Não sei se hoje ainda ocorre, mas, há algumas décadas, desfrutava de certa popularidade, inclusive por sua versão cinematográfica, o romance infanto-juvenil que narra a história de Poliana. Essa personagem era uma jovem que, malgrado uma sucessão de infortúnios na vida, amiúde se dedicava a uma brincadeira que chamava de “jogo do contente”, pela qual tentava encontrar em tudo o seu “lado bom” e, assim, “tornava” o mundo melhor, descobrindo sempre razões para se alegrar até em situações francamente insatisfatórias.
Essa novela, de otimismo ingênuo e risonho, embutia, na verdade, uma mensagem conformista. Ela vem-me à memória porque, ao fazermos um balanço que se pretenda realista da situação atual dos direitos humanos, devemos, logo de partida, nos desvencilhar da “síndrome de Poliana”. Nossa postura ou será exigente e crítica, ou será inútil. O terreno do qual devemos partir é a própria realidade. Olhando-a, temos a obrigação de nos posicionar face ao que de fato vermos. Se queremos transformar a realidade, será pela arma da crítica, nunca pela “paciência” complacente, nem pelo “contentamento” com avanços já obtidos.
Nesse sentido, cabe, antes de tudo, identificar qual é a tendência principal de nosso tempo em relação à temática dos direitos humanos, quero dizer, em relação à situação em que objetivamente se encontram esses direitos. Não podemos fugir da constatação de que vivemos numa quadra – no Brasil e no planeta – em que os direitos humanos, em quase todas as suas dimensões, estão sob fogo. Houve um período, em meados do século XX, em que se dava o contrário. Vivíamos, então, uma conjuntura que favorecia a luta pelos direitos humanos, e uso com ênfase a palavra luta porque, como sabemos, a conquista desses direitos foi e segue sendo fruto da luta social, uma luta que implica em contrariar interesses freqüentemente poderosos. Mas, em meados do século XX, tínhamos uma situação internacional em que tais lutas eram travadas em terreno propício. Que situação era aquela?
O breve Estado de Bem-Estar
No pós-Segunda Guerra Mundial, havia se configurado uma correlação mundial entre as forças políticas caracterizada por fatores de ordem muito progressista. Primeiro, a consolidação da União Soviética como potência econômica e militar, após derrotar o nazismo. Basta imaginarmos o cenário de tragédia e pesadelo se houvesse ocorrido o contrário, se o nazismo houvesse derrotado a União Soviética e vencido a Segunda Guerra Mundial. Segundo, em conseqüência dessa vitória, se conformara na Europa Central e Oriental o chamado “campo” socialista. Logo esse “campo” seria fortalecido pelas vitórias das revoluções chinesa (1949) e cubana (1959), além da constituição de um amplo leque de nações “não-alinhadas”. Malgrado indícios já então detectáveis de degeneração institucional nos países do “socialismo real”, que só se agravariam nas décadas subseqüentes, e malgrado divergências políticas entre eles mesmos, o fato era que perto de um terço da humanidade trilhava um caminho de desenvolvimento econômico-social que, de alguma maneira, contrariava a lógica ocidental de livre-mercado. Terceiro, alastravam-se como incêndio, pela África e Ásia, as insurreições nacionais contra o colonialismo europeu. Em quarto lugar, proliferavam ao redor do planeta partidos centrados, em graus variados, na defesa de interesses dos trabalhadores: partidos comunistas, socialistas, trabalhistas, social-democratas ou nacionalistas de esquerda. Em quinto lugar, correlatamente, também o movimento operário em escala mundial se organizava em sindicatos, seja nos próprios EUA, em toda a Europa, no Japão, até na América Latina.
Esse conjunto de fatores de pressão favorecia a extensão de direitos econômicos, sociais e culturais aos trabalhadores, ao menos nos países centrais (o Estado de Bem-Estar), a auto-determinação dos povos e a própria defesa dos direitos individuais, face a consciência que se criava mundialmente de repúdio às barbaridades cometidas pelo nazi-fascismo durante a guerra. E digo barbaridades do nazi-fascismo porque os vencedores da segunda guerra mundial só trataram das violações cometidas pelos perdedores. Os crimes contra a humanidade praticados pelos vencedores não foram a julgamento: o bombardeio-massacre de Dresden, até militarmente sem sentido, ficou impune, assim como ficaram impunes os dois maiores genocídios instantâneos de toda a história da humanidade, perpetrados em agosto de 1945 em Hiroshima e Nagasaki, contra um Japão já derrotado. Os vencedores da guerra julgaram apenas os crimes contra os direitos humanos cometidos pelos perdedores – mas mesmo isso foi um avanço.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada pela ONU em dezembro de 1948, foi resultado daquela correlação mundial de forças. Sem a pressão dos países do bloco soviético e sem a ascensão operária que se alastrava pelo mundo, seria inimaginável a inclusão dos direitos econômicos, sociais e culturais naquele documento, assim como seria inimaginável a inclusão do direito de auto-determinação dos povos sem as lutas de libertação nacional então em curso.
Crise dos direitos sociais
Mas aquela correlação mundial de forças se inverteu no final do século XX, a começar pelo impacto do formidável incremento da produtividade do trabalho, decorrente da fortíssima injeção de fatores de ciência e tecnologia na indústria, na agricultura e no setor de serviços. Entre as décadas de 1970 e 1980, a produtividade do trabalho aumentou muito rapidamente, tornando agudas tanto a concorrência econômica mundial, como a expansão do desemprego no planeta. Surgia, já na década de 1980, uma categoria historicamente nova – a do desemprego permanente, isto é, estrutural ao capitalismo.
Na antiga categoria do “exército industrial de reserva”, estudada por Karl Marx, quando a economia capitalista entrava em processo de expansão, o desemprego recuava (embora não se extinguisse), e quando a economia mergulhava em crise, o desemprego se alastrava. Essa “reserva” humana de desempregados, que cresce ou diminui ao sabor das crises cíclicas do capitalismo, desempenhava/desempenha, objetivamente, a função social de rebaixar o preço da força de trabalho. Durante as fases de expansão econômica, evita que os salários dos trabalhadores se elevem além de certo patamar e, inversamente, rebaixa de modo drástico esses salários nos momentos de recessão/depressão. Num e noutros casos, a existência de uma massa desempregada preserva a taxa de lucros dos empresários.
A partir da década de 1980, a esse emprego-desemprego cíclico, que não deixa de existir e de operar, sobrepõe-se o desemprego estrutural: o capitalismo, valendo-se da tecnologia mais sofisticada e recente, passa a descartar de modo permanente uma quantidade imensa de trabalhadores ao redor do planeta, eliminando atividades e profissões, substituídas para sempre mediante a informatização/automação/robotização de ramos econômicos inteiros. Os chamados programas de “re-qualificação” de mão-de-obra só tem sido capazes de reintegrar à economia uma parcela insignificante desses trabalhadores descartados, pois os novos meios de produção dinamizados pela ciência e pela tecnologia conseguem atingir as metas produtivas anteriores, e até superá-las, empregando quantidade crescentemente menor de trabalhadores.
A proposta muito óbvia e racional de redução progressiva e universal da jornada de trabalho, na mesma proporção das elevações da produtividade e com manutenção dos níveis salariais, certamente estancaria o crescimento do desemprego. Mas essa solução é inaplicável num mercado tangido por concorrência feroz e, ademais, contraria a própria lógica da busca do lucro, único motor do capitalismo. Só houve reduções duradouras da jornada, com manutenção dos salários, em alguns momentos do século XX marcados por forte mobilização operária. Numa conjuntura de fraqueza relativa dos trabalhadores, como esta em que, salvo exceções localizadas e fugazes, o planeta ingressou desde o final da década de 1970, a redução de jornada só ocorre no eventual interesse patronal de reduzir a produção em momentos de crise – e, então, é invariavelmente acompanhada da redução dos salários, à qual os trabalhadores acabam se submetendo para postergar o pior, o desemprego.
Noutras palavras: se, nos momentos de euforia econômica, os super-lucros são apropriados privadamente pelos capitalistas, nos momentos de crise os prejuízos são logo “socializados”, seja pela expansão do desemprego imediato e bruto, seja pelo socorro financeiro que os Estados, sacando recursos públicos, colocam sem pestanejar à disposição dos empresários “em dificuldades”.
Assim, nesta nova fase em que ingressou, sem retorno possível, o capitalismo se converteu em máquina feroz de expulsão massiva de seres humanos do mercado de trabalho. Entenda-se: expulsão da sociedade e da própria vida autônoma, pois estar fora do mercado equivale a não existir, a perder toda autonomia pessoal, a ficar na dependência da caridade privada ou do assistencialismo público, se e quando caridade e/ou assistencialismo comparecerem.
Essa tendência, desde sempre intrínseca ao capitalismo devido à apropriação privada da ciência e da tecnologia, ganhou fôlego sem mais qualquer limitação política a partir do desmoronamento da União Soviética e dos países do chamado “campo” socialista da Europa Central e Oriental. O fim da bipolaridade política, econômica e militar permitiu que aquela tendência da economia capitalista, que vinha se firmando desde as décadas de 1970 e 1980, triunfasse agressivamente a partir da década de 1990. Desde então, por assim dizer, as classes dominantes do planeta vêm respirando aliviadas, após 80 anos de concessões parciais aos trabalhadores, período durante o qual haviam sido forçadas a entregar muitos anéis para não perder os dedos, isto é, para conter os riscos de revolução social. O caminho para manter-se à tona na intensificada competição mundial inter-capitalista passa agora por “cortar custos”, isto é, cortar despesas com direitos sociais, que entram em recuo por toda parte. Eis o brado empresarial de vitória: “Chegou a hora de recuperarmos o que havíamos cedido!”.
Portanto, sem mais qualquer ilusão quanto à efetividade de um direito ao trabalho, e com os demais direitos trabalhistas em recuo internacional, o Direito do Trabalho tornou-se uma cidadela sob cerco. Para o capital manter-se à tona na concorrência, vale até a restauração de relações de trabalho análogas ao trabalho escravo.
Retorno do trabalho escravo
Aliás, esse tema – o contemporâneo retorno do trabalho escravo – dá bem a medida do grau de hipocrisia e degradação humana inerente às relações sociais capitalistas. A partir do século XVI, para suprir a carência de força de trabalho no recém-conquistado Novo Mundo, o então nascente capitalismo europeu não hesitou em reduzir à escravidão os índios, num primeiro momento, e logo depois também os africanos. Todos os discursos “legitimadores” daquela prática infamante foram logo providenciados. No pensamento religioso, cogitou-se muito depressa que os indígenas e os africanos não seriam propriamente “humanos”, que seriam desprovidos de alma, ao menos de alma “igual” à dos europeus – portanto, sua redução à condição de “bens de comércio”, submetidos a trabalho forçado e a castigos corporais, não configuraria “pecado”. Mesmo após a Igreja Católica “reconhecer” a condição humana aos indígenas das Américas, sua captura e redução ao cativeiro não foi jamais detida, pois essa prática já havia se incorporado à conduta corrente dos colonizadores.
Quanto aos africanos, a história é muito conhecida: durante quase quatrocentos anos, esses “animais vocais”, não-humanos e sem alma divina, foram vítimas de captura e seqüestro na África, transportados pelo oceano sob ferros, amontoados nos porões imundos de navios negreiros para, ao final, serem vendidos como “mercadorias semoventes” nos portos das Américas. Até o século XIX, escravagistas cristãos das Américas deslocavam citações bíblicas em seu favor, como as de Gênesis 9 (versículos 25 a 27)3 e de São Paulo, na sua Epístola aos Romanos.
Esse comércio de carne humana, gerador da diáspora negra que se abateu sobre mais de 12 milhões de vítimas, foi um dos mais importantes fatores a propiciar a chamada “acumulação primitiva” de capital que, no final do século XVIII, conduziria ao florescimento irresistível da Revolução Industrial e do capitalismo industrial moderno.
Ao longo do século XIX, as burguesias das nações industrializadas se deram conta de que o trabalho assalariado terminava saindo “mais barato” do que a manutenção de escravos até o final de suas vidas e que, ademais, a generalização do trabalho assalariado convinha à expansão de mercados consumidores nas colônias e nos países do Novo Mundo. Só então, as canhoneiras de Sua Majestade britânica foram colocadas a serviço de dar por encerrado o “ignominioso” (como passou a ser chamado) comércio de seres humanos. O Brasil deteve a posição de último país do planeta a abolir legalmente a escravatura, o que certamente nos informa muito a respeito da mentalidade de nossas classes dominantes.
Mas a questão escrava está longe de poder ser “dada por encerrada” neste início século XXI. Nenhuma ilusão a esse respeito. Superado o escravismo colonial ao final do século XIX, o trabalho escravo ressurgiu, sob formas novas e igualmente infames, ao final do século XX – justamente no momento em que as lutas operárias perdiam vigor ao redor do planeta. Mais uma vez, o capitalismo triunfante demonstra que consegue, sem qualquer aguilhão moral, combinar relações de trabalho “modernas” (assalariadas) com relações “atrasadas” (servis ou análogas à da escravidão). Trata-se do regurgitamento contemporâneo e feroz da velha lei capitalista do desenvolvimento desigual e combinado.
Seja mediante a retomada do seqüestro antigo e direto (África), seja pelo confinamento de trabalhadores migrantes reduzidos ao trabalho forçado por “dívidas” impagáveis (Amazônia, Ásia), seja pela submissão de crianças e mulheres extremamente pobres (zonas rurais da América Latina e da Ásia), seja, ainda, pela submissão “voluntária” de estrangeiros em situação irregular (grandes cidades da América Latina, da Ásia, até da Europa ocidental), relações de trabalho abertamente escravas ou a elas análogas voltam a ser adotadas em várias regiões, não importa quantos solenes tratados internacionais hajam proibido o trabalho não-livre. Nas franjas tecnológicas do capitalismo, onde quer que o trabalho braçal não-qualificado ainda possa mostrar-se “atraente” a empresários, diversas modalidades “invisíveis” de escravidão retomam fôlego, nutrindo-se do desemprego massivo, da desvalorização da força de trabalho e da omissão/conivência hipócrita das elites economicamente dominantes.
Esse movimento socialmente perverso, claro, só se agrava nos momentos de crise econômica, que não o inventa, mas o expande. A crise dos direitos econômicos, sociais e culturais, que se expressa em várias modalidades, já estava perfeitamente identificada ao término do século XX. E, por efeito reflexo, os direitos individuais-civis também acabavam sendo atingidos, pois não constitui novidade que aos desempregados, ou aos trabalhadores com salários insuficientes para atender as necessidades fundamentais, também os direitos civis se reduzem a frase de efeito – para não falar dos milhões de trabalhadores e trabalhadoras submetidos àquelas novas formas de escravidão. Mas, quanto a isto – o ataque aos direitos individuais – a entrada do século XXI nos reservaria surpresas sombrias.
Crise dos direitos individuais
Sob o mote/pretexto da defesa nacional a qualquer custo, as potências imperiais passaram a editar leis e a adotar práticas de violação a antigos direitos individuais que se imaginavam já “consagrados”. Qual é o significado do campo de concentração de Guantánamo, dos sinistros calabouços de Abu Ghraib e de outros centros de tortura no Iraque e no Afeganistão, dos centros secretos de “interrogatório” e de eliminação de prisioneiros seqüestrados, instalados pelos EUA em “território estrangeiro” sob complacência dos governos do Egito, do Paquistão, até de países europeus? E os inacessíveis navios-prisões que os EUA mantêm fundeados em águas internacionais? As ONGs de sempre cansaram-se de denunciar, documentar e apresentar testemunhas dessas contemporâneas fábricas de horrores. A lei norte-americana denominada Patriot Act, inacreditável recuo histórico em relação à garantia dos direitos individuais, teve reproduções aproximadas em leis adotadas na Inglaterra, na Itália, na França e na Alemanha.
Mas a ONU e outras instituições planetárias foram, diga-se com todas as letras, complacentes enquanto tudo acontecia. Salvo lamúrias inconvincentes, nada fizeram para impedir que se restaurassem práticas francamente nazistas. Pesou, isto sim, um silêncio hipócrita e conivente face ao seqüestro de suspeitos, à tortura sistemática, humilhação, privação do direito de defesa e assassinato de seres humanos de pele mais escura e idioma não-europeu.
Dando, talvez, por quase completado o “serviço sujo”, as potências imperiais já cogitam da possível “desativação” desses centros. Mas o que conta é isto: mantiveram/mantêm/manterão tais locais de barbarização de seres humanos durante o tempo que considerarem “necessário”. O recado que nos enviam é este: os direitos à vida, à integridade física e psicológica, o direito a receber uma acusação formal num processo legal que assegure o direito de defesa e o direito de ser assistido a todo tempo por um advogado, a garantia de não ser preso sem os procedimentos legais, e de não permanecer preso além da pena, não são direitos universais, não importando quantos tratados internacionais de direitos humanos tenham sido escritos, assinados e festejados com brindes de champanhe em taças de cristal.
Eis, portanto, o cenário em que nos movemos neste momento: à crise dos direitos econômicos, sociais e culturais aberta ao final do século XX, sobrepôs-se, neste início do século XXI, uma crise dos direitos individuais. O único direito individual que segue gozando de todas as garantias é o direito de propriedade. Falamos, é claro, de realidade, não de declarações solenes, nem compêndios de leis.
O direito e os direitos humanos
E aí chegamos ao fulcro da questão que talvez melhor expresse a esquizofrenia jurídica do nosso tempo: a função efetivamente desempenhada pelo direito positivo. Quando se trata de manter o status econômico-social, a efetividade do direito é imediata e ágil, essa função conservadora entra em cena e opera de modo a não deixar dúvida – até mesmo, se necessário, contra o direito anterior. Ora, dirão vocês, mas o direito positivo também está, em quase todos os países, perpassado por normas avançadas, progressistas, de defesa dos direitos humanos. Eu respondo: é esta a esquizofrenia do direito. Por um lado, nunca tivemos, tanto no direito internacional quanto no direito interno, um conjunto tão amplo e minucioso de normas de defesa de direitos humanos. Mas, a vida nos ensina, essas normas não vão à prática, ou o vão condicionalmente – se, quando e enquanto convém aos interesses dos que realmente detêm os poderes no mundo.
Esse traço ilusório do direito pode ser ilustrado com a seguinte fábula: se um dia um disco voador desviar-se de sua trajetória e tiver de fazer um pouso forçado na Terra para reparos, e estacionar nalguma faculdade de direito ou biblioteca jurídica, enquanto os marcianos-mecânicos trabalharem no motor, os demais tripulantes, muito curiosos, poderiam passar a noite se dedicando à leitura de documentos jurídicos incríveis, inclusive de uma certa Constituição Brasileira de 1988. Suponho que se deterão especialmente nos longos e belos artigos que arrolam direitos e garantias. Ao retornar a Marte, os marcianinhos relatarão maravilhados aos seus superiores hierárquicos que o paraíso realmente existe, foi encontrado – e fica no Brasil!
Ou seja, o direito, a par de sua função precipuamente conservadora, cumpre também uma função ideológica de mistificação da realidade, de retrato falso, ainda mais numa conjuntura como a atual, em que o capital expurga do seu discurso o caráter universal dos direitos humanos, ou o preserva apenas como peça decorativa da diplomacia internacional – ou, agora sim, para a defesa incondicional, e mesmo anti-social, do sacrossanto direito de propriedade. De todos os direitos humanos, esse é o único, repito, que atualmente não corre riscos, é o único que segue completamente bem defendido, e defendido inclusive contra a sociedade.
Não devemos nutrir ilusões. Ao lado da Constituição democrática e cidadã de 1988, segue em vigor, funcionando como um lembrete a todos nós, a própria lei de segurança nacional dos tempos da ditadura militar. Não se lembraram de revogar esse, como se diz, “entulho autoritário”. Assim como ainda não houve vontade política para tornar públicos os arquivos secretos da ditadura, ou para responsabilizar os assassinos e torturadores daquele tempo – o que funciona mais ou menos como uma carta branca para os assassinos e torturadores dos tempos atuais.
Aliás, um recente estudo desenvolvido pela cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, professora da Universidade de Minessota, indicou que, nos países em que os crimes das ditaduras – tortura, homicídio e “desaparecimento” – foram investigados e punidos, o índice atual de violência policial é sensivelmente inferior ao dos países que não investigaram nem puniram aqueles criminosos.
Recentemente, em 2008, o relator especial da ONU sobre execuções sumárias visitou nosso país e, em seu relatório, afirmou enfaticamente: no Brasil, a polícia tem mãos livres para matar.
A esse respeito, eu vivi uma experiência especialmente chocante no ano 2000, quando o relator especial da ONU para tortura também visitou o nosso país. Às vésperas de sua visita, foram organizadas, nas cidades pelas quais passaria, comissões de entidades da sociedade civil com o encargo de sugerir ao relator instituições locais a serem inspecionadas. Eu integrei a comissão de São Paulo. A visita, como todas as inspeções da ONU, teve caráter oficial, fora autorizada pelo governo federal e anunciada com semanas de antecedência. Era público que, em tais dias, o relator estaria em tais cidades. Portanto, houve tempo suficiente para que as autoridades policiais e carcerárias pudessem, digamos, “preparar” as repartições que eram alvos mais freqüentes de denúncias. Achávamos, por isso, que a eficácia das visitas poderia estar em grande medida comprometida.
A comissão paulista acompanhou o relator da ONU em inspeções em seis ou oito instituições públicas paulistas. E, para nossa surpresa, para nosso estarrecimento, mesmo em se tratando de uma visita previamente anunciada e divulgada pelos meios de comunicação, o relator constatou atrocidades chocantes em quase todas as instituições que visitou – desde o açoitamento de crianças com chicotes de arame numa unidade da FEBEM (atual Fundação CASA), até várias modalidades de tortura como “método” de interrogatório ou medida punitiva em unidades policiais e prisionais. O impensável aconteceu até na visita à Vara da Infância e Juventude da cidade de São Paulo. O relator da ONU observou que dez ou quinze adolescentes, com os uniformes de presidiários-mirins da FEBEM, sob vigilância de funcionários daquela instituição, haviam sido trazidos para aguardar o momento de serem ouvidos pelo juiz em audiências de seus processos de internamento. Então (e sem que isto houvesse sido programado), o relator subitamente dirigiu-se àqueles adolescentes e, por meio de um tradutor, identificou-se e começou a indagá-los sobre eventuais maus-tratos. Tudo foi muito rápido, não houve tempo para a intervenção dos funcionários. Em poucos segundos, deu-se a seguinte cena: vários garotos levantaram as camisas e exibiram, nas costas e no peito, marcas de queimadura por cigarro e outros sinais de castigos físicos.
A violação dos direitos humanos é tão escancarada em nosso país, tão generalizada, que mesmo durante uma visita publicamente anunciada não se torna possível ocultar tudo – nem mesmo no interior de um órgão do Poder Judiciário! Tudo, em todos os lugares visitados, foi gravado por um cinegrafista da BBC que acompanhava o relator. Esse documentário foi depois exibido na Europa e nos EUA, e o relatório oficial encaminhado à ONU ainda envergonha nosso país – mesmo porque, passados quase dez anos, persiste esse quadro de violação sistemática de direitos dos pobres, dos sem riqueza e sem poder, dos “invisíveis”, que não existem para a grande mídia senão quando são abatidos.
Tanto no plano dos direitos econômicos, sociais e culturais, como no plano dos direitos individuais, persistem violações, e não se trata de situações excepcionais. Temos de colocar, sem dúvida nenhuma, a mão na sujeira. Se não abrirmos os infames arquivos da ditadura militar, se é que resta alguma coisa de relevante que ainda não tenha sido “expurgada”, se é que não foi tudo convenientemente queimado, enquanto não abrirmos o que resta desses arquivos secretos, enquanto o Estado brasileiro for cúmplice desse ocultamento da verdade, não teremos grande esperança de disciplinar a polícia atual. Enquanto os assassinos e torturadores da ditadura militar seguirem impunes, isto certamente seguirá funcionando como passaporte de impunidade para a violência atual da nossa polícia. No momento em que os torturadores, estupradores e assassinos da ditadura militar, com ou sem farda, tiverem que responder por seus crimes, os homicidas e torturadores de hoje pensarão duas vezes antes de torturar e matar.
Há questões sobre as quais não é possível conciliar – esta é uma delas. Ou seguimos os exemplos dos países vizinhos do Cone Sul, considerando juridicamente os assassinatos e torturas da ditadura como crimes contra a humanidade – portanto, imprescritíveis e inanistiáveis – ou fechemos os olhos, na hipócrita postura de “esquecimento” e, então, não nos queixemos mais da polícia violenta e violadora que temos em quase todo o país. Polícia essa, cujas duas principais ferramentas de investigação policial são o pau de arara e o choque elétrico. A diferença é que, ontem, as vítimas eram militantes revolucionários, combatentes da democracia. Hoje são os pobres em geral, os negros, índios, são os que lutam para trabalhar na terra ou para ter um teto que os abrigue nas cidades.
Uma convergência inevitável
Eu dizia no começo que, em matéria de direitos humanos, ou somos críticos ou somos inúteis. Isso não significa que devamos nos prostrar em pessimismo paralisante, nem que devamos desprezar instrumentos legais. Devemos sim, sacar tais instrumentos, inclusive como dedos acusatórios, denunciadores, exigindo medidas concretas e urgentes, sem poupar governantes, sejam quais forem, sejam de quais partidos forem, que se comportarem de forma omissa e leniente, seja por conivência, seja por covardia política.
E esse empenho deve também considerar a necessidade de superação de uma distorção perigosa: a fragmentação dos movimentos de direitos humanos. É certo que ingressamos num período de especificação desses direitos, sendo mesmo esperável que os diversos grupos vulneráveis e oprimidos – mulheres, crianças e adolescentes, idosos, grupos étnicos, portadores de necessidades especiais etc. – especializem sua atividade e priorizem suas temáticas próprias. Mas isso não pode conduzir à perda da dimensão global, ao esquecimento da interligação e interdependência de todos os direitos humanos. Numa palavra, essa fragmentação das lutas precisa ser revertida porque conduz à despolitização – exatamente o que esperam os violadores dos direitos humanos. Ao se perder a visão de conjunto, desviando esforços para um rumo fragmentário de ações paralelas e isoladas entre si, não se dá conta de que há certos movimentos objetivos da realidade que tudo condicionam, que limitam o alcance de cada uma das lutas parciais ou até tornam inalcançáveis certos objetivos específicos.
Refiro-me, antes de tudo, a esse poderoso fator objetivo que é o modo como planetariamente se processa o movimento do capital, num sentido anti-humano, excludente de bilhões de pessoas, expulsando do mercado, da sociedade e da vida parcelas imensas e crescentes da humanidade, ou “incorporando” outras como... escravas. Ou detemos este movimento que a tudo engolfa, ou nossas lutas parciais, isoladas e fragmentadas se revelarão impotentes, reduzindo-se a “vitórias” minúsculas e localizadas, vitórias de Pirro, porque logo anuladas pelo movimento excludente e destrutivo global. Se não tivermos a lucidez de dar esse salto de qualidade na compreensão do momento que vivemos, acumularemos revezes demasiado graves, porque esse movimento do capital chegou a um ponto em que, não só precisa destruir um contingente incalculável da humanidade para continuar se auto-valorizando, como também não consegue deter sua marcha insensata rumo à destruição física do planeta.
Hoje, falar em defesa dos direitos humanos é, antes de tudo, falar em salvar a humanidade e o planeta em que ela vive – objetivos que demandam, ambos, remover aquela macro-ameaça global da humanidade e da natureza. A menos que optemos por nos comportar como Poliana e passemos a acreditar na ilusão rósea, tão tola quanto perigosa, de que é possível “humanizar” o capitalismo e reconciliá-lo com a natureza.
Institutos jurídicos, tais como o que atribui uma “função social” à propriedade, certamente revestem de uma película adocicada a pílula que nos é dada para engolir, mas não são antídotos para o veneno que ela contém. O capitalismo não se “humanizará”, não se tornará receptivo a chamamentos da razão, não deterá de motu proprio sua voracidade destrutiva, porque isso mexeria com os lucros, assim como os detentores do capital não passarão, milagrosamente, a conduzir-se segundo preceitos tais como “amai-vos uns aos outros”. A burguesia ri secretamente desse mandamento, só nós é que almejamos um mundo em que o amor universal seja possível, mas esse mundo só existirá se o capitalismo deixar de existir.
A burguesia, embriagada pela obsessiva extração de lucros, comporta-se como o dependente químico terminal: não pode aceitar um mundo fundado na igualdade e na cooperação, precisa manter a humanidade acorrentada a essa divisão anti-natural de classes sociais, porque só dessa divisão consegue extrair o óleo combustível da reprodução do capital.
Hoje não é mais possível lutar de modo conseqüente por direitos humanos sem incorporar as bandeiras da igualdade social substancial, bem como as temáticas do feminismo, do anti-racismo, da ecologia, da livre expressão da vida sexual, da defesa dos migrantes, da busca de uma cidadania mundial e igualitária. Mas esse feixe de propósitos convergentes e libertadores encontra diante de si uma muralha – que tem o nome de capitalismo. Desmontar essa muralha passou a ser condição para uma luta conseqüente pelos direitos humanos. A realidade não nos dá mais o direito de nos iludirmos como Poliana.
Palestra de José Damião de Lima Trindade que foi presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo, atuou no Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e presidiu, entre 1998 e 2000, a Comissão de Anistia Política para os servidores desse Estado.
Autor do livro “História Social dos Direitos Humanos”
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