Todo fim de manhã de sexta-feira, logo depois da aula, Rita, Jaqueline e Paula pegam o ônibus em Planaltina de Goiás com destino a Brasília. Antes da viagem, as meninas tomam banho e trocam os uniformes por roupas de passear: saias, shorts e blusas coloridas ou de alcinha. Até domingo, a casa delas será a Rodoviária do Plano Piloto, onde vendem balas e chicletes aos passageiros que esperam nas filas. Na mesma plataforma onde ganham o sustento para as famílias, elas são exploradas sexualmente. “Por R$ 3, os moços mexem na gente”, diz Rita. Mexer é tocar no corpo das meninas e fazê-las praticar sexo oral. Ela tem 9 anos. Jaqueline acaba de completar 10 e Paula tem 11 anos.
A reportagem do Correio descobriu que a realidade dessas três crianças se tornou comum no coração da capital do país. A Rodoviária do Plano Piloto, localizada na avenida do poder brasileiro, virou palco da exploração sexual de crianças e adolescentes. São histórias de meninos e meninas que conhecem a rua ao serem vítimas do trabalho infantil ou pedindo dinheiro a estranhos. Acabam sucumbindo à pressão de aliciadores e exploradores.
Nos três dias em que moram na Rodoviária, as três amigas ficam expostas a todos os tipos de violação de direitos garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente. São exploradas, trabalham até altas horas da madrugada, dormem, acompanhadas das mães e de irmãos, embaixo de uma marquise cercada de lixo, de latas de solvente e de bebidas. Não têm acesso a lazer, proteção e alimentação adequadas. Apesar disso, não se enxergam como vítimas. “Gosto daqui muitos dias. Só acho ruim quando chove ou faz frio de noite”, comenta Jaqueline, estudante da primeira série do ensino fundamental.
A pressão para arranjar dinheiro faz com que a realidade dessas garotas seja tolerada pela família. Para conseguir R$ 30, é necessário vender três caixas inteiras de chiclete, o que exige muita sorte para um dia de trabalho. E, nesse ambiente social, é como se a exploração sexual não existisse sem a penetração. “Teve um dia em que o moço quis me dar R$ 5 para fazer sexo comigo, mas eu chamei o policial e disse que ia ser estuprada. O homem fugiu”, conta Paula, que não faz a denúncia quando é “só” tocada por alguém.
Além dos trocados, as meninas são exploradas em troca de pratos de comida, como canja de galinha, ou salgados vendidos nos quiosques da plataforma inferior da rodoviária. Entre os exploradores estão comerciantes da região, compradores de vale-transporte e passageiros do Distrito Federal e do Entorno.
Pista
Alimento e roupa também são moeda de troca na via que passa ao lado do Conic. Lá, as meninas são um pouco mais velhas, mas há pouco tempo era possível encontrar Flavinha, de 12 anos, que optou pelas ruas fugindo da miséria. Quando foi para a Pista, nome dado pelas garotas à prática de sexo por dinheiro ou por pequenos agrados, a menina não tinha nem beijado na boca de um namoradinho de escola. No entanto, fez sucesso com os fregueses — como as adolescentes chamam os exploradores. Depois de seis meses de exploração, ela voltou para casa, em Sobradinho.
Marcela, de 15 anos, também não precisa esperar muito pelos carros embaixo do viaduto. Pela pouca idade, provoca a cobiça dos que freqüentam a região em busca de sexo. Desde março, ela se prostitui para pagar o vício em drogas. Nos três dias em que foi vista pela reportagem, sempre a partir das 22h30, ela estava sempre com a mesma roupa. Moradora de rua, para escapar da violência doméstica, chega a sair com seis homens diferentes por noite. E, quando oferecem mais, faz sexo sem preservativo. “A gente sempre tem camisinha porque ganha dos assistentes sociais, mas os caras nem gostam de usar”, admite. Por ganha-se mais entenda-se um extra de R$ 2 ou R$ 5 no programa que rende, no máximo, R$ 15. Isso, quando recebem. “É comum levarem a gente para os matos perto do Lago Paranoá e deixarem a gente para trás sem dinheiro”, reclama Manuela, de 19 anos. Ela é explorada sexualmente desde os 16. “E a gente não pode reclamar porque apanha feio.” Entre os fregueses, taxistas, empresários e, de acordo com elas, até policiais.
Além da idade, chamam a atenção os trajes e a sujeira com que essas meninas vão para as ruas. Nem sempre há onde tomar banho e a pia do banheiro da rodoviária serve de quebra-galho. “Eles gostam assim suja mesmo, tia. Eles não ligam para nada”, analisa Marcela.
Imposto
A exploração sexual de crianças e adolescentes na região sempre foi combatida por traficantes, prostitutas e travestis. Uma menina na rua, além de dividir os tais fregueses, chama a atenção da polícia, dos assistentes sociais e da sociedade. Desde o início do ano, no entanto, uma parceria foi firmada entre os atores do submundo da rodoviária. Criou-se um imposto chamado Paga Pista. As adolescentes entregam 50% do programa aos travestis e prostitutas que estão há mais tempo na área. Com isso, o pouco dinheiro que recebem ainda é dividido. Na prática, elas são vitimizadas mais uma vez.
Pela localização, os prédios de escritório dos que pensam as políticas públicas para o país são a porta de entrada da exploração das meninas da rodoviária. Como se não bastasse, o estacionamento dos ministérios serve de motel numa mistura de economia e de segurança para os exploradores, já que é difícil entrar em um estabelecimento privado com menores de idade. “A gente fica dentro dos carros ou do lado de fora em cima do capô e é muito difícil aparecer alguém para dizer que não pode”, relata Manuela.
DISQUE 100
para fazer denúncia anônima ou buscar informações sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes
*O nome de todas as personagens foi trocado em respeito à proteção dos direitos das crianças e adolescentes
Solução exige fim do ciclo de omissão de todos os responsáveis
Dupla de amigas na parte superior do terminal. Muitas chegam lá na sexta e só voltam para casa no domingo
Rita, de 9 anos, e Jaqueline, que acaba de completar 10, são exploradas em troca de R$ 3
Solução exige fim do ciclo de omissão de todos os responsáveis
O combate à exploração sexual de crianças e adolescentes na Rodoviária do Plano Piloto está longe de ser simples. A solução do problema, segundo especialistas ouvidos pelo Correio, deve envolver todos os segmentos da sociedade. Não adianta jogar a responsabilidade apenas na família ou no colo do Estado. O enfrentamento deve ser articulado. “Só com o apoio de todos vamos transformar esses cidadãos em protagonistas de seus futuros. A criança tem que saber que é vítima para criar perspectiva de mudança”, afirma Maria de Fátima Pereira Alberto, coordenadora do grupo de estudos sobre trabalho precoce da Universidade Federal da Paraíba.
Para Mário Volpi, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), são necessários quatro pilares para combater a violação de direitos. O primeiro passa pelo fortalecimento da família, com destaque para a geração de renda. Assim as crianças e adolescentes deixam de ir para as ruas. O segundo é o combate à impunidade, com responsabilização do agressor e identificação do aliciador. Em seguida, é hora de atuar com as vítimas, resgatando a auto-estima e superando traumas. Por fim, é fundamental trabalhar para fortalecer o sistema jurídico, com melhoria da estrutura dos conselhos tutelares, dos juizados e das varas da infância. “Não é admissível que exista exploração sexual de crianças em nenhum caso. Na capital do país é ainda pior. E, se isso simbolizar o fracasso das instituições que deveriam proteger as meninas e os meninos, é um choque”, comenta Volpi.
A professora Maria Lúcia Leal, da Universidade de Brasília, responsável pelo maior estudo já feito no país sobre o tema, vai mais longe: “O Distrito Federal tem um turismo de negócios que torna o enfrentamento mais difícil. Existem meninas exploradas à luz do dia por políticos e lobistas”. De acordo com ela, a sociedade do DF tem fracassado em dar uma resposta adequada a um dos maiores problemas envolvendo crianças e adolescentes em situação de rua.
Polícia age, mas elas acabam voltando
A polícia do Distrito Federal conhece a realidade das meninas exploradas na Rodoviária do Plano Piloto. No entanto, não dá sinais de que conseguirá acabar com o problema. “A gente tira as crianças e adolescentes das ruas, mas a estrutura para manter as meninas longe das drogas e das situações de risco nem sempre funciona como deveria. Elas acabam voltando”, admite Alexander Traback, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Ele explica que sem um resgate dos familiares, com geração de renda e injeção de auto-estima, é difícil combater o vício, a violência e a exploração.
De acordo com Traback, periodicamente é feito um levantamento das áreas críticas de violação do direito a partir de denúncias anônimas, reportagens e pesquisas feitas pela sociedade civil. “Com esse material, individualizamos o atendimento”, afirma. O trabalho é feito de forma conjunta pela DPCA, pela Delegacia de Entorpecentes, pela 5ª DP e por policiais militares que fazem ronda diariamente na região. Os casos são repassados aos conselhos tutelares, que encaminham as crianças a abrigos ou as levam de volta para casa. Poucos dias depois, contudo, elas estão de volta.
O delegado explica que todos os envolvidos no processo de vitimização das crianças e dos adolescentes podem ser enquadrados nas leis brasileiras. Na Constituição, que este ano completa 20 anos, o artigo 227 é o que protege os menores de 18 anos. Ele determina como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Mas é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que mais explicita os direitos desses jovens cidadãos. São nove artigos, sendo que o 244º proíbe a submissão das crianças e adolescentes à prostituição ou à exploração sexual. O Código Penal tipifica esses crimes e estabelece as penalidades. É ele que indica que os crimes sexuais no Brasil podem resultar em reclusão de até 10 anos.
Legislação
Constituição Federal
Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Para saber mais, consulte www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/principal.htm
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
Art. 5º – Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 18 – É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Art. 82 – É proibida a hospedagem de criança ou adolescente em hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere, salvo se autorizado ou acompanhado pelos pais ou responsável.
Art.130 – Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.
Art. 240 – Produzir ou dirigir representação teatral, televisiva, cinematográfica, atividade fotográfica ou de qualquer outro meio visual, utilizando-se de criança ou adolescente em cena pornográfica, de sexo explícito ou vexatória. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de 12.11.2003)
Art. 241 – Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente.
Art. 244-A – Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual.
Art. 245 – Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maustratos contra criança ou adolescente:
Art. 250 – Hospedar criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável ou sem autorização escrita destes, ou da autoridade judiciária, em hotel, pensão, motel ou congênere.
Lei dos Crimes Hediondos
Com a Lei 8.072, de 25/07/90, o estupro e o atentado violento ao pudor passaram a ser considerados crimes hediondos e tiveram as penas aumentadas. Os autores não têm direito a fiança, indulto ou diminuição de pena por bom comportamento. Os crimes são classificados de hediondos sempre que se revestem de excepcional gravidade, evidenciam insensibilidade ao sofrimento físico ou moral da vítima ou a condições especiais das mesmas (crianças, deficientes físicos, idosos).
Para saber mais, acesse www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8072.htm
Lei da Tortura
A Lei 9.455, de 1997, considera crime de tortura, entre outros, “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.
No caso da vítima ser criança a pena pode ser aumentada de um sexto até um terço, de acordo com o dispositivo.
Para saber mais, acesse www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9455.htm
Código Penal
O ECA contém vários artigos relacionados à proteção das crianças e adolescentes contra a Exploração Sexual, mas é o Código Penal que tipifica estes crimes e estabelece as penalidades. De acordo com o Código, são crimes sexuais no Brasil*:
Estupro
Art. 213 – “Constranger à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Por conjunção carnal entende-se a penetração do pênis na vagina, completa ou não, com ou sem ejaculação. Assim, o estupro é um crime que só pode ser praticado por um homem contra uma mulher, incluídas, nesse caso, meninas e adolescentes. Pena: reclusão de 6 a 10 anos.
Atentado violento ao pudor
Art. 214 – “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Pena: reclusão de 6 a 10 anos.
Corrupção de menores
Art. 218 – “Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 e menor de 18 anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo- a a praticá-lo ou presenciá-lo”. Pena: reclusão de 1 a 4 anos.
Favorecimento da prostituição
Art. 228 – “Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a abandone”. Pena: reclusão de 2 a 5 anos.
Casa de prostituição
Art. 229 – “Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso”. Pena: reclusão de 2 a 5 anos e multa.
Rufianismo
Art. 230 – “Tirar proveito da prostituição alheia, participando de seus lucros ou fazendo- se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça”. Pena: reclusão de 1 a 4 anos e multa.
Tráfico de mulheres
Art. 231 – “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha a exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro”. Pena: reclusão de 3 a 8 anos.
Pornografia
Art. 234 – “Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio ou distribuição ou de qualquer exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno”. Pena: detenção de 6 meses a 2 anos ou multa.
*Todos esses crimes são ainda mais graves quando praticados contra crianças e adolescentes com idade menor que 14 anos, pois fica configurada situação de violência presumida, de acordo com o Art. 224 do Código Penal.
Para saber mais sobre o Código Penal, acesse www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm
Fonte: III Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes
Colaboração
http://dois-em-cena.blogspot.com/2008/09/sexo-com-crianas-vendido-r-3-no-corao.html
Publicação original
http://www.correiobraziliense.com.br/html/sessao_13/2008/09/24/noticia_interna,id_sessao=13&id_noticia=34888/noticia_interna.shtml
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