No país considerado o mais ansioso do mundo em 2020, segundo levantamento feito pela OMS, suicídio é a 3ª maior causa de morte entre os jovens brasileiros.
O corpo que mais morre de suicídio no Brasil tem cor, idade e sexo. A maioria é homem, negro e com idade entre 10 e 29 anos, segundo dados do Ministério da Saúde. E as estatísticas apontam para o aumento dos índices.
O modelo de sociedade capitalista e competitivo ou a falta de serviços básicos (moradia, saúde, educação, segurança, lazer, cultura), o abandono familiar, o vício em drogas, doenças mentais, sentimento niilista de ausência de sentido na vida, dificuldade em resolver problemas cotidianos ou o desânimo generalizado em atividades comuns. Tudo isso pode contribuir para o surgimento ou aprofundamento de doenças mentais ou pensamentos suicidas.
Assista à entrevista: https://youtu.be/D2beXZ_jMFE
Há também os fatores inerentes à situação do país, como a conjuntura política, social, econômica e cultural, que passa por um período complexo, impactando não somente as instituições nacionais, como também os cidadãos, que precisam se adaptar a novas realidades, como o desemprego e ausência de perspectivas.
Existe uma lista interminável de “lugares mentais e físicos” perpassados por alguém que comete suicídio; cada caso é único. O importante citado por campanhas como a do “Setembro Amarelo”, de prevenção ao suicídio, é a identificação e o acompanhamento precoce.
Para falar sobre suicídio de forma geral e na população negra jovem em particular, entrevistamos a psicóloga e psicanalista Clélia Prestes, do Instituto AMMA Psique e Negritude. Clélia é especialista em psicologia clínica psicanalítica pela UEL (Universidade Estadual de Londrina) e doutora em psicologia social pela USP. Também foi pesquisadora visitante no Departamento de Estudos Africanos e Afro-Diaspóricos pela Universidade do Texas em Austin.
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“Eu penso que estamos em um momento de muita carência, de muita desconexão. A saúde, na forma como eu conceituo saúde, ela é a integração harmoniosa das diferentes dimensões pessoais, sociais, coletivas, ecológicas e cósmicas. Não tem como ser uma pessoa saudável numa sociedade adoecida, não tem como ser uma pessoa saudável às custas dos esgotamentos naturais ou à base da exploração de outras pessoas.
Tudo isso em um momento político de desamparo, torna muito difícil alguém hoje estar satisfeito, seja em quem quer que a pessoa tenha votado. E é de uma certa ambiguidade o tempo todo a política. Para uma psicóloga isso é uma fábrica de loucura, de angústia, de grandes ansiedades. Tem uma certa tortura que vai acontecendo socialmente e que vai nos deixando em sofrimento. Me parece que esse conjunto de elementos históricos, políticos, ecológicos nos deixa em sofrimento e sem recursos para podermos seguir saudáveis”
“Cada criança cresce nas escolas aprendendo que tem que ser líder. Não sei quem elas vão liderar, porque todo mundo vai ser líder ou cresce achando que tem que ser um ator de filme pornográfico. Tem que ser uma coisa performática e muitas vezes nem têm experiência sexual, mas precisam dizer que têm e isso pode ser extremamente “ansiogênico” para um jovem que ainda está tentando se descobrir, se localizar e tem toda uma demanda na forma de estar no mundo.
Então todos os incentivos que a mídia traz de como a gente precisa fazer e de que a gente precisa ser incrível, precisamos nos sobressair de outras pessoas, seja no jogo, seja nessa disputa por ser celebridade, de ser o primeiro [melhor] da turma. Isso tudo pode ser muito exigente para alguém que ainda está frágil, apesar de ser grande”
“A família é essencial, o papel da família é oferecer contorno, ajudar a acolher quando esse jovem chega com a frustração de não ter conseguido, ajudar inclusive a mostrar que está tudo bem não conseguir também. A gente que é adulto muitas vezes também não consegue, mas a gente continua tentando; é apoiar, é dar limite, dar colo”
“Como prevenção do suicídio a gente precisa conhecer bem essas pessoas para poder inclusive identificar quando tem alguma coisa que não está bem, estabelecer ou manter um diálogo sempre que possível.
A pessoa deprimida por exemplo, que pode ser um dos pontos que leva ao suicídio, não é só a pessoa que fica no quarto e não consegue sair – que também é um caso muito importante de ser cuidado -, mas ela pode estar em uma sequência de saídas, pode ser uma pessoa muito agitada, muito ativa, que é uma forma de não entrar em contato consigo mesma, de fugir do que dói”
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“Jovens negros têm um lugar reservado na sociedade que tem a ver com imaginar que são pessoas que vão ter menos condição de progredir no trabalho, que seriam pessoas perigosas, que não são confiáveis, das quais a gente precisaria ter medo ou oferecer poucas oportunidades.
Isso tudo interfere nessas pessoas. Interfere, inclusive, no acesso que essas pessoas têm à garantia de seus direitos.
Se eu sou uma pessoa da sociedade que recebo o tempo todo esse tipo de expectativa, esse tipo de tratamento, isso pode impactar no quanto eu me ligo à vida, no quanto eu projeto sonhos para a minha vida, o quanto eu acredito que eu vou poder realizá-los e muitas vezes essa não é uma conta que fecha positiva para jovens negros.
Então tem todos esses elementos e tem mais o fato de [eles] serem alvos de muitas violências, de muitas dificuldades no acesso à educação, de acesso à progressão no trabalho ou mesmo da dificuldade de ter projetos de vida com tantos jovens negros sendo assassinados, violentados”
“A morte do jovem negro chega muitas vezes por assassinatos com armas de fogo e essas mortes, esses fatos, vão minando a vitalidade e a dificuldade de sonhar, para além das questões sociais, [como] ter uma decepção grande, uma perda significativa, um adoecimento psíquico que leva a pessoa a não conseguir se firmar na vida. Mas isso tudo, todos esses aspectos vão se unindo [para o suicídio], não é só uma questão social ou só pessoal”
“É importante falar das universidades porque é um dos espaços em que esses adolescentes e jovens estão e que é um espaço muito sonhado e muito difícil de entrar, mas que também muitas vezes é um espaço de sofrimento. Nos últimos dez anos um aumento enorme de pessoas negras nas universidades por conta das cotas, das ações afirmativas. Mas as universidades continuam sendo heteronormativas, racistas, com uma lógica capitalista porque a sociedade é assim, então a universidade também é.
O que acontece é que muitas vezes jovens negros entram na universidade e têm o impacto de como vão ser recebidos, de quais vão ser as teorias que vão ler, de como serão vistos os referenciais que tem a ver com os seus ancestrais, a dificuldade de ter o seu modo de falar, de se expressar, de se movimentar”
A gente precisa falar francamente disso. Estar na universidade é estar em um lugar em que meu corpo percorre um espaço mas que eu só vejo corpos parecidos com o meu para limpar o chão, para cozinhar, que são tarefas tão válidas quanto dar aula só que seria importante que nós [negros e negras] também estivéssemos na docência, em chefia de departamento, nas referências bibliográficas, na forma em como organizamos a aula…
Tanto na USP, onde fiz mestrado e doutorado, quanto em minha experiência no exterior, na Universidade do Texas em Austin, eu tive algumas situações em que tive que explicar que eu era estudante.
Então vários elementos dificultam não só o acesso, mas a permanência de pessoas negras e de referências negras na universidade”
“Não tem essa regra de que quem é negro vai [necessariamente] entender negro, mas infelizmente no Brasil muitas psicólogas não pensam o racismo como um dos aspectos a serem considerados e não só com pacientes negros. Qualquer pessoa em terapia deveria pensar a sua racialidade”
“Muitas vezes nas redes sociais, homens negros que chegam à maturidade, aos trinta anos, comemoram não apenas mais um ano de vida, não apenas o chegar a fase adulta, mas que superaram as estatísticas, que conseguiram sobreviver. O número de jovens negros assassinados no Brasil corresponde a mortes ocorridas em países em guerra. Para jovens negros eles vivem em um país em guerra”
“Eu só tenho prejuízos na sociedade às custas de privilégios de outras pessoas. Um prejuízo desse tipo, que é sócio-histórico, ele é uma gangorra; tem prejuízo aqui para garantir privilégio ali”.
https://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/o-que-leva-o-jovem-negro-ao-suicidio
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