Mal compreendido e estigmatizado, transtorno mental exige ação rápida
Nos últimos 50 anos, a evolução da medicina permitiu redução drástica nas mortes causadas por doenças mais conhecidas, como as cardiovasculares e o câncer. Infelizmente, o mesmo ainda não ocorreu com o suicídio: as taxas se mantêm estáveis ou até aumentaram em alguns países, caso do Brasil. Entre 2011 e 2015, o número de ocorrências subiu cerca de 7% no país —77% das mortes por suicídio acontecem em países de baixa e média renda.
O suicídio é um fenômeno complexo e multicausal. Existe, contudo, uma motivação comum em aproximadamente 90% dos casos: a existência de um transtorno mental, tal como depressão e alcoolismo. A mortalidade associada ao suicídio é apenas a ponta do iceberg. É preciso ampliar o debate: temos que olhar para a saúde mental e cuidar das pessoas com transtornos mentais.
Durante a pandemia, o tema saúde mental entrou pela porta da frente de nossas casas. Sentimentos, emoções, pensamentos, todos os componentes do funcionamento típico da nossa mente foram afetados pela mesma ameaça. Num primeiro momento, vivemos o medo, a ansiedade, as preocupações. Muitos viveram o luto. Sofremos e usamos nossas ferramentas para lidar com esse sofrimento. Esse processo de negociação contínua é uma boa definição para saúde mental.
Quando essa negociação não vai bem, temos os sintomas. E quando os sintomas persistem e vencem a nossa capacidade de superação, o nível de sofrimento aumenta, passando a afetar várias dimensões da vida, impactando a rotina no trabalho, na escola e nas relações. Isso caracteriza um transtorno mental, termo mal compreendido e estigmatizado, mas que designa os diagnósticos da psiquiatria, incluindo depressão, transtornos de ansiedade e transtorno bipolar, entre outros.
Os transtornos mentais são muito frequentes: uma em cada quatro pessoas vai desenvolver um quadro ao longo da vida. São as principais causas de incapacitação na faixa etária dos 14 aos 50 anos. Isso gera um custo para a economia mundial estimado em US$ 2,5 trilhões. De acordo com projeções da Organização Mundial da Saúde, esse número chegará a US$ 6 trilhões em 2030.
Atualmente, os transtornos mentais são considerados doenças crônicas dos jovens, já que três em cada quatro adultos acometidos começaram a apresentar sintomas antes dos 24 anos e metade desses antes dos 14 anos. Por outro lado, o investimento em saúde mental tem um retorno inquestionável. A Lancet Commission para saúde mental global aponta que, para cada dólar investido por um governo no tratamento de depressão e ansiedade, há um retorno de outros quatro em melhora de saúde e ganho de produtividade.
Para mudar esse cenário temos que chegar mais cedo, identificando precocemente e tratando de forma eficaz as pessoas com transtornos mentais. Contudo, essa não é uma tarefa trivial, e são inúmeras as barreiras. Dados de estudo que conduzimos no Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento (CNPq e Fapesp), que segue 2.500 jovens em São Paulo e Porto Alegre por mais de dez anos, mostram que cerca de 80% daqueles que apresentam um transtorno mental não estão em atendimento. Segundo o estudo, o principal motivo associado à falta de tratamento não foi a escassez de serviços de atendimento, mas sim o estigma relacionado de ter alguém com um transtorno mental na família.
Uma das maiores campanhas de conscientização sobre suicídio do mundo, chamada Setembro Amarelo, vem sendo desenvolvida com sucesso no Brasil. Realizada por importantes atores da sociedade civil, ela busca levar informações para combater o estigma ligado ao suicídio. Uma pessoa que apresenta pensamentos suicidas precisa ser avaliada e tratada com urgência. A ação rápida e coordenada salva vidas.
Não há dúvidas de que cuidar do suicídio é primordial, mas temos que agir antes: adotar o paradigma da prevenção, que começa pela informação sobre o tema. Nesse sentido, a pandemia vem oferecendo uma oportunidade única. Precisamos falar sobre saúde mental.
Texto de Rodrigo Bressan e Pedro Pan na Folha de São Paulo
Rodrigo Bressan, psiquiatra, é presidente do Instituto Ame Sua Mente e professor livre docente pela Unifesp e do King’s College London
Pedro Pan, psiquiatra, é conselheiro do Instituto Ame Sua Mente e professor-adjunto na escola Escola Paulista de Medicina/Unifesp
“Não tem como ser uma pessoa saudável em uma sociedade adoecida”
No país considerado o mais ansioso do mundo em 2020, segundo levantamento feito pela OMS, suicídio é a 3ª maior causa de morte entre os jovens brasileiros.
O corpo que mais morre de suicídio no Brasil tem cor, idade e sexo. A maioria é homem, negro e com idade entre 10 e 29 anos, segundo dados do Ministério da Saúde. E as estatísticas apontam para o aumento dos índices.
O modelo de sociedade capitalista e competitivo ou a falta de serviços básicos (moradia, saúde, educação, segurança, lazer, cultura), o abandono familiar, o vício em drogas, doenças mentais, sentimento niilista de ausência de sentido na vida, dificuldade em resolver problemas cotidianos ou o desânimo generalizado em atividades comuns. Tudo isso pode contribuir para o surgimento ou aprofundamento de doenças mentais ou pensamentos suicidas.
Há também os fatores inerentes à situação do país, como a conjuntura política, social, econômica e cultural, que passa por um período complexo, impactando não somente as instituições nacionais, como também os cidadãos, que precisam se adaptar a novas realidades, como o desemprego e ausência de perspectivas.
Existe uma lista interminável de “lugares mentais e físicos” perpassados por alguém que comete suicídio; cada caso é único. O importante citado por campanhas como a do “Setembro Amarelo”, de prevenção ao suicídio, é a identificação e o acompanhamento precoce.
Para falar sobre suicídio de forma geral e na população negra jovem em particular, entrevistamos a psicóloga e psicanalista Clélia Prestes, do Instituto AMMA Psique e Negritude. Clélia é especialista em psicologia clínica psicanalítica pela UEL (Universidade Estadual de Londrina) e doutora em psicologia social pela USP. Também foi pesquisadora visitante no Departamento de Estudos Africanos e Afro-Diaspóricos pela Universidade do Texas em Austin.
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“Eu penso que estamos em um momento de muita carência, de muita desconexão. A saúde, na forma como eu conceituo saúde, ela é a integração harmoniosa das diferentes dimensões pessoais, sociais, coletivas, ecológicas e cósmicas. Não tem como ser uma pessoa saudável numa sociedade adoecida, não tem como ser uma pessoa saudável às custas dos esgotamentos naturais ou à base da exploração de outras pessoas.
Tudo isso em um momento político de desamparo, torna muito difícil alguém hoje estar satisfeito, seja em quem quer que a pessoa tenha votado. E é de uma certa ambiguidade o tempo todo a política. Para uma psicóloga isso é uma fábrica de loucura, de angústia, de grandes ansiedades. Tem uma certa tortura que vai acontecendo socialmente e que vai nos deixando em sofrimento. Me parece que esse conjunto de elementos históricos, políticos, ecológicos nos deixa em sofrimento e sem recursos para podermos seguir saudáveis”
“Cada criança cresce nas escolas aprendendo que tem que ser líder. Não sei quem elas vão liderar, porque todo mundo vai ser líder ou cresce achando que tem que ser um ator de filme pornográfico. Tem que ser uma coisa performática e muitas vezes nem têm experiência sexual, mas precisam dizer que têm e isso pode ser extremamente “ansiogênico” para um jovem que ainda está tentando se descobrir, se localizar e tem toda uma demanda na forma de estar no mundo.
Então todos os incentivos que a mídia traz de como a gente precisa fazer e de que a gente precisa ser incrível, precisamos nos sobressair de outras pessoas, seja no jogo, seja nessa disputa por ser celebridade, de ser o primeiro [melhor] da turma. Isso tudo pode ser muito exigente para alguém que ainda está frágil, apesar de ser grande”
“A família é essencial, o papel da família é oferecer contorno, ajudar a acolher quando esse jovem chega com a frustração de não ter conseguido, ajudar inclusive a mostrar que está tudo bem não conseguir também. A gente que é adulto muitas vezes também não consegue, mas a gente continua tentando; é apoiar, é dar limite, dar colo”
“Como prevenção do suicídio a gente precisa conhecer bem essas pessoas para poder inclusive identificar quando tem alguma coisa que não está bem, estabelecer ou manter um diálogo sempre que possível.
A pessoa deprimida por exemplo, que pode ser um dos pontos que leva ao suicídio, não é só a pessoa que fica no quarto e não consegue sair – que também é um caso muito importante de ser cuidado -, mas ela pode estar em uma sequência de saídas, pode ser uma pessoa muito agitada, muito ativa, que é uma forma de não entrar em contato consigo mesma, de fugir do que dói”
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“Jovens negros têm um lugar reservado na sociedade que tem a ver com imaginar que são pessoas que vão ter menos condição de progredir no trabalho, que seriam pessoas perigosas, que não são confiáveis, das quais a gente precisaria ter medo ou oferecer poucas oportunidades.
Isso tudo interfere nessas pessoas. Interfere, inclusive, no acesso que essas pessoas têm à garantia de seus direitos.
Se eu sou uma pessoa da sociedade que recebo o tempo todo esse tipo de expectativa, esse tipo de tratamento, isso pode impactar no quanto eu me ligo à vida, no quanto eu projeto sonhos para a minha vida, o quanto eu acredito que eu vou poder realizá-los e muitas vezes essa não é uma conta que fecha positiva para jovens negros.
Então tem todos esses elementos e tem mais o fato de [eles] serem alvos de muitas violências, de muitas dificuldades no acesso à educação, de acesso à progressão no trabalho ou mesmo da dificuldade de ter projetos de vida com tantos jovens negros sendo assassinados, violentados”
“A morte do jovem negro chega muitas vezes por assassinatos com armas de fogo e essas mortes, esses fatos, vão minando a vitalidade e a dificuldade de sonhar, para além das questões sociais, [como] ter uma decepção grande, uma perda significativa, um adoecimento psíquico que leva a pessoa a não conseguir se firmar na vida. Mas isso tudo, todos esses aspectos vão se unindo [para o suicídio], não é só uma questão social ou só pessoal”
“É importante falar das universidades porque é um dos espaços em que esses adolescentes e jovens estão e que é um espaço muito sonhado e muito difícil de entrar, mas que também muitas vezes é um espaço de sofrimento. Nos últimos dez anos um aumento enorme de pessoas negras nas universidades por conta das cotas, das ações afirmativas. Mas as universidades continuam sendo heteronormativas, racistas, com uma lógica capitalista porque a sociedade é assim, então a universidade também é.
O que acontece é que muitas vezes jovens negros entram na universidade e têm o impacto de como vão ser recebidos, de quais vão ser as teorias que vão ler, de como serão vistos os referenciais que tem a ver com os seus ancestrais, a dificuldade de ter o seu modo de falar, de se expressar, de se movimentar”
A gente precisa falar francamente disso. Estar na universidade é estar em um lugar em que meu corpo percorre um espaço mas que eu só vejo corpos parecidos com o meu para limpar o chão, para cozinhar, que são tarefas tão válidas quanto dar aula só que seria importante que nós [negros e negras] também estivéssemos na docência, em chefia de departamento, nas referências bibliográficas, na forma em como organizamos a aula…
Tanto na USP, onde fiz mestrado e doutorado, quanto em minha experiência no exterior, na Universidade do Texas em Austin, eu tive algumas situações em que tive que explicar que eu era estudante.
Então vários elementos dificultam não só o acesso, mas a permanência de pessoas negras e de referências negras na universidade”
“Não tem essa regra de que quem é negro vai [necessariamente] entender negro, mas infelizmente no Brasil muitas psicólogas não pensam o racismo como um dos aspectos a serem considerados e não só com pacientes negros. Qualquer pessoa em terapia deveria pensar a sua racialidade”
“Muitas vezes nas redes sociais, homens negros que chegam à maturidade, aos trinta anos, comemoram não apenas mais um ano de vida, não apenas o chegar a fase adulta, mas que superaram as estatísticas, que conseguiram sobreviver. O número de jovens negros assassinados no Brasil corresponde a mortes ocorridas em países em guerra. Para jovens negros eles vivem em um país em guerra”
“Eu só tenho prejuízos na sociedade às custas de privilégios de outras pessoas. Um prejuízo desse tipo, que é sócio-histórico, ele é uma gangorra; tem prejuízo aqui para garantir privilégio ali”.
De Morris Kachani n'O Estado de São Paulo de29 de setembro de 2021
1- A PEC do retrocesso administrativo 2 - (Ao menos) Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32 3 - Reforma administrativa é uma PEC para manter benefícios de carreiras já privilegiadas
A PEC do retrocesso administrativo
A atual proposta, que se originou no Executivo e já chegou torta, a cada passo mais se afasta do objetivo de melhorar a gestão de pessoas
Em 19 de setembro de 2021 Ana Carla Abrão, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld escreveram n'O Estado de S.Paulo
A nova versão do relatório do deputado Arthur Maia, apresentada nesta última quarta-feira à Comissão Especial da Reforma Administrativa, consegue ser pior do que a primeira, já objeto de manifestação nossa (“A Contrarreforma Administrativa”, publicado em 04/09/2021). O relator cedeu ainda mais às pressões puramente corporativas de associações de servidores públicos. Deixou de corrigir os erros do projeto do governo e contribuiu com novos desvios de sua autoria, constitucionalizando o que deveria eliminar.
E pior: o relatório previu vantagens e proteções cujo único sentido é, distorcendo a Constituição democrática de 1988, reforçar a caminhada em direção a um Estado policial no Brasil. Nosso país precisa reagir enquanto é tempo.
O serviço público brasileiro tem grandes problemas. Há excesso de carreiras, com reservas de mercado injustificáveis. A elite desfruta de privilégios injustos enquanto o restante dos servidores não é devidamente valorizado ou atua em condições inadequadas. Faltam avaliações de desempenho. A produtividade geral é baixa, assim como a qualidade dos serviços. São raras as demissões de maus servidores. Falta mínima flexibilidade, algo indispensável à gestão de pessoas.
Qual a responsabilidade das atuais normas constitucionais? Em vários casos, nenhuma. Por exemplo: a Constituição, em seu artigo 41, já prevê ser necessário avaliar os servidores. Por que não acontece? As leis de regulamentação até agora não foram feitas. E os governos não mostram interesse em avaliar serviços e servidores. Nenhuma mudança na Constituição vai resolver essa lacuna. Mas sempre é possível incluir novas exigências para dificultar ou inviabilizar avaliações. A proposta do relator fez exatamente isso. Equiparou procedimentos de avaliação a processos punitivos, uma completa distorção. E reservou à própria corporação o controle das decisões de dispensa de servidores ineficientes. Ou seja, blindou ainda mais a ineficiência.
Outro instrumento de gestão de pessoas é a contratação temporária, importante em todas as áreas e largamente usada nas administrações modernas. O relatório procura inviabilizá-la. A principal estratégia é reservar a servidores permanentes a execução de extensa lista de “atividades finalísticas”. Ali é possível identificar um a um os lobbies das elites do serviço público, que circulam com desenvoltura no Congresso Nacional. Mas não é só. O relatório quer impedir contratações temporárias para a “gestão governamental” – na prática, o mesmo que as proibir para qualquer atividade.
O mais grave é a tentativa de mudar a Constituição para fazer do Brasil uma república de policiais. O relatório se esmera em conceder privilégios a grupos ligados à segurança pública. Cria monopólio de acesso ao cargo de delegado-geral da Polícia Federal, imuniza com foro privilegiado os delegados-gerais das polícias civis dos Estados, dá aposentadorias e pensões especiais a policiais e outros agentes de segurança, e assim por diante. Nada a ver com reforma administrativa. É pura captura do Estado por grupos de servidores armados.
A atual proposta, que se originou no Executivo e já chegou torta, a cada passo mais se afasta do objetivo de melhorar a gestão de pessoas. Se aprovada, fará a própria Constituição se tornar um empecilho às reformas necessárias. O episódio mostra que lobbies corporativos conseguem se sobrepor a todo bom senso e às intenções de avanço. Os interesses da coletividade se perdem na falta de liderança, de clareza e de compromisso com a agenda de país. A cada PEC que se aprova, a ordem constitucional vai sendo desviada para servir às elites do serviço público.
Precisamos sim avançar o quanto antes na reorganização do Estado. O caminho correto e viável passa por regulamentar por lei o que a Constituição já comanda e caminhar da direção da desconstitucionalização das normas do RH público.
É hora de desarmar o desastre. A PEC 32 é uma bomba relógio. Não estamos mais discutindo reforma do Estado ou melhoria do RH público. Sua tramitação tem de ser encerrada.
ANA CARLA ABRÃO É ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN; ARMINIO FRAGA É EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL; CARLOS ARI SUNDFELD É PROFESSOR TITULAR DA FGV DIREITO SP https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,a-pec-do-retrocesso-administrativo,70003844038
Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32
Em 21 de setembro de 2021Ana Carla Abrão escreveu n'O Estado de S.Paulo (Ao menos) Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32
Atual projeto de reforma administrativa atende a interesses corporativistas e condena País à mediocridade
Reforma administrativa é coisa séria. Bem feita, gera aumento na qualidade dos serviços públicos, ajuda a fazer crescer a produtividade da economia e melhora a trajetória fiscal de curto, médio e longo prazos. Malfeita, nos condena à mediocridade e à pobreza ao consolidar a máquina pública como reforçadora de desigualdades sociais.
Um projeto complexo (e confuso) de emenda constitucional chegou ao Congresso Nacional ao final de 2019. Ficou ali dormente até que, recentemente, entrou no rol das reformas a serem entregues neste ano. Foi colocado na mesma esteira desastrosa da reforma do Imposto de Renda. Deu no que deu.
O relatório apresentado pelo deputado Arthur Maia à Comissão Especial da Reforma do Estado tem retrocessos – por si só, inaceitáveis – e inviabiliza avanços futuros. Ele nos dá os motivos para defender o fim da tramitação da PEC 32. Destaco aqui três deles:
1) Cravar no texto constitucional uma definição do que sejam atribuições de carreiras típicas de Estado é atender a pleito antigo de carreiras públicas de elite que queriam garantir privilégios na Constituição. Sim, há atribuições típicas de Estado que precisam ser preservadas e protegidas pela estabilidade, embora não necessariamente na Constituição. Ainda mais com definições estanques, em que cabem quase todos os grupos. Afinal, imagine ter de reformar a Constituição por que essas tantas atribuições exclusivas se tornaram obsoletas ou fundíveis? Ao abrir um espaço em que centenas de carreiras aí se identificam, pegando carona em blindagens injustificadas, os atuais privilégios das castas do serviço público não só deixam de ser eliminados para os poucos que os detêm, mas passam a ser constitucionalizados para quem não deveria tê-los. Ampliam-se em número e força as reservas de mercado (ao proibir contratações temporárias para o rol amplo e subjetivo de atividades típicas de Estado); se dá tratamento diferenciado na avaliação de desempenho; e se inviabiliza a dispensa por baixo desempenho, ao se colocar os procedimentos administrativos na mão de servidores da mesma carreira que o eventual dispensado. Trata-se de ampliar o fosso entre o mundo real e o das elites do serviço público brasileiro.
2) Há modelos consagrados de avaliação de desempenho no setor público. Eles exigem padronização, implementação cuidadosa e calibração no tempo. Precisam ser dotados de flexibilidade, desde que mantidos os conceitos de impessoalidade, estes garantidos pela avaliação final colegiada, pela padronização dos procedimentos e pelo direito à ampla manifestação do avaliado. Mas seu detalhamento não deve estar na Constituição, muito menos com referências por demais vagas, como o dever de considerar as condições de trabalho do avaliado. Colocar esse tipo de norma muito aberta na Constituição tem o único efeito prático de garantir o espaço para a judicialização das avaliações. Também não faz sentido que a avaliação tenha critérios distintos ou garantias especiais para classes de servidores de elite. Além de errado, é injusto. Compromete-se, assim, a probabilidade de uma justa, correta e eficiente avaliação de desempenho no setor público brasileiro.
3) No meio dos retrocessos e blindagens contra futuros avanços, o relatório envereda em tema que nada tem a ver com uma reforma do RH do Estado, mas muito a ver com a criação de um Estado policial. Faz com que as forças de segurança (ampliadas com a inclusão de guardas municipais e, pior, agentes socioeducativos, cuja equiparação a policiais é um grande desvio) sejam contemplados com privilégios constitucionais absurdos, que sequer as demais carreiras típicas de Estado possuem. O relator cede ao momento que vivemos, em que fortes lobbies de policiais são respaldados por um governo que vê nas armas seu único lugar de fala. O foro privilegiado ao delegado-geral da PF e aos delegados das Polícias Civis vai na contramão do que precisamos. Ampliar o conceito de forças de segurança e conceder integralidade e paridade na aposentadoria equivalem a devolver avanços importantes da reforma da Previdência.
Não é à toa que o barulho dos sindicatos de servidores públicos sumiu. As antes campeãs #PECdaRachadinha ou #ReformaAdministrativaNao deram lugar ao silêncio nas redes sociais. Sinal inequívoco de que os interesses corporativistas estão atendidos numa PEC que representa o fim da reforma administrativa e a condenação do Brasil à mediocridade. É aqui que estamos e aqui que ficaremos com essa equivocada contrarreforma.
(Texto de minha autoria e erros e omissões de minha responsabilidade. Mas, neste tema, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld são valiosos e imprescindíveis companheiros de jornada. Agradeço aos dois pela parceria e pelos comentários).
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN
(Ao menos) Três motivos para encerrar a tramitação da PEC 32
Em 28 de setembro de 2021 Ana Carla Abrão n'O Estado de S.Paulo Reforma administrativa é uma PEC para manter benefícios de carreiras já privilegiadas
Além de os atuais juízes e membros dos Ministérios Públicos continuarem a salvo, seus futuros colegas também estarão A coluna de hoje é uma edição especial. Foi escrita em coautoria com Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld, que assinam comigo o texto que segue:
Para valer a pena, uma reforma do RH do Estado teria de combater o regime de castas funcionais, que dá privilégios a carreiras próximas ao poder e deixa à própria sorte, na precariedade e sem estímulo, a maior parte dos servidores. Para isso, deveria começar por integrar carreiras e suprimir desigualdades. Mas o problema foi ignorado na emenda constitucional 32.
Na semana passada, a comissão da reforma administrativa aprovou um substitutivo do relator da PEC 32, deputado Arthur Maia. Se o texto for acolhido pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, o resultado será cristalizar o regime de castas funcionais e incluir nele mais alguns grupos. Um retrocesso.
O substitutivo insere na Constituição uma lista de carreiras privilegiadas, com proteções que os servidores públicos da base jamais terão. É estarrecedor que, em um País em que o maior problema continua sendo a desigualdade, se queira aprovar uma PEC justamente para dizer que a lei “tratará de forma diferenciada” carreiras escolhidas do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público. O texto contemplou policiais em geral (inclusive, os legislativos), agentes de trânsito, peritos criminais, agentes de inteligência etc, cedendo àqueles que querem impor um estado policial ao Brasil.
Convicto quanto à orientação de dar privilégios a castas, o substitutivo concede a certas carreiras policiais aposentadorias cujo valor equivalerá para sempre à remuneração integral de quem estiver na ativa. Cônjuge ou companheiro receberá a mesma pensão, vitalícia, se o policial morrer na função. Anula-se, assim, a reforma da Previdência em favor dessas castas, enquanto aposentadorias de professoras públicas continuarão observando os limites gerais, assim como as pensões das enfermeiras que morrerem por contaminação em serviço. É a PEC da desigualdade.
O substitutivo não mexe com juízes e membros dos Ministérios Públicos, os mais privilegiados. Alegou-se cinicamente que seria inconstitucional uma emenda constitucional tratar disso, como se tais castas pairassem acima da Constituição e do poder democrático.
Após a aprovação, o ministro Paulo Guedes divulgou um documento comemorando supostos avanços. É clara tentativa de confundir. Um deles seria a retirada de benefícios de quem não os tem. Isso mesmo: a PEC proíbe a concessão, a futuros servidores, de férias superiores a 30 dias ou de aposentadoria como punição, por exemplo. Nada significa na prática, pois não se aplica a quem hoje os tem. Além de os atuais juízes e membros dos Ministérios Públicos continuarem a salvo, seus futuros colegas também estarão. É uma PEC para manter privilégios.
Outro avanço estaria na regra da extinção de cargos desnecessários ou obsoletos, dispensando-se seu ocupante, mesmo estável. Não há avanço, pois outra regra do substitutivo proíbe a extinção justamente dos cargos hoje ocupados. Quanto a servidores que ainda não entraram no serviço público, seria fácil evitar a desnecessidade ou obsolescência futura. Bastaria modernizar e fundir as velhas carreiras antes de fazer quaisquer concursos. Mas, ao constitucionalizar carreiras obsoletas (como oficial de Justiça) ou desnecessárias (como policial legislativo), o substitutivo atrapalha ajustes modernizantes no futuro. É a PEC do atraso.
Ainda segundo o ministro, haveria o aprimoramento das avaliações de desempenho. Não é verdade. A Constituição atual já exige as avaliações, que não ocorrem porque os governos não querem. Não há hoje qualquer regra na Constituição que impeça ou atrapalhe a análise adequada do desempenho de órgãos e servidores. Escrever mais normas vagas sobre o assunto na Constituição é o mesmo que nada e ainda engessa. É a PEC da ficção...
Portanto, o ministro está comemorando vitórias de Pirro, a partir de instrumento equivocado e cedendo a lobbies corporativistas. A verdade é que se está dificultando, e não fazendo, aquela que deveria ser a grande reforma para ter melhores serviços públicos, maior produtividade e modernização da gestão de recursos humanos no setor público.
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-administrativa-e-uma-pec-para-manter-beneficios-de-carreiras-ja-privilegiadas,70003852816
Família de vítima fala em extermínio em hospital do Amazonas que recebeu experimento com proxalutamida
Fevereiro começou de forma terrível para os hospitais que tratavam doentes de Covid-19 no Amazonas. O estado mal havia acabado de superar a crise do oxigênio e já enfrentava um novo pico da pandemia. As mortes tinham aumentado sete vezes em janeiro e continuavam a crescer.
No Hospital Regional de Itacoatiara, terceira maior cidade do Estado, a 270 km de Manaus, os pacientes eram submetidos precocemente à ventilação mecânica, porque faltavam equipamentos de ventilação não invasiva. Até se anunciou a chegada de um remédio “revolucionário”, capaz de reduzir drasticamente as mortes no hospital em três ou quatro dias: a proxalutamida. Defendida por Jair Bolsonaro, a substância é usada de forma experimental contra o câncer de próstata.
Foi o que prometeu o presidente da rede particular de saúde Samel, Luís Alberto Nicolau, em uma entrevista transmitida pelo YouTube da porta do hospital regional de Itacoatiara. “Trouxemos a medicação para ser utilizada em todos os pacientes”, disse Nicolau, que é irmão de um deputado estadual do PSD e pré-candidato ao governo do estado chamado Ricardo Nicolau.
Ele disse ter sido chamado pelo prefeito da cidade, Mário Abrahim (PSC), para socorrer a população e que estava na cidade com médicos para treinar a equipe dos hospitais a aplicar o remédio. E explicou que os resultados dos estudos com a proxalutamida ainda não havia m sido publicados —o que, na prática, significava que não tinham sido validados por ninguém além deles próprios. “Nós não queremos esperar. Queremos colher os benefícios agora, porque estamos aqui com 106 pacientes internados e eles não vão esperar 30, 60, 90 dias.”
Do lado de dentro, o médico Michael Correia Nascimento, do corpo clínico do hospital, oferecia a oportunidade de participar de um novo estudo com o tal medicamento milagroso, que logo ficou conhecido como “remédio da Samel”
Uma das pacientes era a aposentada Zenite Gonzaga da Mota, que havia sido internada “andando e se sentindo bem, só para fazer exames”, de acordo com a sobrinha Alessandra Saar. Até aquele dia, ela estava sendo tratada normalmente com antibióticos, dipirona e oxigenação, e se sentia bem, mas como outro doente com sintomas leves foi liberado cinco dias após tomar o “remédio da Samel”, a filha, que pediu para não ter o nome mencionado, concordou em assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para incluí-la no estudo. A promessa do “dr. Michael” era curar Zenite também em cinco dias. Não foi o que aconteceu.
Em princípio, os parentes não perceberam nada estranho. Não sabiam que o termo de consentimento não trazia informações obrigatórias pelo regulamento do Conselho Nacional de Saúde. O documento não dizia que parte dos voluntários receberia placebo, nem descrevia os riscos e benefícios de participar do trabalho.
"Eles falaram que era uma medicação que tinha salvado vidas na Samel Manaus", diz Alessandra, que relembra: "Mas nem deixaram a gente ficar com a nossa via".
A reportagem do GLOBO só conseguiu acesso a uma cópia do documento porque ele consta de um inquérito civil aberto pelo Ministério Público Federal do Amazonas. Há ainda um inquérito criminal em andamento.
Os parentes de Zenite começaram a estranhar quando viram que quem tinha que administrar a medicação não eram os pesquisadores, mas eles mesmos.
Outra coisa que ninguém em Itacoatiara sabia era que o estudo também não tinha autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep. O endocrinologista Flavio Cadegiani, que liderou os estudos, havia protocolado um pedido de autorização para o ensaio, mas para ser feito em Brasília.
Só no final de abril os pesquisadores fizeram novo pedido para estender a pesquisa a cidades no Amazonas onde ela já havia até acontecido: Manaus, Itacoatiara, Parintins, Maués, Manicoré, Coari e Manacaparu.
A Conep negou autorização para estender o ensaio clínico ao Amazonas, pois a emenda não poderia ter sido realizada após o início do estudo. Àquela altura, ele já estava sob suspeita. Os pesquisadores haviam anunciado em uma live resultados supostamente fantásticos, com eficácia de 92% em pacientes graves. Segundo eles, 141 haviam morrido no grupo placebo, enquanto só 12 no grupo que havia tomado o remédio. Posteriormente, informaram à Conep 178 mortes no total e, por fim, 200 óbitos.
À Procuradoria-Geral da República, a comissão afirmou que os quadros clínicos dos voluntários que morreram não foram relatados nem suficientemente detalhados. Por isso, não seria possível “descartar a possibilidade de morte provocada por toxicidade medicamentosa ou por procedimentos da pesquisa”.
Dona Zenite e seus parentes também não sabiam de nada disso. Mas perceberam que o novo tratamento não estava adiantando. A aposentada começou a ter falta de ar, e, de acordo com a sobrinha, ficou com braço roxo, bolhas subcutâneas e arritmias.
"Mesmo assim eles não pararam com as medicações. Aquilo foi um extermínio. Eu presenciei. Todos os dias via as pessoas morrendo ao lado (da minha tia). As pessoas estavam bem, conversando, e de repente pioravam. Os médicos não aceitavam questionamentos simples nossos", lembra Alessandra.
Naqueles dias, Zenite teve duas paradas cardíacas. Os acompanhantes insistiram para transferi-la para Manaus, mas o médico Michael Nascimento não permitiu.
"A gente percebia que eles estavam segurando os pacientes em Itacoatiara por causa do estudo".
Só depois de 34 dias de internação, o médico autorizou a remoção. Era tarde demais: Zenite morreu em 13 de março, três dias depois de dar entrada no Hospital Delphina Aziz, na capital amazonense. Foi enterrada em um velório rápido, típico dos tempos pandêmicos.
A família só descobriu que o remédio que Zenite aspirava em Itacoatiara era cloroquina depois de requisitar o prontuário dela. Foi aí que a filha denunciou o caso à Polícia Civil. Mas o inquérito — que apura só a nebulização de cloroquina e não o uso de proxalutamida — até hoje não foi concluído.
A reportagem também procurou o médico Michael Correia Nascimento, mas ele não atendeu às ligações e ignorou as mensagens enviadas. A rede Samel não respondeu aos questionamentos do GLOBO. O prefeito de Itacoatiara, Mário Abrahim, não retornou as ligações, e.a Secretaria de Saúde da cidade não quis atender.
Hoje, a sobrinha de Zenite diz que a família se arrepende de ter aceitado submetê-la ao que hoje chamam de “experimento”.
"A gente confiou na equipe do hospital. Mas foi um erro".
Reporagem especial para O GLOBO na coluna da Malu Gaspar
Foto com cartaz de Bruno Covas publicada pelo Agora foi tirada em ato de 12 de setembro
Imagem estampou capa da edição impressa desta segunda (13) do jornal e foi registrada na avenida Paulista por fotógrafo da Folha
Circula pelas redes sociais um vídeo que induz falsamente leitores a acharem que uma foto antiga foi publicada na capa da edição impressa desta segunda-feira (13) do Agora. A imagem, porém, é de fato das manifestações do último domingo (12).
No vídeo, um homem filma a capa do jornal e diz, em tom irônico: “Jornal Agora, que pertence à Folha. Segunda-feira, 13 de setembro de 2021. Aqui tem a notícia da manifestação Fora, Bolsonaro. A Paulista bem cheia, fora, Bolsonaro. Porém, olha aqui essa placa, Bruno Covas, campanha do Bruno Covas!?"
Entre as chamadas na capa do jornal, há uma sobre a manifestação contra Bolsonaro, ocorrida na avenida Paulista no domingo. Esta chamada traz uma foto em que se veem cartazes com o nome do ex-prefeito de São Paulo Bruno Covas, que morreu em maio deste ano, e seu número na campanha eleitoral de 2020.
Por esse motivo, usuários nas redes têm compartilhado o vídeo alegando que a imagem seria falsa ou antiga. A informação não procede. A foto foi tirada pelo fotógrafo Eduardo Knapp, da Folha, na tarde do dia 12, e entrou no sistema digital de imagens do jornal às 18h49.
"Estava fazendo meu trabalho de cobertura do ato e tinha esse cartaz 'fora do tempo' apoiando Bruno Covas, falecido recentemente, na mesma avenida Paulista por onde passou seu caixão", conta o fotógrafo.
Diversos elementos atestam que a foto é, de fato, do dia 12 de setembro de 2021: