domingo, 3 de agosto de 2008

Em defesa da Defensoria Pública

Rejeito a idéia de pertencer a uma OAB que busca mais os interesses de seus membros do que o compromisso com a ordem pública


A CONSTITUIÇÃO estabelece direitos que nem sempre são respeitados pelo Estado. Um deles é o acesso à saúde, outro é o acesso à Justiça e, como conseqüência, à assistência judiciária garantida aos desprovidos de recursos. Diz o artigo 134 que "a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV".
Está ainda assegurada a existência de carreira própria, à qual se tem acesso por concurso público. No parágrafo 2º desse artigo, assegura-se autonomia funcional e administrativa às Defensorias Públicas Estaduais. Apesar da imperiosidade da Constituição Federal e da Constituição Estadual, somente em 2006 foi criada a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, contando hoje com 400 profissionais, substituindo assim a Procuradoria de Assistência Judiciária do Estado, que representava um braço da Procuradoria Geral do Estado.
Em respeito à história, lembramos que a idéia germinou em São Paulo em 1935, pelo Serviço Social do Estado, em que atuavam advogados adestrados para a defesa do pobre. André Franco Montoro começou sua carreira exercendo tais funções e fazia questão de lembrar-se desse capítulo de sua vida, tão coerente com sua trajetória de humanista. Coincidentemente, foi em seu governo que mais um passo importante foi dado para garantir tal direito constitucional.
Como o Estado se mostrava incapacitado para atender às demandas das pessoas necessitadas, foi criado um fundo de assistência judiciária alimentado com porcentagem das custas, uma forma de garantir a contribuição dos que dispõem de meios para ter acesso à Justiça em favor dos desprovidos de igual sorte.
Firmou-se então um convênio envolvendo a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para que os advogados nomeados pelos juízes para defender os pobres fossem remunerados por seu trabalho. Impor ao advogado a obrigação de trabalhar de graça é estabelecer um pacto humilhante entre os que dão esmola em forma de serviço e os que a recebem.
Claro está que seria uma solução transitória, até que o Estado tivesse condições de oferecer defesa aos necessitados, completando assim o tripé da Justiça. O Estado, que dispõe de um juiz para julgar e de um promotor para acusar, deve também aparelhar a sociedade de meios para que a defesa se faça por profissional concursado.
A seccional paulista da OAB pretendeu que o convênio fosse reformulado em termos absolutamente inconvenientes, pois pretendeu reajuste superior à própria inflação.
O fundo foi criado -e o digo com segurança, pois me encontrava ocupando o cargo de secretário da Justiça e me tocou a iniciativa da idéia convertida em lei estadual para que os advogados que eram então impelidos a trabalhar absolutamente de graça recebessem honorários minimamente dignos enquanto lhes fosse imposta a tarefa de prestar assistência judiciária. Mas nunca se questionou ou se pôs em dúvida o quanto é imperioso haver um profissional no organograma da Justiça preparado para desempenhar tal tarefa.
O tempo foi passando e o convênio foi sendo renovado, com o número de defensores públicos ainda insuficiente. E continuará a ser, se prevalecer a posição sustentada pela nossa entidade, que, à guisa de proteger os advogados, põe a perder o direito do miserável de acessar a Justiça. O que se espera da OAB é que empreste seu prestígio e sua força para que efetivamente a Defensoria Pública em São Paulo se robusteça, para que a ela possam ter acesso os advogados vocacionados com a causa do pobre.
A Defensoria Pública está credenciando advogados que se disponham a suprir a deficiência do Estado.
Não cabe à OAB desempenhar tal papel de organizadora e fiscalizadora da assistência judiciária subsidiária.
Tal papel compete à Defensoria Pública. Cabe-lhe, isto sim, fiscalizar a categoria profissional, de forma dura e intransigente, porque o advogado merece tutela pelo que ele representa para a boa distribuição da Justiça.
Como advogado, rejeito a idéia de pertencer a uma entidade que se posta de maneira corporativa, muito mais preocupada em preservar os interesses de seus membros, ainda que respeitáveis, do que perseverar na sua grande missão de compromisso com a ordem pública. Queremos a Ordem assim corajosa como tem sido nesta e em outras gestões, como nos tempos negros da ditadura, quando a ela pertenci como conselheiro e pude testemunhar o seu grande trabalho em prol da democracia.
Tenho esperança de que essa disputa, que aparentemente desagrega a família forense, venha a ser superada em benefício da sociedade. O Poder Judiciário haverá de concluir ao final a indispensabilidade da Defensoria Pública como órgão autônomo.

Texto de JOSÉ CARLOS DIAS, 69, é advogado criminalista. Foi presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Montoro) e ministro da Justiça (governo FHC).

Fonte Folha de São Paulo de 03/08/08

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