presunto que ele fez? Eu não acho que essas pessoas sejam parte do problema de saúde pública em curso. Presunto não é saudável, mas pessoas não compram quantidades gigantes disso. É parte de um modo de viver tradicional.
Temos que construir leis que não penalizem o pequeno produtor que faz comida tradicional. O jeito fácil é deixar claro que estamos falando de alimentos feitos por grandes empresas, embalados, que não demandam preparo posterior. O problema não é uma empanada tradicional vendida na rua ou o queijo da delicatessen. Nada disso é vendido em embalagens com personagens infantis. Se o alimento vai ter um aviso na embalagem, deveria ser proibido ter também um personagem.
Existe um debate, capitaneado por pesquisadores em Harvard, de que alguns ultraprocessados são piores do que outros. As carnes seriam os piores, e um iogurte seria melhor do que um refrigerante. Devemos levar isso em consideração ou todos os ultraprocessados devem ser tratados da mesma forma?
Podemos discutir o dia todo se pão é melhor que chocolate, se uma dieta só de pão seria melhor que uma dieta só de chocolate. Mas ninguém faz isso. O pão está na base da dieta e é cheio de açúcar, sal e gordura. Sempre mencionam o iogurte, que é cheio de açúcar. Eles deveriam ganhar um aviso de que foram adoçados artificialmente. Ninguém está dizendo que tudo é exatamente igual, que Cheetos é igual a pão. Mas é difícil criar uma análise de dados de subgrupos quando olhamos índices de sal, açúcar, gordura e teor calórico. Para comunicar isso às pessoas você cria um sistema que diz que Cheetos é uma merda e que o pão também não é lá essas coisas, mas melhor que o Cheetos.
Bárbara Blum da Folha de São Paulo entrevistou o médico Christofer van Tulleken
Livro Gente Ultra-Processada
Preço R$ 80 (432 págs.)Autoria Christoffer van TullekenEditora Elefante e O Joio e o TrigoTradução Érika Nogueira Vieir
RAIO-X | CHRIS VAN TULLEKEN, 48
1978, Londres. É médico formado pela Universidade de Oxford e autor de "Gente Ultraprocessada". É apresentador de TV na Inglaterra e esteve a frente de programas como "Medicine Men Go Wild" e "Operation Ouch!".
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2025/03/nao-existe-alimento-ultraprocessado-saudavel-diz-medico-britanico.shtml
Eu não estou gostando, mas não consigo parar", diz o infectologista Christopher van Tulleken, do Hospital de Doenças Tropicais em Londres, em um vídeo para a BBC britânica em que documenta o mês durante o qual se submeteu a uma dieta na qual 80% dos alimentos eram ultraprocessados.
Nesse período curto, Van Tulleken ganhou mais de seis quilos, seu cérebro passou a associar comida com as recompensas do sistema límbico e exames acusaram que os hormônios reguladores da saciedade e da fome ficaram totalmente descontrolados. É sob essa dieta com 80% de ultraprocessados que vivem 20% dos adolescentes no Reino Unido —no geral, o consumo de ultraprocessados corresponde a 66% da dieta dos jovens.
O experimento na pegada "Super Size Me" —documentário de 2004 em que o diretor Morgan Spurlock come McDonald's por um mês— não foi um pedido desesperado de socorro de Van Tulleken. Ele emulou, guardadas as proporções, um dos principais estudos que tenta comprovar a tese da classificação Nova, criada pelo brasileiro Carlos Monteiro e outros pesquisadores do Nupens/USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) e que sugere que o nível de processamento é determinante na qualidade dos alimentos.
Van Tulleken partiu dos achados de Kevin Hall, pesquisador do NIH (National Institute of Health) dos Estados Unidos, em um estudo em que voluntários ficaram um mês confinados num laboratório onde dormiam, comiam e se exercitavam. A comida, porém, era ultraprocessada para metade do experimento e livre de ultraprocessados para a outra metade.
"Se você se preocupa com a sua alimentação, pegue seu pacote de M&M's e leia os ingredientes. E se pergunte por que eles estão ali", diz Van Tulleken em entrevista à Folha, após questão levantada pela reportagem. "Pode haver óleo de palma, corantes, emulsificantes. Isso é realmente delicioso? Tratar um ultraprocessado como um produto de luxo, que é o que a indústria quer, não cola. A comida não é boa o bastante e se torna nojenta rapidamente."
O médico reforça que não acredita que existam bons ultraprocessados, seja um iogurte, um pão de forma ou um salgadinho. O problema, ele diz, não é o consumo esporádico de, digamos, um pacotinho dos confeitos coloridos, mas o fato de que esse tipo de alimento é hoje a base de dietas —e disputas econômicas e políticas acirradas— ao redor do mundo.
Por que o sr. decidiu se usar de cobaia nesse experimento inspirado nos estudos de Kevin Hall?
Por duas razões: primeiro, queríamos um paciente piloto para um estudo maior, que está acontecendo agora. Queríamos entender se valia a pena fazer um grande estudo, então a melhor coisa era ter um voluntário para ver quais mudanças ocorriam num ambiente não controlado. Em segundo lugar, filmamos o experimento para um documentário da BBC, e documentários precisam de pessoas fazendo coisas interessantes. Não dá para só ficar falando.
Há uma terceira razão que é: eu não pensei que seria algo de mais. Eu acreditava nas evidências do Kevin [Hall], mas não me parecia que veríamos grandes mudanças, principalmente porque eu não estava confinado. Eu estava livre no mundo, ingerindo uma dieta típica de adolescentes. Achei que o impacto em mim seria menor do que o observado no estudo do Kevin. Mas acabei ganhando um monte de peso, que levei dois anos para perder.
Isso é impressionante. Levou dois anos para o sr. perder o peso adquirido em um mês comendo uma dieta 80% composta por ultraprocessados.
Sim, porque eu ganhei mais de 6 kg e perder peso, mesmo 1 kg, é difícil. E eu ganhei mais peso depois que a dieta de ultraprocessados acabou porque eu estava me sentindo um lixo.
O sr. relata, no livro, o impacto não só do ganho de peso, mas da forma como o sr. se sentia durante a dieta de ultraprocessados.
Eu me sentia péssimo. Quando você está nessa dieta, comendo essa comida, você já se sente mal. Mas você não percebe que é a comida. Você imagina que sua esposa e suas filhas tiraram aquele mês para ser especialmente irritantes. É o que acontece quando você está cansado e qualquer pessoa ao redor te irrita e você acha que eles são o problema. Mas eles não são. O problema é cansaço ou estresse. E isso vale para a comida. Nós não associamos o mal-estar à comida.
Quando eu parei a dieta, me senti melhor entre 24 horas e 48 horas depois. Uma semana depois, me senti ainda melhor. Mas as mudanças no meu cérebro foram duradouras. Eu continuei viciado naquela comida, apesar de não gostar mais dela. É importante diferenciar gostar de querer. Eu sentia necessidade daquela comida, mas, quando a comia, a achava nojenta. Foram meses confusos, em que eu pedia um fast food e jogava [a comida] fora sem comer.
No livro o sr. diz que a popularidade dos ultraprocessados não se dá necessariamente porque são alimentos deliciosos ou benéficos, mas por serem baratos e práticos. O sr. acha que existe um aspecto social da comida ultraprocessada que precisa ser levado em consideração nesse debate?
Você está certa, as pessoas não querem comer essas coisas. Veja o que as pessoas muito ricas comem, o que as celebridades comem. Talvez com exceção de Donald Trump comendo seu McDonald's, são pessoas que comem muito bem. Se uma pessoa não precisasse comer ultraprocessados, ela não comeria. Comida de verdade custa muito dinheiro no Reino Unido. Devemos encarecer os ultraprocessados e mudar os sistemas de subsídios. Ultraprocessados são baratos na hora de comprar e caros na hora de comer. É o custo da saúde pública, da poluição com os plásticos, da emissão de carbono.
Existem casos no Brasil de crianças que estão simultaneamente obesas e desnutridas, em grande parte porque elas se alimentam de ultraprocessados em versões ainda mais baratas.
É crucial entender que obesidade e desnutrição andam de mãos dadas. A mesma comida que causa obesidade leva à desnutrição. Pensamos na desnutrição como uma deficiência de calorias, mas pode haver um excesso. São alimentos que causam desnutrição porque eles existem a partir da destruição de nutrientes na comida, que são rearranjados para garantir durabilidade.
Os Estados Unidos baniram o corante vermelho nº3, que já era banido na União Europeia, onde também se proíbe o dióxido de titânio. Como o sr. enxerga essas tentativas de regulação?
Existem duas abordagens para isso. Há quem diga que é possível tornar os hambúrgueres do McDonald's 10% mais saudáveis. Tire o sal, o açúcar, adicione fibra, proteína e vitaminas —para algumas pessoas, isso seria um grande ganho. Banir corantes é similar no sentido de ser um passo na direção certa. É positivo por revelar o poder da indústria alimentícia, revela o desejo de colocar componentes maléficos na comida.
Mas mesmo sem corantes, com menos açúcar, menos sal, são alimentos que ainda seriam ultraprocessados. A genialidade da classificação Nova está em sinalizar que o processamento é a questão. Eu acho impossível reformular ultraprocessados. Não existe ultraprocessado saudável. Existem menos maléficos, mas só. O corante vermelho não é o prejudicial desses produtos. O que é prejudicial é que todos os aspectos dele levam ao consumo excessivo e ao lucro. Não há aspecto nutritivo ou de saúde. O corante é só um sinal de que uma comida é feita por uma empresa que não se importa com a saúde.
Já que o sr. mencionou o consumo excessivo como um problema, algo que eu me pergunto sempre, e imagino que muita gente que goste de comer M&M's ocasionalmente também queira saber, é se existe uma quantidade segura de ultraprocessados que podemos ingerir.
Os efeitos na saúde são variáveis de acordo com a dosagem. É como com o cigarro. Não tem quantidade segura, mas um cigarro por semana não vai te fazer um grande mal se você já está exposta à poluição de São Paulo. Um teco de cocaína por mês não vai fazer mal, um pouquinho de heroína. O problema com a heroína e os M&M's é que é difícil comer um só. Ninguém passa a semana comendo ensopado caseiro, vegetais frescos e saladas de frutas e chega na sexta-feira e come M&M's. As pessoas tomam sorvete na quinta-feira e [comem] uma barra de chocolate no café da manhã e biscoitos à tarde e tomam mais sorvete no sábado e comem um cachorro-quente no domingo. O problema é o padrão de dieta.
Pensando no consumo infantil de ultraprocessados, e até na experiência com sua filha pequena comendo uma tigela de cereais com o sr. durante a parte ultraprocessada do experimento, como o sr. vê a questão do marketing direcionado aos pequenos, com animais fofos e cores chamativas?
As empresas predam os mais vulneráveis, os menos escolarizados, os mais pobres. As crianças são as mais vulneráveis de todos, e esse processo começa no marketing, que começa na persuasão para que os pais troquem o leite materno por fórmula. Comida de verdade é algo desafiador. Tem que mastigar, muitas vezes são fibrosas, amargas. Crianças comem mais que os adultos quando se pensa no consumo por peso e eles não sabem ler as caixas do que comem. Eles não têm autocontrole, são impulsivos. Os cartoons precisam sair das embalagens. Precisamos proteger as crianças do marketing.
Houve na Europa um debate acirrado sobre o Nutri Score, o sistema de etiquetas que classifica alimentos como saudáveis ou prejudiciais. A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni pegou a briga pra si no contexto de um debate sobre a valorização de queijos, presuntos e produtos artesanais nacionais, que acabaram mal avaliados nesse sistema. É um projeto eficaz?
Não há forma perfeita de descrever comida saudável ou não saudável. Países sul-americanos têm bons sistemas, a partir da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde). Mas será que um açougueiro de uma cidade do interior precisa colocar um aviso de excesso de sal e gordura no presunto que ele fez? Eu não acho que essas pessoas sejam parte do problema de saúde pública em curso. Presunto não é saudável, mas pessoas não compram quantidades gigantes disso. É parte de um modo de viver tradicional.
Temos que construir leis que não penalizem o pequeno produtor que faz comida tradicional. O jeito fácil é deixar claro que estamos falando de alimentos feitos por grandes empresas, embalados, que não demandam preparo posterior. O problema não é uma empanada tradicional vendida na rua ou o queijo da delicatessen. Nada disso é vendido em embalagens com personagens infantis. Se o alimento vai ter um aviso na embalagem, deveria ser proibido ter também um personagem.
Existe um debate, capitaneado por pesquisadores em Harvard, de que alguns ultraprocessados são piores do que outros. As carnes seriam os piores, e um iogurte seria melhor do que um refrigerante. Devemos levar isso em consideração ou todos os ultraprocessados devem ser tratados da mesma forma?
Podemos discutir o dia todo se pão é melhor que chocolate, se uma dieta só de pão seria melhor que uma dieta só de chocolate. Mas ninguém faz isso. O pão está na base da dieta e é cheio de açúcar, sal e gordura. Sempre mencionam o iogurte, que é cheio de açúcar. Eles deveriam ganhar um aviso de que foram adoçados artificialmente. Ninguém está dizendo que tudo é exatamente igual, que Cheetos é igual a pão. Mas é difícil criar uma análise de dados de subgrupos quando olhamos índices de sal, açúcar, gordura e teor calórico. Para comunicar isso às pessoas você cria um sistema que diz que Cheetos é uma merda e que o pão também não é lá essas coisas, mas melhor que o Cheetos.
Bárbara Blum da Folha de São Paulo entrevistou o médico Christofer van Tulleken
Livro Gente Ultra-Processada
Preço R$ 80 (432 págs.)Autoria Christoffer van TullekenEditora Elefante e O Joio e o TrigoTradução Érika Nogueira Vieir
RAIO-X | CHRIS VAN TULLEKEN, 48
1978, Londres. É médico formado pela Universidade de Oxford e autor de "Gente Ultraprocessada". É apresentador de TV na Inglaterra e esteve a frente de programas como "Medicine Men Go Wild" e "Operation Ouch!".
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