O furto de um CD player de um carro, quebrando-se o vidro, tem a mesma pena mínima do peculato, que é assalto aos cofres públicos
HÁ ANOS, em Nova York, implementou-se o programa "Tolerância Zero". Defende-se rigor com a pequena delinqüência visando obter a redução dos crimes violentos. No Brasil, há quem defenda a "tolerância menor do que zero", como certo governador (Folha, 8/2).
Ele não está sozinho. Muitos juízes, com apoio de parte do Ministério Público, vêm inflando as cadeias (já superlotadas) ao resistir às penas alternativas, ao manter prisões em flagrante por furto de coisas insignificantes e ao decretar prisões provisórias de acusados que, se condenados, terão direito a pena alternativa ou em regime aberto.
O resultado está na mídia. Em Minas Gerais e São Paulo, são antigas as denúncias de cadeias que lembram o Holocausto. No Pará, o horror da adolescente presa com homens por tentativa de furto, estuprada por dias.
Em Santa Catarina, uma adolescente e uma mulher ficam por dias acorrentadas a postes de delegacia. Em Maceió, acusado de furto de um queijo passa meses em cela desumana; outro, acorrentado (Folha, 24/2 e 10/2 deste ano, 25/11, 5/12 e 29/12/ 2007).
A maioria dos presos submetidos a essa situação é de acusados por crimes contra a propriedade privada, ainda que praticados sem violência.
Outra, de "mulas" do tráfico, sendo raros os grandes traficantes presos. Há outras formas de violência, contudo, que causam males mais graves à sociedade, as quais não são alcançadas pelo nosso sistema repressivo ou, quando o são, encontram indisfarçável benevolência.
Onde estão os arautos do discurso punitivo ao lembrarmos da violência da nossa desigualdade social? Da violência da total falta de perspectiva para jovens que estão a pedir esmolas?
Da violência das filas na saúde pública e dos governos que não priorizam transformar favelas sem esgoto em bairros dignos? Da violência de gastar milhões para enviar um brasileiro ao espaço em vez de investir em educação? Da violência do desvio de dinheiro público em obras superfaturadas, sendo, por vezes, até reeleitos os políticos acusados da falcatrua?
Se o direito penal é um instrumento excepcional de proteção de bens como vida digna e liberdade para que todos possam encontrar condições igualitárias de desenvolvimento, não se pode conceber um sistema penal que priorize a proteção da propriedade privada, servindo à manutenção de um status quo altamente doentio não só em termos de desigualdade social, mas também de desigualdade punitiva.
Tamanha é a proteção da propriedade privada em nosso Código Penal que a pena mínima do roubo com arma de brinquedo é igual à do homicídio privilegiado, e a do furto, a mesma da lesão corporal grave. E mais, o furto de um CD player de um carro, quebrando-se o vidro, tem a mesma pena mínima do crime de peculato, que é assalto aos cofres públicos!
Afora essa absurda inversão de valores e o nosso vergonhoso sistema carcerário, o sistema penal enfrenta outros problemas que também clamam por reformas. Lembramos apenas quatro. O primeiro que a todos perturba é o da morosidade da Justiça, sendo grave o equívoco de um projeto do Senado que propõe acabar com a prescrição, em vez de enfrentar a lentidão.
Se a Justiça já é lerda, será pior se não houver prescrição.
Igualmente, o foro privilegiado para deputados estaduais, federais e senadores, além de prefeitos, governadores, ministros etc., que gera gritante impunidade. Afinal, todos deveriam ser iguais perante a lei.
Envergonha o Brasil, também, a tortura e o abuso de prisões temporárias para obter confissões. Quando um juiz admite a utilização de uma confissão policial para condenar, "desde que corroborada por outras provas", estimula-se, indiretamente, a busca pela confissão a qualquer custo. Puro resquício ditatorial.
A pouca proteção a testemunhas é também fator que gera enorme entrave à busca da verdade.
A mais urgente reforma, contudo, é a da mentalidade das autoridades, a fim de que se evite essa irracional "tolerância menor do que zero" para crimes menos graves, acompanhada de hipócrita benevolência com outras formas de violência que geram males muito maiores à sociedade.
Vivenciamos o absurdo. De um lado, as desumanas prisões tornando as pessoas piores, presas do crime organizado; de outro, a impunidade dos que desviam recursos públicos, que gera mais desigualdade social, mais injustiça, mais violência.
Chegamos à triste constatação de que o atual sistema punitivo, em vez de combater o crime, está gerando mais criminalidade. O pior é acreditar no sistema sem enxergar o óbvio: estamos enxugando gelo.
Texto de ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 39, mestre e doutor em direito pela USP, é advogado criminalista. É co-autor do livro "Código Penal Comentado", entre outras obras.
Na Folha de São Paulo de 19/03/2008
Meu comentário:
Em Maceió, acusado de furto de um queijo passa meses em cela desumana, mas se pegar um "Land Rover de R$ 80.000,00" fica solto, não vai para o xadrêz.
Na minha opinião todo corrupto deveria ser julgado como assassino, sim como assassino de crianças que morrem sem assistência médica, assassino de parturientes que morrem nas filas dos hospitais sem assistência, ... a lista é enorme.
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