A ex-modelo Waris Dirie alertou o mundo sobre a mutilação genital feminina e tornou-se o principal nome contra a prática
Keila Bis - ESPECIAL PARA O SF
Waris. A ativista terá sua vida contada em filme que estreia este mês. Foto: Arquivo pessoal
Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), a cada 11 segundos, uma criança sofre mutilação genital feminina em alguma parte do mundo. Por dia, são mais de 8 mil e, em um ano, cerca de 3 milhões, espalhadas pela África, Ásia, Europa, EUA e Austrália. Ao pé da letra, essa prática significa a retirada do clitóris ou dos lábios pubianos - ou dos dois juntos - entre 0 e 14 anos de idade. Na maioria das vezes, é feita com facas, navalhas, tesouras e até mesmo com pedaços de vidro, sem anestesia nem o mínimo de higiene.
As horrendas consequências dessa prática milenar ocorrem no âmbito emocional, provocando traumas, síndromes e depressões; no sexual, já que a mulher mutilada nunca sentirá prazer durante a relação; e no aspecto da saúde física, pois não é raro ocorrerem infecções, hemorragias e doenças - que, se não levam à morte, podem deixar sequelas.
Essa realidade poderia ficar mais velada se Waris Dirie não existisse. Waris, 45 anos, é o principal nome na luta contra a FGM (Female Genital Mutilation) desde que criou a Fundação Waris Dirie, há 12 anos. Ela própria foi mutilada aos 5 anos e perdeu uma irmã em decorrência de uma hemorragia causada pela mutilação. Decidiu fugir de seu país, a Somália, quando tinha 13, e se viu forçada a casar com um homem que tinha idade para ser seu avô.
Waris refugiou-se em Londres, onde sua beleza não passou despercebida por um fotógrafo, que mudou o rumo da sua vida. Fez com que se tornasse uma das modelos mais famosas do mundo. De modelo passou a ser ativista dos direitos humanos, reconhecida pelo secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, como embaixadora especial contra a FGM.
Com quatro livros lançados, que se tornaram bestsellers, Waris lançará mais um este ano - sem data prevista para chegar ao Brasil - e terá sua história contada no filme Flor do Deserto (baseado no seu livro homônimo, com co-autoria de Cathleen Miller), que estreia ainda este mês no País. Tem direção de Sherry Hormann e a atriz e top modelo Liya Kebede, nascida na Etiópia, no papel principal, representando Waris.
Leia a entrevista exclusiva que a ativista Waris Dirie concedeu ao Feminino.
Quais os principais objetivos da Fundação Waris Dirie?
Despertar a consciência das pessoas sobre a mutilação genital feminina (FGM, sigla do termo em inglês). Há informações sobre isso no meu site, www.waris-dirie-foundation.com. Nós também implementamos campanhas e damos palestras e conferências. Mas somente esse despertar de consciência não é suficiente para erradicar a FGM. Esse é o motivo pelo qual estamos sempre trabalhando em um projeto que estimula mulheres africanas a começarem seus próprios negócios. Estou convencida de que a independência financeira e a aceitação social da mulher são os caminhos para as mães não levarem suas filhas para serem mutiladas, e as mandarem para a escola em vez de casá-las ainda muito jovens.
Quais foram as conquistas que lhe deram maior alegria até agora?
O meu trabalho e o da fundação têm tido um impacto positivo, especialmente na Europa. A publicação do meu livro Desert Children levou, rapidamente, muitos governos europeus a implementarem leis contra a FGM. No entanto, a abolição legal da FGM sozinha não é suficiente para erradicar a mutilação. É de suma importância que as mulheres tenham mais direitos, mas também mais independência e status social para realmente poderem lutar contra a FGM. No entanto, mesmo que eu salve somente uma pequena garota, já é uma conquista. Nunca duvidei que alcançaria alguma coisa com a minha luta, e os meus novos projetos estão me dando ainda mais esperança. O fato de trabalhar com as mulheres na África e poder ver o potencial delas me faz ter certeza de que eu vou acabar com a FGM um dia.
Quais são as metas daqui para frente?
Quero verdadeiramente mudar o destino das mulheres de todo o continente africano. No meu novo livro, Black Woman White Country, que será lançado este ano, eu descrevo as experiências e trajetos que me levaram a começar meu novo projeto na África. Estou convencida de que, se nós começarmos a investir em negócios na África, dando aos africanos a chance de terem um emprego, uma renda e de escaparem da miséria, estaremos dando um grande passo na luta contra a FGM. Meu novo projeto apoia mulheres no leste da África, para que aquelas que tenham uma ideia de negócio possam transformá-lo em uma empresa. Assim, elas criam ofertas de trabalho para outras mulheres. Uma mulher que é independente financeiramente não leva suas filhas para serem mutiladas. Criar empregos e promover um desenvolvimento sustentável é a melhor maneira de lutar contra a FGM e a repressão contra a mulher.
Por que a FGM acontece? É uma questão cultural?
Não, a explicação para isso não está na cultura nem na religião. É simplesmente o resultado da repressão contra a mulher.
Onde são feitas as mutilações? E quem as executa?
Isso depende. Na maioria das vezes, são feitas por mulheres mais velhas que não têm uma educação médica. E, frequentemente, são executadas fora dos hospitais. Mesmo nos países mais desenvolvidos, algumas vezes são feitas em hospitais também.
A FGM é um ato legal nos países onde é praticada?
Não, na maioria dos países a FGM é agora ilegal. Se por um lado é importante ser ilegal, ao mesmo tempo significa que a mutilação é feita em segredo.
O que mais a preocupa com relação à FGM?
O fato de que, ao não quererem interferir, as pessoas usem desculpas religiosas, culturais ou de tradição para não combatê-la. FGM é um crime praticado até em crianças. Sendo assim, isso deve ser tratado como crime.
Como é a relação com a sua família desde que você fugiu da Somália?
Infelizmente, não os vejo muito como gostaria, mas nós estamos sempre em contato.
Você culpa sua mãe pela mutilação?
Não, eu não os culpo. Minha mãe fez o que a sociedade exigiu dela. É a aceitação da mulher que tem que mudar. Eu sinto somente amor pela minha mãe. Ela é uma mulher muito forte e eu a admiro por isso.
Por que você decidiu contar para o mundo sobre a sua mutilação?
Eu sempre soube, desde o dia em que isso aconteceu comigo, que eu iria lutar contra esse crime. Depois de me tornar famosa como modelo, percebi que eu tinha a chance de falar sobre esse assunto e que teria pessoas para me ouvir.
Como foi a primeira vez que você falou sobre a mutilação genital feminina?
Foi durante uma entrevista que concedi para uma renomada revista feminina. A jornalista queria contar mais uma história de Cinderela, mas eu decidi dizer a ela algo mais sobre a minha vida.
Ter sofrido a mutilação genital feminina é algo que ainda a faz sofrer muito?
Claro que sim, é uma parte de mim, mas isso não quer dizer que eu não seja feliz hoje.
Qual a sensação de ter sua história contada em um filme?
Assistir à edição final foi muito tocante, especialmente as cenas da minha infância, que me trouxeram muitas memórias. Cada cena que eu vi na tela me trouxe incontáveis memórias. Eu senti que eu estava vivenciando novamente toda a minha infância. Foi uma experiência muito forte. Eu estou feliz que o filme tenha sido feito. Acredito que é uma forte mensagem contra a FGM e que vai alcançar muitas pessoas.
são 7.50 da manhã em Portugal e acabei de ver o filme flor do deserto. Um filme chocante, mas necessário. Tive várias amigas em frança onde estive emigrada, que foram mutiladas, vi o sofrimento delas. Que ainda se pratique estes costumes na Europa, onde as pessoas tiveram oportunidade de evoluirem mentalmente, é inaceitavel. Deixo aqui o meu carinho a todas as mulheres e crianças mutiladas espalhadas por este mundo fora.
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