terça-feira, 28 de setembro de 2021

PEC 32, A PEC DO RETROCESSO ADMINISTRATIVO

1- A PEC do retrocesso administrativo
2 - (Ao menos) Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32
3 - Reforma administrativa é uma PEC para manter benefícios de carreiras já privilegiadas 

A PEC do retrocesso administrativo

A atual proposta, que se originou no Executivo e já chegou torta, a cada passo mais se afasta do objetivo de melhorar a gestão de pessoas

Em 19 de setembro de 2021 Ana Carla Abrão, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld escreveram n'O Estado de S.Paulo

A nova versão do relatório do deputado Arthur Maia, apresentada nesta última quarta-feira à Comissão Especial da Reforma Administrativa, consegue ser pior do que a primeira, já objeto de manifestação nossa (“A Contrarreforma Administrativa”, publicado em 04/09/2021). O relator cedeu ainda mais às pressões puramente corporativas de associações de servidores públicos. Deixou de corrigir os erros do projeto do governo e contribuiu com novos desvios de sua autoria, constitucionalizando o que deveria eliminar.

E pior: o relatório previu vantagens e proteções cujo único sentido é, distorcendo a Constituição democrática de 1988, reforçar a caminhada em direção a um Estado policial no Brasil. Nosso país precisa reagir enquanto é tempo.

O serviço público brasileiro tem grandes problemas. Há excesso de carreiras, com reservas de mercado injustificáveis. A elite desfruta de privilégios injustos enquanto o restante dos servidores não é devidamente valorizado ou atua em condições inadequadas. Faltam avaliações de desempenho. A produtividade geral é baixa, assim como a qualidade dos serviços. São raras as demissões de maus servidores. Falta mínima flexibilidade, algo indispensável à gestão de pessoas.

Qual a responsabilidade das atuais normas constitucionais? Em vários casos, nenhuma. Por exemplo: a Constituição, em seu artigo 41, já prevê ser necessário avaliar os servidores. Por que não acontece? As leis de regulamentação até agora não foram feitas. E os governos não mostram interesse em avaliar serviços e servidores. Nenhuma mudança na Constituição vai resolver essa lacuna. Mas sempre é possível incluir novas exigências para dificultar ou inviabilizar avaliações. A proposta do relator fez exatamente isso. Equiparou procedimentos de avaliação a processos punitivos, uma completa distorção. E reservou à própria corporação o controle das decisões de dispensa de servidores ineficientes. Ou seja, blindou ainda mais a ineficiência.

Outro instrumento de gestão de pessoas é a contratação temporária, importante em todas as áreas e largamente usada nas administrações modernas. O relatório procura inviabilizá-la. A principal estratégia é reservar a servidores permanentes a execução de extensa lista de “atividades finalísticas”. Ali é possível identificar um a um os lobbies das elites do serviço público, que circulam com desenvoltura no Congresso Nacional. Mas não é só. O relatório quer impedir contratações temporárias para a “gestão governamental” – na prática, o mesmo que as proibir para qualquer atividade.

O mais grave é a tentativa de mudar a Constituição para fazer do Brasil uma república de policiais. O relatório se esmera em conceder privilégios a grupos ligados à segurança pública. Cria monopólio de acesso ao cargo de delegado-geral da Polícia Federal, imuniza com foro privilegiado os delegados-gerais das polícias civis dos Estados, dá aposentadorias e pensões especiais a policiais e outros agentes de segurança, e assim por diante. Nada a ver com reforma administrativa. É pura captura do Estado por grupos de servidores armados.

A atual proposta, que se originou no Executivo e já chegou torta, a cada passo mais se afasta do objetivo de melhorar a gestão de pessoas. Se aprovada, fará a própria Constituição se tornar um empecilho às reformas necessárias. O episódio mostra que lobbies corporativos conseguem se sobrepor a todo bom senso e às intenções de avanço. Os interesses da coletividade se perdem na falta de liderança, de clareza e de compromisso com a agenda de país. A cada PEC que se aprova, a ordem constitucional vai sendo desviada para servir às elites do serviço público.

Precisamos sim avançar o quanto antes na reorganização do Estado. O caminho correto e viável passa por regulamentar por lei o que a Constituição já comanda e caminhar da direção da desconstitucionalização das normas do RH público.

É hora de desarmar o desastre. A PEC 32 é uma bomba relógio. Não estamos mais discutindo reforma do Estado ou melhoria do RH público. Sua tramitação tem de ser encerrada.

ANA CARLA ABRÃO É ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN; ARMINIO FRAGA É EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL; CARLOS ARI SUNDFELD É PROFESSOR TITULAR DA FGV DIREITO SP
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,a-pec-do-retrocesso-administrativo,70003844038

Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32

Em 21 de setembro de 2021Ana Carla Abrão escreveu n'O Estado de S.Paulo
(Ao menos) Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32

Atual projeto de reforma administrativa atende a interesses corporativistas e condena País à mediocridade

Reforma administrativa é coisa séria. Bem feita, gera aumento na qualidade dos serviços públicos, ajuda a fazer crescer a produtividade da economia e melhora a trajetória fiscal de curto, médio e longo prazos. Malfeita, nos condena à mediocridade e à pobreza ao consolidar a máquina pública como reforçadora de desigualdades sociais.



Um projeto complexo (e confuso) de emenda constitucional chegou ao Congresso Nacional ao final de 2019. Ficou ali dormente até que, recentemente, entrou no rol das reformas a serem entregues neste ano. Foi colocado na mesma esteira desastrosa da reforma do Imposto de Renda. Deu no que deu.

O relatório apresentado pelo deputado Arthur Maia à Comissão Especial da Reforma do Estado tem retrocessos – por si só, inaceitáveis – e inviabiliza avanços futuros. Ele nos dá os motivos para defender o fim da tramitação da PEC 32. Destaco aqui três deles:

1) Cravar no texto constitucional uma definição do que sejam atribuições de carreiras típicas de Estado é atender a pleito antigo de carreiras públicas de elite que queriam garantir privilégios na Constituição. Sim, há atribuições típicas de Estado que precisam ser preservadas e protegidas pela estabilidade, embora não necessariamente na Constituição. Ainda mais com definições estanques, em que cabem quase todos os grupos. Afinal, imagine ter de reformar a Constituição por que essas tantas atribuições exclusivas se tornaram obsoletas ou fundíveis? Ao abrir um espaço em que centenas de carreiras aí se identificam, pegando carona em blindagens injustificadas, os atuais privilégios das castas do serviço público não só deixam de ser eliminados para os poucos que os detêm, mas passam a ser constitucionalizados para quem não deveria tê-los. Ampliam-se em número e força as reservas de mercado (ao proibir contratações temporárias para o rol amplo e subjetivo de atividades típicas de Estado); se dá tratamento diferenciado na avaliação de desempenho; e se inviabiliza a dispensa por baixo desempenho, ao se colocar os procedimentos administrativos na mão de servidores da mesma carreira que o eventual dispensado. Trata-se de ampliar o fosso entre o mundo real e o das elites do serviço público brasileiro.

2) Há modelos consagrados de avaliação de desempenho no setor público. Eles exigem padronização, implementação cuidadosa e calibração no tempo. Precisam ser dotados de flexibilidade, desde que mantidos os conceitos de impessoalidade, estes garantidos pela avaliação final colegiada, pela padronização dos procedimentos e pelo direito à ampla manifestação do avaliado. Mas seu detalhamento não deve estar na Constituição, muito menos com referências por demais vagas, como o dever de considerar as condições de trabalho do avaliado. Colocar esse tipo de norma muito aberta na Constituição tem o único efeito prático de garantir o espaço para a judicialização das avaliações. Também não faz sentido que a avaliação tenha critérios distintos ou garantias especiais para classes de servidores de elite. Além de errado, é injusto. Compromete-se, assim, a probabilidade de uma justa, correta e eficiente avaliação de desempenho no setor público brasileiro.

3) No meio dos retrocessos e blindagens contra futuros avanços, o relatório envereda em tema que nada tem a ver com uma reforma do RH do Estado, mas muito a ver com a criação de um Estado policial. Faz com que as forças de segurança (ampliadas com a inclusão de guardas municipais e, pior, agentes socioeducativos, cuja equiparação a policiais é um grande desvio) sejam contemplados com privilégios constitucionais absurdos, que sequer as demais carreiras típicas de Estado possuem. O relator cede ao momento que vivemos, em que fortes lobbies de policiais são respaldados por um governo que vê nas armas seu único lugar de fala. O foro privilegiado ao delegado-geral da PF e aos delegados das Polícias Civis vai na contramão do que precisamos. Ampliar o conceito de forças de segurança e conceder integralidade e paridade na aposentadoria equivalem a devolver avanços importantes da reforma da Previdência.

Não é à toa que o barulho dos sindicatos de servidores públicos sumiu. As antes campeãs #PECdaRachadinha ou #ReformaAdministrativaNao deram lugar ao silêncio nas redes sociais. Sinal inequívoco de que os interesses corporativistas estão atendidos numa PEC que representa o fim da reforma administrativa e a condenação do Brasil à mediocridade. É aqui que estamos e aqui que ficaremos com essa equivocada contrarreforma.

(Texto de minha autoria e erros e omissões de minha responsabilidade. Mas, neste tema, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld são valiosos e imprescindíveis companheiros de jornada. Agradeço aos dois pela parceria e pelos comentários).

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN

(Ao menos) Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32

Em 28 de setembro de 2021 Ana Carla Abrão n'O Estado de S.Paulo
Reforma administrativa é uma PEC para manter benefícios de carreiras já privilegiadas

Além de os atuais juízes e membros dos Ministérios Públicos continuarem a salvo, seus futuros colegas também estarão 
A coluna de hoje é uma edição especial. Foi escrita em coautoria com Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld, que assinam comigo o texto que segue:


Para valer a pena, uma reforma do RH do Estado teria de combater o regime de castas funcionais, que dá privilégios a carreiras próximas ao poder e deixa à própria sorte, na precariedade e sem estímulo, a maior parte dos servidores. Para isso, deveria começar por integrar carreiras e suprimir desigualdades. Mas o problema foi ignorado na emenda constitucional 32.

Na semana passada, a comissão da reforma administrativa aprovou um substitutivo do relator da PEC 32, deputado Arthur Maia. Se o texto for acolhido pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, o resultado será cristalizar o regime de castas funcionais e incluir nele mais alguns grupos. Um retrocesso.

O substitutivo insere na Constituição uma lista de carreiras privilegiadas, com proteções que os servidores públicos da base jamais terão. É estarrecedor que, em um País em que o maior problema continua sendo a desigualdade, se queira aprovar uma PEC justamente para dizer que a lei “tratará de forma diferenciada” carreiras escolhidas do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público. O texto contemplou policiais em geral (inclusive, os legislativos), agentes de trânsito, peritos criminais, agentes de inteligência etc, cedendo àqueles que querem impor um estado policial ao Brasil.

Convicto quanto à orientação de dar privilégios a castas, o substitutivo concede a certas carreiras policiais aposentadorias cujo valor equivalerá para sempre à remuneração integral de quem estiver na ativa. Cônjuge ou companheiro receberá a mesma pensão, vitalícia, se o policial morrer na função. Anula-se, assim, a reforma da Previdência em favor dessas castas, enquanto aposentadorias de professoras públicas continuarão observando os limites gerais, assim como as pensões das enfermeiras que morrerem por contaminação em serviço. É a PEC da desigualdade.

O substitutivo não mexe com juízes e membros dos Ministérios Públicos, os mais privilegiados. Alegou-se cinicamente que seria inconstitucional uma emenda constitucional tratar disso, como se tais castas pairassem acima da Constituição e do poder democrático.

Após a aprovação, o ministro Paulo Guedes divulgou um documento comemorando supostos avanços. É clara tentativa de confundir. Um deles seria a retirada de benefícios de quem não os tem. Isso mesmo: a PEC proíbe a concessão, a futuros servidores, de férias superiores a 30 dias ou de aposentadoria como punição, por exemplo. Nada significa na prática, pois não se aplica a quem hoje os tem. Além de os atuais juízes e membros dos Ministérios Públicos continuarem a salvo, seus futuros colegas também estarão. É uma PEC para manter privilégios.

Outro avanço estaria na regra da extinção de cargos desnecessários ou obsoletos, dispensando-se seu ocupante, mesmo estável. Não há avanço, pois outra regra do substitutivo proíbe a extinção justamente dos cargos hoje ocupados. Quanto a servidores que ainda não entraram no serviço público, seria fácil evitar a desnecessidade ou obsolescência futura. Bastaria modernizar e fundir as velhas carreiras antes de fazer quaisquer concursos. Mas, ao constitucionalizar carreiras obsoletas (como oficial de Justiça) ou desnecessárias (como policial legislativo), o substitutivo atrapalha ajustes modernizantes no futuro. É a PEC do atraso.

Ainda segundo o ministro, haveria o aprimoramento das avaliações de desempenho. Não é verdade. A Constituição atual já exige as avaliações, que não ocorrem porque os governos não querem. Não há hoje qualquer regra na Constituição que impeça ou atrapalhe a análise adequada do desempenho de órgãos e servidores. Escrever mais normas vagas sobre o assunto na Constituição é o mesmo que nada e ainda engessa. É a PEC da ficção...

Portanto, o ministro está comemorando vitórias de Pirro, a partir de instrumento equivocado e cedendo a lobbies corporativistas. A verdade é que se está dificultando, e não fazendo, aquela que deveria ser a grande reforma para ter melhores serviços públicos, maior produtividade e modernização da gestão de recursos humanos no setor público.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-administrativa-e-uma-pec-para-manter-beneficios-de-carreiras-ja-privilegiadas,70003852816

Os três artigos estão no Estadão 

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