É aceitável que grupos alheios à universidade a usem como palco de suas reivindicações, por mais justas que possam ser?
AFORTUNADAMENTE vigora no Brasil o Estado democrático de Direito. As instituições estão em funcionamento e há liberdade de expressão, diferentemente do que já houve no passado. Longe de ter o país atingido o nirvana, muitos são os problemas a serem solucionados, dentre os quais avulta a necessidade de melhor distribuição de renda e de redução das desigualdades sociais. Mas não se terá um país mais justo pondo em xeque e solapando as instituições. Graças aos esforços de muitas gerações, a universidade pública brasileira detém índices acadêmicos e de pesquisa muito bons. Isso não obstante a baixa remuneração de professores e funcionários, que laboram em condições nem sempre razoáveis. Algumas dessas universidades começam a galgar, firmemente, rankings globais de excelência. É aceitável que grupos alheios à universidade a usem como palco privilegiado de suas reivindicações, por mais justas que possam ser? Desacreditando a universidade pública, o Brasil tornar-se-á mais equânime? Os movimentos sociais, que são legítimos e contam com o respaldo de grande parte da população, devem ser os primeiros a respeitar a universidade, em cujos recintos se encontra o ambiente propício para discutir e fazer avançar os seus propósitos. Relembremos os fatos ocorridos em 21 de agosto último no largo de São Francisco, a partir das 19h. Inopinadamente, já em curso as aulas do período noturno na Faculdade de Direito da USP, entram nela dezenas e dezenas de simpatizantes da Educafro, com suas bandeiras e tambores, seguidos por numerosos membros do MST, com seus colchões, víveres e insígnias, escudados em cerca de 25 crianças, além de outros movimentos ainda em busca de maior expressão. Corredores estratégicos são bloqueados com móveis e passam a ser controlados; funcionários, professores e alunos são, temporariamente, retidos; e portas são lacradas com correntes e cadeados pelos invasores. Nada a ver com o 23 de junho de 1968, quando os estudantes da própria faculdade a ocuparam por 26 dias. Reivindicavam a reestruturação do curso, ao mesmo tempo em que protestavam contra a ditadura militar. Durante a ocupação, realizaram inúmeras atividades didáticas e contaram com o apoio de vários professores, entre eles Goffredo da Silva Telles Júnior e Dalmo Dallari. Saíram quando a Tropa de Choque invadiu o prédio e prendeu cerca de 40. Agora, nenhum grupo estudantil reivindicou o protagonismo da invasão. Malogrado o intento, simpatizantes da UNE e a atual diretoria do Centro Acadêmico XI de Agosto -que chegara a se oferecer para mediar acordo entre a diretoria da faculdade e os ocupantes, o que, "per se", implica não ser parte- passaram a brandir o argumento da presença estudantil. A oferta de negociação constituía-se em eufemismo para a imposição de inaceitável fato consumado. Justamente por isso não houve, em nenhum momento, acordo que possibilitasse a permanência dos invasores nas dependências da faculdade. Até porque bens públicos estão adstritos a regramento legal que não permite ao administrador usá-los a seu bel-prazer. Por outro lado, a faculdade tem objetivos-meios e objetivos-fins cuja busca não pode ser interrompida, sob pena de responsabilização civil e penal de seu diretor, a quem cabe, ademais, velar pela integridade de alunos, funcionários e professores. Ante o esbulho possessório e o risco que corriam pessoas e o imóvel tombado, o pedido para que a Polícia Militar retirasse, com as cautelas devidas, os invasores foi não somente legal como também legítimo. Se, de um lado, não é usual nem desejável a entrada de polícia nas dependências da faculdade, de outro, não se tem notícia de uma invasão concertada de movimentos sociais nas centenárias arcadas. Daí soar falsa a invocação da democracia feita pelos porta-vozes de tais agrupamentos, quando os atos perpetrados no sagrado solo de são Francisco a desmentem cabalmente. O território livre de são Francisco existe, sim, e continua preservado. Está aberto para acolher debates de idéias que conduzam às mudanças sociais pelas quais o Brasil anseia. A polícia não entrou para sufocar tais discussões e mesmo protestos, ínsitos à democracia. Procurou apenas impedir a continuação de ilegalidades, como o cerceamento do direito de ir e vir dos que estudam e trabalham no local e a interrupção do processo educativo, garantindo, enfim, que a universidade continuasse a cumprir seu papel, para o qual é sustentada pelos impostos de todos os paulistas.
Texto de JOÃO GRANDINO RODAS , 60, desembargador federal aposentado, diretor da Faculdade de Direito da USP e vice-presidente do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. Foi presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
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