A encrenca do crack
"Raspa da canela do diabo", droga se espalha pelo país
Setenta por cento da cocaína apreendida no ano passado no Brasil se destinariam à produção de crack, segundo a Polícia Federal. Enquanto a droga se alastra pelo país em ritmo de epidemia, os usuários criam estratégias de sobrevivência e o marketing do tráfico investe no consumidor proveniente das classes C, D e E.
QUANDO A POLÍCIA APONTOU OS ROJÕES PARA O CÉU, para comemorar o sumiço da maconha do mercado em São Paulo, a pesquisadora Solange Nappo suspirou fundo: "Já vimos esse filme antes".
A maconha sumiu, de fato. A velha lei da oferta e da procura fez o preço subir às alturas de R$ 5 por grama, em vez dos estáveis R$ 2 em vigor praticamente desde o início do Plano Real, em 1994. Segundo a polícia, a escassez deve-se ao reforço da fiscalização e da repressão na fronteira com o Paraguai.
Solange, que trabalha na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dá outra explicação. "Os traficantes já fizeram isso nos anos 90, quando enxugaram a maconha das bocas, para forçar a entrada do crack. O menino ia comprar um baseado e saía com pedras." Tudo mudava a partir daí. Nascia a Cracolândia.
A história remonta ao começo dos anos 90, no Hotel Copa 70, no meio da Boca do Lixo paulistana, onde um traficante de cocaína conhecido por "Chulapa" (homenagem ao jogador santista Serginho Chulapa) fez o primeiro teste de mercado, ensinando a alquimia da transmutação de pó em crack.
"O Copa, que já era de alta rotatividade, virou uma loucura", lembra o português T.S., que foi dono de um hotel na redondeza. "Um trazia a televisão para trocar por droga, outro o micro-system, outro aparecia com a máquina de costura da mãe. Um mercado persa." Quando Chulapa foi assassinado, uns três anos depois, o crack tinha ganhado todas as ruas em volta.
DOMESTICAÇÃO
Na Bela Vista, bairro central de São Paulo, as bocas já se recusam a vender só maconha. Quem quiser, é maconha mais crack. Cinco gramas de maconha vêm num saquinho com cinco pedras. Preço mínimo: R$ 50.
A associação crack-maconha é a mais recente jogada do marketing das drogas. Tem até nome o cigarro de maconha com lasquinhas de pedra: "pitilho" ou "píti" (por ironia, a pronúncia é igual à palavra "pity", compaixão em inglês).
Com o "píti", o crack parece ter sido domesticado, embora o potencial de adição seja o mesmo da droga pura. Para fumá-lo, não é preciso improvisar cachimbos com latas de refrigerante, energético ou Yakult, como se faz com o crack. Ou até em tubos usados de pasta de dentes. (Diante de um desses apetrechos, o artista belga René Magritte talvez reconsiderasse sua frase mais famosa e dissesse: "Isto é um cachimbo".)
Misturada à maconha, o crack, atenua a paranoia -o seu efeito colateral mais perigoso. Acalma o usuário. Evita que entre em brigas. Combate o estigma de droga maldita, que afasta do crack até os "malucos" em busca de novas experiências.
"Ninguém imagina que vá começar a andar como um zumbi se fumar um baseadinho com crack", diz o músico M., 38 anos, há cinco transformado, ele próprio, em zumbi da cracolândia paulistana.
Como a lata que lhe serve de cachimbo esquenta muito durante a combustão, M. tem a boca transformada numa grande ferida. Queimaduras infeccionadas. Pelo menos até a cicatrização, ele promete usar apenas o "pitilho".
TUIIIIIIIIIM
O crack é a cocaína na sua forma mais destrutiva. Mas ainda é cocaína. A diferença é a forma de administração. Os cheiradores expõem apenas alguns centímetros quadrados de mucosa (a do nariz) à absorção do princípio ativo da cocaína, a molécula benzoilmetilecgonina ou éster do ácido benzoico. Do nariz, a substância vai para a corrente sanguínea, para só então chegar ao cérebro.
O caminho é acidentado. Antes de atingir o cérebro, a droga enfrenta os ataques das esterases, enzimas que tentam defender o corpo da intoxicação, destruindo a molécula invasora. Quando uma pessoa cheira o pó, apenas um terço das moléculas de cocaína que entraram na corrente sanguínea chegam a atingir o cérebro depois da ação das esterases.
Para melhorar a eficiência, logo os custos com a droga, surgiu a injeção de cocaína -a pessoa se pica e a droga entra direto na corrente sanguínea, sem a intermediação da mucosa. Aumentam a velocidade de absorção e a quantidade do que é absorvido. As esterases têm menos tempo para agir. O "barato" é mais intenso.
Mas então veio a Aids. Em meados dos anos 90 aconteceu um massacre dos dependentes de cocaina injetável, que compartilhavam seringas contaminadas. Para atender o consumidor hard, os traficantes trataram de disseminar a novidade: não seria mais necessário injetar. Bastava dissolver o pó em água, misturar com bicarbonato e secar. A casquinha que se formava, uma vez fumada, produzia um tuiiiiiiiiim no cérebro, uma explosão de energia e luz.
O "milagre" da cocaína na forma de crack é obra dos pulmões. Quando puxa a fumaça do crack, o usuário arremessa as moléculas da cocaína para esses órgãos, que têm uma área imensa, cheia de alvéolos especializados em trocas gasosas com a corrente sanguínea. Nocaute das esterases.
Noventa por cento das moléculas de cocaína que entram no pulmão atingem o cérebro. Recorde de eficiência. Enquanto a cocaína aspirada leva 5 minutos para fazer efeito e o "barato" dura 60 minutos, o crack "bate" em apenas 5 segundos, mas os efeitos duram magros 5 minutos. A "fissura" e o "barato" se confundem.
REDUÇÃO DE DANOS
Muitas mortes depois, os craqueiros criaram uma espécie de "manual de redução de danos", com regras de sobrevivência:
1. Não usarás o crack em grupo. Fumarás vosso cachimbo na solidão, para evitar confusões.
2. Não enfrentarás a polícia. Admitirás ser usuário de crack, a fim de evitar a prisão por tráfico.
3. Não ficarás próximo da boca, para não denunciá-la à polícia.
4. Pagarás o traficante religiosamente em dia.
5. Associarás o crack a outras drogas, como o álcool e a maconha, a fim de moderar os efeitos em cascata da paranóia, da depressão e da "fissura".
6. Usarás os serviços públicos para controlar as infecções e doenças típicas da vida nas ruas.
7. Procurarás urgentemente uma internação hospitalar, se o traficante quiser acertar contas, e ameaçar a tua vida.
8. Cafetinarás uma mulher. É o jeito mais fácil de arrumar dinheiro, e não tem os riscos do assalto.
Está funcionando.
O NEGÓCIO DO CRACK
Não é apenas a redução de danos à saúde que explica o fenômeno do "pitilho". Qualquer dono de mercadinho na periferia sabe que, quando o mercado se expande, é hora de diversificar o leque de produtos. Os traficantes de crack parecem conhecer essa lei básica. Há pelo menos mais dois derivados do crack no mercado: o "basuco", droga ainda mais tóxica e agressiva, de refino mais grosseiro, e o "pitilho" (ou "mesclado"), a combinação de crack com maconha que está fazendo a cabeça dos noias da Cracolândia.
O "basuco" é feito sob medida para atender o grau mais baixo do mercado, pois custa mais barato. Já o "pitilho" busca o usuário que não quer o estigma causado pelo consumo de crack, afirma o antropólogo Paulo Malvasi, que estuda a relação dos jovens com o tráfico na Grande São Paulo.
"Na periferia, o crack é visto como o ápice do circuito do desespero", diz ele. "O 'noia' é encarado como alguém que está no limiar do humano. Nem os travestis sofrem tanto preconceito."
PÃOZINHO QUENTE
"'Noia' não é gente. Se morrer, ninguém nota." O traficante D. M., dono de uma "lojinha" nos confins da zona leste de São Paulo, não esconde a cara de desprezo quando fala dos usuários de crack. "Lojinha" é a nova gíria para boca de drogas; o termo tem a vantagem de não levantar suspeitas. Ele diz que só atende essa clientela por uma razão econômica. "Coca vende na sexta à noite ou em dia de pagamento. Com o crack é diferente. Mal chega a pedra, você vende tudo. É que nem ingresso de futebol em final de campeonato."
A explicação de D. M. pode ser óbvia para um leigo, mas vale ouro para os pioneiros de um novo gênero de estudos no Brasil: o que busca entender como funciona o mercado de crack a partir dos aspectos econômicos. A observação de D. M. aponta um traço do crack que parece ter passado despercebido pela maioria dos estudiosos. A droga não apenas está entre as mais baratas -o preço baixo é a explicação simplista para a rápida expansão-, mas tem a maior liquidez no mercado de drogas ilícitas.
Liquidez é a facilidade com que um bem -o crack, no caso- pode ser convertido em dinheiro. Pãozinho fresco tem liquidez. Uma Ferrari não tem- porque pouquíssimas pessoas têm recursos para comprá-la. Mas o crack é um pãozinho quente que provoca "fissura" naquele que ficar sem comer o próximo.
PREGÃO NO MEIO DA RUA
"Eu vendoooooo!", grita forte a jovem de 16 anos, grávida de 8 meses, no começo da rua dos Gusmões, coração da Cracolândia, às onze da manhã de uma terça-feira.
"Eu compro, eu compro, eu compro!", replicam os usuários, em torno de 50, avançando sobre ela. Pregão no meio da rua.
O ímpeto dos consumidores é tamanho que a garota precisa vender a droga e caminhar ao mesmo tempo, para não ser atropelada -várias pedras vão caindo pelo chão no empurra- empurra.
Mais tarde, quando bater a "fissura", ou síndrome de abstinência, quando o corpo do viciado exige reabastecimento, os craqueiros voltarão, recurvados, quase de quatro, para tentar achar algumas delas nas frinchas do asfalto.
As grávidas e os meninos com menos de 15 anos são os principais vendedores nesse varejão -a polícia não dá tanto em cima deles, conhecidos como "vapores". Eles trabalham para o traficante, em troca da ração diária de crack para seu próprio consumo.
Os que não trabalham como "vapores" arrumam dinheiro como podem. Cláudio Portella, no poema "Vigésima Primeira Pedra", incluído em seu livro "Crack" (Meca Editora), fez uma glosa da canção "Metáfora", de Gilberto Gil, para explicar a situação:
"Uma lata é feita para conter algo, Mas quando o poeta diz lata, Pode estar querendo dizer [o incontível.
A minha lata conteve roupa, TV, som, celular, computador, Geladeira, microondas, carro, Jet-ski, casa, apartamento, Iate, fazenda, et cetera. Tudo condensado em fumaça."
LIQUIDEZ
A liquidez do crack é uma das razões que levaram a droga a se espalhar pelo país. A última estimativa do Ministério da Saúde, de 2005, contabilizava 380 mil usuários no Brasil. Segundo dados do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (Cebrid), ligado à Unifesp, retrabalhados pelos economistas Sérgio Guimarães Ferreira e Luciana Velloso, o número de usuários de crack cresceu 125% entre 2001 e 2005 -não há dados mais recentes.
Nesse período, os consumidores de cocaína cresceram 42%. Só um tipo de droga supera o crack em aumento de usuários: as sintéticas, que tiveram um salto de 171%.
Números da Polícia Federal sobre apreensão indicam que o aumento de 125% pode ser um dado conservador ou ultrapassado. O delegado Cairo Costa Duarte, chefe do serviço de inteligência do setor de repressão a entorpecentes da PF, afirma que 70% dos 18.852 toneladas de cocaína apreendidas no ano passado eram matéria-prima para crack, a chamada pasta-base.
Segundo o delegado, esse percentual não aparece nos dados oficiais porque faltam peritos na PF, e a pasta-base que seria usada para produzir crack acaba contabilizada genericamente como cocaína. Cinco anos atrás o percentual de pasta-base apreendido, cujo destino seria a produção de crack, não passava de 20%. O aumento nas apreensões, diz ele, é um sinal de que a produção se expande.
"O crack se dissemina rápido porque a lucratividade é até maior do que a da cocaína", diz o sociólogo Luís Flávio Sapori, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e coordenador do Instituto Minas pela Paz. "A clientela do crack é muito mais ampla do que qualquer outra droga: são as classes C, D e E". Sapori coordena uma pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sobre o mercado de crack, uma das primeiras do gênero no país.
HIPERVIDA
"O 'barato' do crack é uma maravilha. Uma sensação de hipervida. Você ouve mais, vê mais, tem o olfato mil vezes mais sensível, o toque idem. Os seus cinco sentidos se multiplicam ao infinito", diz Rafael Ilha, 37 anos, 20 dos quais às voltas para se livrar da dependência e, segundo ele, "limpo" há seis anos. Gozadores gostam de chamá-lo de Rafael "Pilha" -num surto de "fissura", ele engoliu duas pilhas pequenas.
Não foi uma tentativa de suicídio. Como estivesse internado numa clínica de reabilitação ultrarrestritiva, e lá não tivesse a menor chance de obter o crack, Ilha teve a ideia de forçar sua remoção para um hospital, de onde fosse mais fácil fugir. Deglutiu as pilhas. Antes, em outro surto, o ex-cantor já tinha engolido uma pilha média, uma caneta e três isqueiros, além de uma tampinha de xampu.
O ex-cantor do grupo Polegar e ex-namorado da mulher mais desejada do Brasil na década de 90, a atriz Cristiana "Juma" de Oliveira, tornou-se o craqueiro mais famoso do Brasil.
Surpreende a longevidade de Ilha, dependente de uma droga que até pouco tempo atrás matava seus usuários pouco mais de um ano depois da primeira "pipada" num cachimbo. Entre períodos "limpos" e outros "sujos", muito "sujos", o ex-cantor testemunhou a proliferação da epidemia de crack.
SEM POESIA
Não é por acaso que Rafael Ilha saiu das páginas de cultura para as policiais. Também do ponto de vista cultural, o crack tem uma singularidade destrutiva. Lucy in the Sky, psicodelismo, camisetas de batique, flower power -do ácido lisérgico foi dito que "amplificava os níveis de consciência". Os Beatles gostavam. Até profeta o LSD produziu, na figura de um professor-doutor de Harvard, Timothy Leary (1920-1996).
A heroína roqueira lutou no Vietnã, anestesiando as dores da guerra. Virou musa de Lou Reed e do anglo-brasileiro Ritchie, em "Menina Veneno". O ópio já foi "comida" de Thomas De Quincey, Baudelaire e de toda sorte de aspirantes a poeta. Os jamaicanos Bob Marley e Peter Tosh converteram-se em gurus da maconha na Tribo de Jah.
Nos anos 80, a cocaína em pó trincou sorrisos de empresários yuppies -carreiras e carreiras enfileirando-se nos banheiros de escritórios e baladas. Mais recentemente, o ecstasy é a droga do sexo, das raves, do amor. Quanto ao crack, bem... o crack é a droga inculta e maldita que leva você ao lixo. O crack não tem poesia. É a "raspa da canela do diabo", conforme a gíria carcerária.
"Falam que é droga de pobre", diz Antonio Feres, 38, agente de segurança desempregado, craqueiro. "Esse é o principal problema do crack. Se não fosse por isso, já tinha pelo menos virado um filme, porque história é o que não falta".
PEDINDO PORRADA
Os pesquisadores da Unifesp começaram a estudar a nova droga tão logo ela chegou a São Paulo. Depararam-se com a assustadora taxa de mortalidade entre os usuários. Segundo Solange Nappo, em um ano, o grupo se renovava.
Só que não era a droga diretamente que matava -ao menos na maioria dos casos.
Compulsivo, o craqueiro sem crack chamava encrenca. "Ele ficava na 'bocada' implorando para o traficante arrumar droga. Chorava, dava bandeira", conta a pesquisadora. "Quando recorria ao assalto para comprar a droga, era um trapalhão, sem nenhuma estratégia para roubar". A própria Nappo foi assaltada por esse novo tipo de trapalhão, durante uma pesquisa de campo.
Os riscos cresciam mais ainda, porque a sensação de onipotência proporcionada pela droga deixa os usuários sem a menor noção do perigo. Atravessam a rua sem olhar, enfrentam o traficante, achando que dominam a situação, desafiam os comerciantes, os seguranças e a polícia. Nas palavras de um policial militar que monta guarda na praça Princesa Isabel, um dos focos do crack em São Paulo, eles "pedem pra tomar porrada".
Segundo Solange Nappo, os craqueiros desenvolvem uma psicose -e por isso são chamados de "noias": ouvem coisas, desconfiam de tudo e de todos. "O crack não é uma coisa que alegra. É tenso, sempre tenso. O usuário imagina que uma unidade da Swat está escalando o prédio para pegá-lo, que tem microfone no ralo, que alguém vai roubar a sua pedra. Briga e violência vêm junto."
UM NOVO CONSUMIDOR
Na calculadora, a cocaína até gera um lucro maior do que o crack, segundo dados da PF enviados à Organização das Nações Unidas (ONU), mas não divulgados no país. Um grama de cocaína vale R$ 6 no atacado e R$ 25 no varejo, gerando um lucro de 300%. O lucro do crack é menor, de 200% -o traficante graúdo pega o grama por R$ 4 e o revende por R$ 12. O que faz toda a diferença do crack é o tamanho da clientela em potencial. As classes C, D e E correspondem a 84% da população do país (162 milhões de pessoas), enquanto as A/B têm 30 milhões.
A mesma classe C que faz o comércio mais popular crescer em ritmo "chinês" ajudou a transformar o crack num problema epidêmico no país, de acordo com José Luiz Ratton, coordenador de um núcleo da Universidade Federal de Pernambuco que estuda violência.
"Há uma diversificação no mercado de drogas. O crack atinge um novo consumidor".
Não é exagero, segundo Sapori, colocar os traficantes na mesma categoria dos homens de negócios. "Os traficantes sempre foram grandes comerciantes. Só não tínhamos notado isso porque estudávamos somente o usuário de drogas", diz.
O Rio de Janeiro, que era livre do crack até sete anos atrás, pode ser um laboratório ideal para analisar o comportamento econômico dos traficantes. A aposta é de Daniel Cerqueira, professor de macroeconomia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea).
Cerqueira prepara uma pesquisa para testar suas hipóteses ousadas para explicar a vertiginosa expansão do crack no Rio. Segundo ele, o advento das drogas sintéticas - ecstasy e ácido lisérgico- provoca um deslocamento tectônico no mercado tradicional. Como a droga sintética é vendida pela classe média, o traficante de morro perde mercado -os jovens de classe A e B, que consumiam cocaína nos anos 80 e 90 do século passado, agora usam ecstasy.
CRACK, GÁS E GATONET
"A droga sintética é um duro golpe na rentabilidade da cocaína", avalia Cerqueira. Com a queda da rentabilidade, o tráfico do morro reage e entra em novos mercados: botijão de gás e "gatonet" (a gíria carioca para a TV por assinatura pirata). "Ele também incorpora um novo produto, o crack, e um novo segmento de consumidores, o 'noia'. O crack é uma resposta à queda de rentabilidade da cocaína." Para ele, o mercado de drogas tem uma organização empresarial, e reage racionalmente para manter o lucro.
No Brasil, não há dados estatísticos que comprovem a perda de terreno da cocaína para as drogas sintéticas. Nos Estados Unidos, porém, o consumo de cocaína chegou ao patamar mais baixo nos últimos 30 anos, segundo o National Institute of Drug Abuse.
A ocupação dos morros do Rio pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) é um subproduto dessa perda de rentabilidade dos traficantes, segundo Cerqueira. A polícia entrou nos morros porque os traficantes estão com menor poder de fogo para reagir, e porque já não têm tantos recursos para pagar propina aos policiais. Tudo é resultado da queda de rentabilidade da cocaína, de acordo com o pesquisador.
O fenômeno das milícias -grupo de policiais que atuam como segurança privada- também tem ligação com a redução do lucro da cocaína, na visão do economista. "Quando cai o volume de propina dos policiais, eles saem em busca de novos negócios. As milícias são um desses empreendimentos".
BAGDÁ BOMBARDEADA
Mesmo com as dezenas de operações "limpeza" realizadas na Cracolândia paulistana, nunca houve tantos craqueiros por lá. Técnicos a serviço da prefeitura estimam que algo como 3 mil a 5 mil "noias" perambulem dia e noite, senhores absolutos do polígono de 181 mil metros quadrados (área de 24 campos de futebol), bem no centro velho da cidade.
Cenário de Bagdá bombardeada, a Cracolândia de hoje é um território com quarteirões e mais quarteirões, demolidos em 2008 para dar lugar a um projeto de "revitalização urbana" que nem começou a se materializar. Seus habitantes são meninos e adultos que envelheceram no álcool e no crack, e grávidas (muitas), e deficientes físicos, doentes e sujos. E lixo espalhado -os "noias" arrombam os sacos de plástico em busca de qualquer coisa que possa ser trocada pela droga.
Tem uma cracolândia em Brasília, a menos de dois quilômetros do Congresso; tem em aldeia de índio; em Presidente Prudente, no extremo oeste do Estado; no pé dos morros cariocas; nos alagados de Recife. A "disneylândia do crack" se espalhou.
LAURA CAPRIGLIONE, MARIO CESAR CARVALHO, xilogravuras J. MIGUEL na Folha de São Paulo de 23/05/10
Tratamento contra o crack?
SEM TEMER a polêmica, talvez se pudesse responder positivamente ao título desta coluna.
Durante três anos, um grupo de 50 viciados em crack se submeteu a uma experiência comandada por psiquiatras da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo): a combinação de terapia com maconha. O resultado do teste ganhou repercussão mundial, especialmente nos EUA, onde foi publicado em revistas científicas. Daquele grupo, 68% trocaram o crack pela maconha. Tempos depois, todos (vamos repetir, todos) os que fizeram a troca não usavam nenhuma droga.
A maconha serviu para reduzir a "fissura" pelo crack, enquanto se esperavam os efeitos da terapia para que, com apoio familiar, o jovem pudesse reorganizar sua vida. Essas informações foram suficientes para inspirar médicos, inclusive do setor público, a tratar seus pacientes viciados em drogas pesadas. Técnicos do Ministério da Saúdes se mostraram impressionados. Idealizador dessa experiência, Dartiu Xavier, professor de psiquiatria da Unifesp, especialista em dependência química, está frustrado, porém.
Ele foi obrigado a abandonar seu projeto, pois corria o risco de se emaranhar-se na lei e de vir a ser tratado como traficante. Além disso, ele seria alvo do ataque de inúmeras entidades médicas brasileiras. A tragédia do crack ganhou mais destaque na semana passada, quando o governo federal anunciou um plano de R$ 410 milhões para lidar com os estimados 600 mil dependentes de crack - um crescimento, segundo estimativas oficiais, de 70% nos últimos cinco anos.
Se a lei permitisse, Dartiu ampliaria o número de atendidos, por exemplo na cidade de São Paulo, onde existem grandes áreas de consumo do crack. A própria universidade forneceria a maconha para garantir o controle da experiência. Quem sabe estaria aí o começo da solução ou, pelo menos, da redução dos danos provocados por essa praga que infesta o país e criou uma cidade chamada "cracolândia".
Na semana passada, durante um congresso internacional, realizado na Unifesp, quando se discutiu a criação de uma agência brasileira para o uso medicinal da maconha, o preconceito foi bombardeado por argumentos científicos. Para sair do papel (sobretudo em ano eleitoral), porém, um projeto como esse, mesmo como apoio do Ministério da Saúde, tem de percorrer um longo caminho. Em Washington, capital de um país conservador em relação às drogas, a maconha já foi liberada para uso medicinal.
*
Um dos maiores especialistas mundiais em drogas, o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, ligado à Unifesp, aponta a existência de estudos feitos com animais em que se revela que o princípio ativo da maconha ajuda a combater a depressão e fortalece os indivíduos em situações de estresse.
"É apenas uma hipótese. Afinal, isso só foi testado em animais", diz Carlini, um dos principais idealizadores do encontro internacional da semana passada. Mas ele já sabe que existe comprovação da eficácia de vários de seus tratamentos, alguns dos quais descobertos não por cientistas ou médicos, mas por indivíduos comuns. Na Califórnia, jovens com câncer que, durante as sessões de quimioterapia, demonstravam menos efeitos colaterais, tinham em comum o uso de maconha.
Em suas aulas, o professor Elisaldo gosta de mostrar textos do médico da rainha Vitória (J. Russel Reynolds), da Inglaterra, em que recomendava entusiasticamente a cannabis como remédio. Ele descobriu registros sobre o uso da maconha como analgésico na China há mais de 5.000 anos.
Dartiu e Carlini sabem não só que a maconha afeta a concentração, o aprendizado e a memória mas também que sua descriminalização não é uma medida de fácil implementação. O que está em discussão, porém, é o direito de fazer ciência honestamente sem correr o risco de ser apontado como marginal.
Nos arquivos de Carlini, há o caso de um indivíduo de Porto Alegre que, cansado dos enjoos provocados pela quimioterapia e na esperança de levar uma vida mais saudável, comprou um sítio.
Lá plantou maconha para consumo próprio. Não pretendia cometer nenhuma ilegalidade, tampouco se envolver com traficantes, mas, descoberto pela polícia, que apreendeu cinco pés da erva, agora tem dois problemas: além de enfrentar o câncer, tem de responder a inquérito, acusado de ser traficante de drogas. Dartiu correria risco semelhante se continuasse suas pesquisas, que trouxeram um sinal de esperança.
GILBERTO DIMENSTEIN na Folha de São Paulo de 23/05/10
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