Propostas para anteprojeto de Código Penal acertam no princípio geral, mas pontos como enriquecimento ilícito precisam de mais debate
A comissão criada pelo Senado para elaborar um anteprojeto de novo Código Penal ganhou mais um mês para concluir sua missão. Melhor assim. O grupo poderá terminar sem açodamento o indispensável trabalho de recuperar a coerência da legislação criminal.
Trata-se de uma oportunidade histórica de rever o papel das penas privativas de liberdade. Em tese, estas deveriam ser reservadas para os crimes praticados com emprego de violência física ou ameaça.
Na maioria das demais situações, reparações e penas alternativas -que podem e, conforme o caso, devem ser severas- seriam preferíveis. A noção de que o cárcere reeduca é balela.
Ao que tudo indica, porém, a comissão passará ao largo dessa questão. Mas não se pode tirar dos 17 especialistas que a compõem o mérito nada desprezível de buscar restaurar a proporcionalidade entre crimes, penas e valores.
Uma das bases do direito penal, tal princípio estabelece que transgressões devem ser punidas de forma proporcional à importância do valor afetado, e práticas irrelevantes não devem ser criminalizadas. Esse equilíbrio se perdeu nos 72 anos de vigência do Código Penal.
Entre os exemplos gritantes de deformações criadas desde 1940, é comum citar o fato de a falsificação de remédios e cosméticos ter hoje pena mínima de dez anos, maior que a de homicídio simples (seis).
Não se trata, contudo, de simplesmente eliminar o anedótico, reduzindo penas exageradas ou endurecendo sanções muito brandas. Esses disparates são, em geral, resultado de legislações oportunistas produzidas sob clamor público. É fácil identificá-los e corrigi-los. A maior dificuldade sempre foi lidar com distorções estruturais.
Por exemplo, duas pessoas que hoje se juntam para furtar um objeto qualquer terão pena mínima de dois anos de reclusão, o mesmo piso do crime de corrupção. Além disso, a lei não permite que o "ladrão de galinha" escape da prisão se ele reparar o dano -mas quem sonegar milhões de reais pode não ser punido se vier a pagar a dívida.
O capítulo proposto para o furto diminui a pena básica e inova ao permitir que o crime seja reparado, a fim de evitar a prisão.
Avanços como esses precisam ser mantidos, pois ajudarão a balizar a correta hierarquia de valores do novo código. Há outros temas, porém, que não são pacíficos e exigirão mais discussão.
É esse o caso do enriquecimento ilícito, figura que torna crime ao funcionário público dispor de patrimônio incompatível com a remuneração. A proposta é controversa, pois caberá ao acusado demonstrar a origem legal de sua renda, numa inversão do ônus da prova.
Ainda assim, quando receberem o anteprojeto de Código Penal, os congressistas terão em mãos um texto modernizador. Antes de votá-lo, eles podem e devem ampliar o debate. Mas será um desserviço se desfigurarem os princípios que ordenam o conjunto de propostas.
Editorial da Folha de São Paulo de 27/05/2012
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