sábado, 6 de fevereiro de 2010

Não matarás!

O dano causado na ação do político corrupto é muito mais grave para o grupo social


O MANDAMENTO religioso em favor da vida está sendo desrespeitado, cada vez mais, no Estado de São Paulo. A Folha deu notícia pormenoriza-da a respeito. As explicações para o fenômeno social são as mais diversas. No plano jurídico, a convicção mais frequente diz que a dosagem das penas (a dosimetria penal) está errada. Nessa corrente predomina a invocação de punições mais severas, até a prisão perpétua e, como querem alguns, a de morte. A opinião é aceitável para o leitor? Pergunto, porque é o primeiro passo da avaliação desejada.
A palavra dosimetria apareceu na coluna mais de uma vez, enquanto método de determinar a punição criminal. É o cálculo da quantidade e da qualidade punitiva, para retirar o delinquente do convívio social e o desestimular da reincidência. Na norma do direito, porém, o não matarás, que parece verdade absoluta, se desdobra em aspectos muito sofisticados. Matar é tirar a vida. O crime existe quando realizado (a vítima perece), mas há variáveis. A primeira é processual. O homicídio cometido ou tentado é julgado pelo júri e não pelo juiz de carreira. A segunda variável é substancial. Como se verifica no artigo 121 do Código Penal, começa simplesmente com "matar alguém", mas logo oferece paralelos, a contar da intenção de matar. O crime qualificado (por exemplo: praticado mediante pagamento ou por motivo fútil), tem a pena agravada. Para o homicídio culposo, sem intenção de causar o resultado, a diferença legal é grande. Havendo intenção, a pena vai de seis a 20 anos; não havendo é de um a três anos. Na primeira hipótese há a reclusão do condenado; no segundo apenas detenção, que lhe dá a possibilidade de cumprir a pena sem ir para a cadeia.
As alternativas vão ao infinito: quando a morte da vítima não ocorre no momento do ataque ou resultou de omissão do agente. Cada hipótese tem milhares de avaliações diversificadas. São tantas que, às vezes resultam em claras injustiças, como acontece quando a mídia ataca o acusado. Também surgem quando envolvem pessoas de alguma notoriedade. Em suma: a construção da justiça oficial depende de uma série de fatores que, óbvio, incluem também a qualidade dos advogados do acusado.
Na confusão criada é natural que retornem os habituais defensores da pena de morte, mas a experiência em países de populações alfabetizadas e mais homogêneas, o simples agravamento da punição não diminui a criminalidade. Pergunto, indo ao fundo da consciência de cada um: qual a pena mais grave para a conduta do filho, que mata seus pais à traição em casos de dano individual, restrito às vítimas, ou a da conduta do administrador público que amealha grande fortuna pela corrupção ativa e passiva, com dano para toda a comunidade? O dano causado na ação do político corrupto é muito mais grave para o grupo social. É verdade que o crime de morte causa dano irreparável à vítima, mas os milhares de atingidos pelo político imaginário, compõem segmentos da sociedade, em particular dos mais pobres. O prejuízo físico e moral é maior. Mostra, enfim, alternativas inconciliáveis, entre a ciência do direito e o conhecimento comum. Como eliminar o contraste? Assegurada a liberdade de manifestação, o debate mostrará o caminho.



De Walter Ceneviva na Folha de São Paulo de 06/02/10

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