Como as leis do crime foram feitas para serem respeitadas, os presídios ficaram livres do crack
SÓ QUEM desconhece a rotina das cadeias pode imaginar que seja possível impedir a entrada de drogas.
Se nos países ricos, em presídios de segurança máxima, guardados por carcereiros treinados e bem pagos, a droga é um problema insolúvel, imagine nos nossos.
Na coluna de hoje, leitor, vou descrever a trajetória percorrida pela cocaína nas cadeias de São Paulo nos últimos 20 anos.
Até a década de 1980, éramos ingênuos a ponto de considerar o uso de cocaína uma extravagância de gente endinheirada. Os primeiros casos de Aids se encarregaram de demonstrar que havia uma epidemia de cocaína injetável na periferia da cidade.
Em 1989, comecei um trabalho médico voluntário nas cadeias da capital, que dura até hoje. Naquele ano, um inquérito epidemiológico conduzido por nós na antiga Casa de Detenção revelou que 17,3% dos presos eram HIV-positivos.
Muitos vinham para o atendimento com as veias dos braços em petição de miséria, sequela das aplicações intravenosas sem assepsia. Como não era fácil conseguir seringas e agulhas no presídio, o uso comunitário da parafernália para as injeções era prática corrente.
Nessa época começamos um programa educativo que envolvia palestras no antigo cinema da Casa, concursos de cartazes sobre o tema e a distribuição periódica de "O Vira Lata", gibi erótico em que o herói, um ex-presidiário, só fazia sexo com camisinha e condenava o uso de cocaína injetável.
Esse conjunto de intervenções associado ao impacto das mortes por Aids em todos os pavilhões varreu do mapa a cocaína injetável, resultado final que os próprios presos julgavam inatingível. Nunca mais os guardas apreenderam nem uma seringa sequer.
Não havia motivo para comemorar, infelizmente: nos anos de 1992 e 1993 o crack invadiu a Detenção. Droga preparada com o refugo da pasta de cocaína tinha a vantagem do preço baixo, de dispensar as seringas e agulhas transmissoras do HIV e de provocar um "baque" no cérebro de intensidade comparável ao da injeção intravenosa.
A desvantagem maior logo se tornou evidente. Enquanto as injeções perfuravam a pele e destruíam as veias, suplício que nem todos estavam dispostos a suportar, o crack não doía nem deixava as marcas denunciadoras do uso. As consequências foram devastadoras.
Na esteira do massacre de outubro de 1992, acontecimento chave para entendermos como a disciplina no sistema penitenciário foi por água abaixo, a epidemia de crack se espalhou entre os 7.000 detentos do Carandiru e contaminou também outras cadeias.
Não há estatísticas para estimar o número de usuários, mas foram tantos que, quando um paciente negava o uso, eu o considerava mentiroso.
O crack é invenção do diabo. No usuário crônico o efeito acaba em segundos, mas a compulsão que o obriga a vender a roupa do corpo persiste pelo resto da vida. Nas garras da dependência, os detentos contraíam dívidas impossíveis de pagar.
Os inadimplentes tinham apenas duas opções: pedir transferência para o Amarelo, setor protegido no qual permaneciam trancados 24 horas por dia, ou acabar a carreira na ponta de uma faca.
No fim dos anos 1990, o Amarelo chegou a ter mais de 600 presos, quase 10% da população da Casa.
Os guardas de presídio mais experientes diziam que o crack havia subvertido a hierarquia da prisão e as leis do crime de forma tão radical que seria impossível acabar com ele nas cadeias, previsão com a qual eu concordava plenamente.
Estávamos enganados. Quando uma das facções conseguiu sobrepujar as demais e impor suas leis entre os presidiários paulistas, o crack foi considerado prejudicial aos negócios e terminantemente proibido. Por ordem do comando, quem fosse pego fumando era expulso do convívio e forçado a pedir asilo nas celas de segurança; quem ousasse traficar recebia sentença de morte.
Como as leis do crime foram feitas para serem respeitadas, os presídios do Estado de São Paulo ficaram completamente livres do crack.
Partindo do princípio de que na vida marginal tudo começa nas cadeias, tive a esperança de que num segundo movimento ele fosse banido da periferia de São Paulo, como acontecera com a cocaína injetável. Outro engano.
Uma traficante que atendi na penitenciária feminina explicou por quê: "Se quiser ganhar dinheiro na rua, doutor, a droga é o crack".
Texto de Dráuzio Varella na Folha de São Paulo de 08/05/10
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