A imagem que se tem de Rose Marie Muraro tem tudo para ser a de uma mulher frágil.
Aos 76 anos, sofre de artrose e se locomove com auxílio de uma cadeira de rodas. Mesmo debilitada por um câncer que estacionou, basta um dedo de prosa para se ter certeza que é uma mulher fascinante, "à frente do seu tempo", como ela mesma costuma dizer.
A lendária feminista brasileira esteve na última sexta-feira na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, durante o seminário "Uma Conquista - Lei Maria da Penha" e lançamento da cartilha sobre a nova lei que combate a violência doméstica.
Rose nasceu no Rio de Janeiro, em 1930 e veio para desafiar o impossível. Nas primeiras horas de vida, as amídalas lhe causaram uma infecção generalizada, que deixaram como seqüelas uma artrite, pouco para lhe conter a vontade de transformar o mundo.
Mesmo parcialmente cega de nascimento, com visão de apenas 5% em um olho e não enxergando nada com o outro, Rose foi além do que os médicos reservaram para ela. Aprendeu a ler no primeiro dia de aula e nunca mais se separou dos livros.
Membro da família Gebara, uma das mais ricas daquele tempo, conheceu a pobreza e a dor da morte muito cedo. Aos 15 anos, viu o pai morrer na sua frente e presenciou a luta pela herança da família, que deixou sua mãe sem nada. A experiência traumática alertou a consciência social de Rose, que naquele mesmo ano ingressou em um dos grupos de Ação Católica Estudantil de Dom Helder Câmara.
Formada em física e economia, trabalhou nas editoras Vozes e Rosa dos Tempos. Escreveu mais de 30 livros e, nos anos 70, foi uma das primeiras mulheres a abraçar o movimento feminista no Brasil. Ao lado de Leonardo Boff, também lutou pela teologia da libertação. Nos anos 80 foi expulsa da Vozes, depois de publicar "Por uma Erótica Cristã", livro que foi a gota d'água para que o papa João Paulo Segundo pedisse sua cabeça.
Rose enxergou pela primeira vez em 1996, aos 66 anos, depois de uma operação de catarata. Hoje, depois de onze anos, sua visão novamente está afetada. Têm o auxílio dos filhos ou de óculos com graus bastante elevados na hora da leitura e da escrita. Rose não atua mais como editora, mas trabalha na segunda edição do livro "Automação e o Futuro do Homem" proibido pelos militares em 1975 por conter conteúdo erótico, mesmo não citando a palavra mulher e tratando da história da tecnologia.
Em entrevista ao jornal A Notícia, Rose Marie fala de suas memórias, da amiga Clarice Lispector e defende os pensamentos que a tornaram tão marcante e essencial na sociedade brasileira.
A Notícia – Para você tudo está baseado no amor?
Rose Marie Muraro – Mulher é amor...
AN – Só amou de verdade quando acabou seu primeiro casamento?
RM – Ele durou 25, mas com 18 anos eu já corneava meu marido, por causa do meu confessor e do meu analista. Eu era católica praticante e já estava querendo me tornar pós-cristã, meu confessor disse: “Seau casamento é iníquo”. Eu tive cinco filhos, tomava conta da casa, ainda pagava as dívidas dele e eu já tinha perdido o amor por ele desde o começo do casamento, quando eu percebi que ele era um psicopata, um doente. Aí meu confessor disse: “Vai à luta!” E o meu analista também: “Se você não descobrir uma segunda vida e descobrir o que é o prazer você nunca vai largar seu casamento”. Foi o que eu fiz, e acabei me separando dele, me divorciando.
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AN – Você trabalhou como editora na Vozes. Como era esse trabalho?
RM – Ah! É uma maravilha! Quando você tem plena liberdade para fazer o que você quer, você pode mudar a vida um país, que foi o que aconteceu. Eu botei o movimento de mulheres pelas minhas publicações, que era em plena ditadura militar. A teologia da libertação, que veio com o Leonardo Boff, fui eu que ensinei praticamente ele, que eu tinha trabalhado com Dom Helder Câmara. Então, quando ele chegou, eu era editora geral, religiosa e leiga da Vozes, mas quando ele veio eu disse: “Você vai primeiro para favela e depois diz o que você quer traduzir. Ele veio com o livrinho chamado “Jesus Cristo Libertador” e eu vi que o garoto era um gênio. Ele era um grande criador, e foram os pobres que ensinaram a ele. Então hoje o movimento de mulheres é o movimento mais importante do mundo como a teologia da libertação está mudando a América Latina inteira, parte do mundo também.
AN – Foi nessa época que João Paulo 2o pediu sua cabeça.
RM – Eu já sabia que ele ia pedir minha cabeça, mas por causa do “Sexualidade da Mulher Brasileira”. Então como eu sabia que ele ia pedir minha cabeça, dei motivos e escrevi “A Erótica Cristã”, que é fazer um corpo erótico cristão, quer dizer, não usar mais a moralidade e sim a ética. Porque é imoral você estar num casamento que é feito só para o seu sofrimento e sofrimento de todos, e é ético você sair desse casamento para viver uma vida plena e dar aos outros uma vida plena. Foi desafiador.
AN - E o livro que você está escrevendo, previsto para o ano que vem?
RM - É o “Automação e o Futuro do Homem”, que os militares proibiram em 1975, que não tinha a palavra mulher em nenhum tempo, era a história da tecnologia, e proibiram como pornográfico. Ai eu fiquei 35 anos para poder fazer uma segunda edição. Estou quase enlouquecendo. Ele ainda não tem nome, mas eu gostaria de chamar de “O Arrependimento de Deus”, eu estou procurando na Bíblia e todas as vezes que Deus fala que se arrependeu de ter criado o ser humano e dá grandes castigos ao povo de Israel. Depois Ele se arrepende porque quer dar mais uma chance. Quem sabe Ele não está arrependido e quer dar mais uma chance?
AN – Como era a relação com Clarice Lispector?
RM – Eu vivia no meu canto e ela vivia no dela. Ela leu livro “Automação e o Futuro do Homem” e escreveu artigo sobre mim, sobre esse livro, no “Jornal do Brasil” de 1972, se não me engano. E aí ela me telefonou e perguntou: “Como é que você se sente sendo um gênio?” Eu perguntei, “Ô, Clarice, você está falando comigo ou com outra pessoa?” Aí ela me disse, “Não, desculpa, vem aqui na minha casa”.
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Quando procurei informação na rede sobre Rose Maria Muraro encontrei a quase garantida (na Wikipédia) mais uma quantas fontes na mesma linha autobiográfica, referências pessoais por vezes fortemente críticas por motivos políticos que resolvi deixar de lado, afinal não só não estou dentro das querelas internas das facções partidárias brasileiras, como menos ainda pretendia passar diferenças pessoais de opções ideológicas; pretendia sim trazer RMM enquanto pessoa, mulher, personalidade e percurso de vida e também a parte dela que toca o colectivo pelo activismo em prol da parte feminina no mundo e o seu direito à livre expressão em todos os sentidos. Como bem sabemos, isso não é ainda uma realidade plenamente conseguida. *
Encontrei muitos dos seus livros -mais do que aqui estão em link e várias entrevistas, um material sempre desejável uma vez que coloca a visada a revelar-se em primeira pessoa.
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Por isso mesmo aconselho a leitura integral desta entrevista à qual pertence o texto seguinte *
IHU On-Line - O feminismo tem a ver com a crise do masculino?
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Rose Marie Muraro - Tem. O feminismo não é o que as pessoas pensam. O feminismo é só um movimento organizado das mulheres, mais nada. Não tem nada a ver com o plano pessoal da mulher contra o homem, mas sim, da mulher contra o sistema. Em geral, as mulheres e os homens se dão muito bem. E a mulher já está questionando o machismo do homem no plano pessoal, e isso está caminhando bastante. Então, vejo uma diferença enorme dos anos 1970, quando eu comecei a militar, para cá.
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IHU On-Line - Quais as diferenças entre movimento feminista e movimento de mulheres? Como se caracteriza o movimento de mulheres como movimento social?
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Rose Marie Muraro - Existem vários movimentos de mulheres que não são feministas, que não têm a mulher como foco. Por exemplo, movimento de donas de casa, pelo meio ambiente, pela paz. Existe, inclusive, movimento de mulheres para levar cafezinho para os homens nas reuniões. No entanto, movimentos enfocando a condição da mulher, por definição, são feministas.
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IHU On-Line - Quais os pontos fundamentais na discussão sobre a questão do corpo das mulheres em função dos avanços da ciência e da tecnologia? Quais os impactos disso para a autonomia da mulher como ser social?
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Rose Marie Muraro - A grande autonomia das mulheres veio com a pílula anticoncepcional e a pílula do dia seguinte. Com isso, a mulher, pela primeira vez, em dois mil anos, desliga a sexualidade da maternidade. Este foi o grande avanço que permitiu a autonomia, o estudo e o controle do corpo. O resto é secundário. A fertilização in vitro é algo secundário diante disso. A partir da pílula e dos métodos anticoncepcionais, nos anos 1960, é que aconteceu todo o movimento de autonomização da mulher e o fato de ela se tornar o sujeito maior da história. Produção independente de filhos sempre houve depois dos anos 1960.
O encontro entre a grande dama do feminismo brasileiro Rose Marie Muraro e a profetisa da Economia Sustentável Hazel Henderson aconteceu em São Paulo, em maio de 2005. Para a extasiada platéia ficou no ar a certeza de que os novos saberes podem curar o mundo. Quem não pôde ouvi-las na ocasião vai poder ler agora o livro Diálogos para o Futuro, fruto desse encontro. A obra é resultado da dedicação de outra forte dupla, a futurista Rosa Alegria e a pesquisadora Oriana White, discípulas assumidas de Rose e Hazel.Como passar para o papel a magia de um encontro ao vivo? Isso não foi problema já que a conversa se deu entre mulheres cujas idéias brilham mais que os formatos que ousam contê-las. As organizadoras do livro acertaram escolhendo um estilo sem amarras, sem roteiro, mediadores ou estruturas lineares restritivas. As falas se entrelaçam como se dançassem sob o ritmo próprio das idéias libertárias. Aos poucos a sensação de círculo toma conta do leitor, que se sente parte de uma roda de conversa tipicamente feminina, animada e cheia de energia. Os assuntos tratam da aventura humana e os horizontes que se abrem para a regeneração do mundo a qual elas acreditam ser possível. Luzes e sombras, feridas e possíveis curas, tramas complexas do poder e visões otimistas para o futuro. Um pouco de tudo é simplesmente contemplado. Não por acaso.
Colaboração Celina Simões Grigoleto